Ressurreição
Por que continuamos? Eu não sei, acho que é uma ordem, um fogo, uma vontade, um medo, misturados e fermentados dentro de nós. Caminho no silêncio impenetrável da floresta_ só há uma presença aviltante de que tudo é estranho e irreconhecível; tento me comunicar com as árvores, e minha solidão, minha eterna amiga, sempre a me sorrir, a caminharmos juntos, rindo de nossas superstições teorias, e quando fico triste, a solidão me mostra um pássaro morto, caído perto de um tronco de árvore, sendo devorado por formigas, e ela me diz: “Nada é eterno, por isso a vida se torna mais forte, mais incompreensível e mais apavorantemente rica e bela; basta que você veja com todos os olhos que ainda dormem dentro de sua alma.”
O vento colhe alguns membros decepados do filho da escuridão que copulou ao entardecer com a luz, e derrama no cálice do meu coração uma seiva amarga e arrebatadora, uma substância que possui olhos, dedos, raivas, ossos, e cores. Ao ingeri-la, senti que ao beber eu bebia a mim mesmo, porém um riso de criança emergiu do túmulo onde eu havia me enterrado antes do sepultamento das horas; o céu e as nuvens de repente ficaram inertes, e toda a estagnação da existência se debruçou sobre o penhasco de meu corpo, e gritou: “ACOOOOOOORDE...”
Não senti medo, porque enfim eu estava imerso no interior da vida, e o interior devasso e sagrado da vida se infiltrava cada vez mais em meu íntimo; silenciosamente, enquanto as árvores existiam, enquanto rotações e movimentos não se cansavam de seus hábitos cotidianos e tão vãos como a própria inutilidade de haver inutilidades, algo em mim queria sair para fora, queria berrar, queria explodir, queria sangrar, queria conceber filhos disformes, queria devorar e beber tudo, queria amar todos os filhos e filhas e depois sacrifica-los ao nada; queria mesmo era encontrar uma frase que me traduzisse quem eu era, e o que estava fazendo ali, naquele lugar, esquecido pelos homens, esquecido pela natureza, esquecido pela história, esquecido por todos os deuses, e finalmente gritei: “Eu não sei e estou cheio de vida.” Por que tais palavras saíram de minha boca? Por que minha alma encontrava mais fogo e água na ausência de qualquer convívio com outras pessoas, como se houvesse nuvens e cisternas abastecessem meu ser tão vazio de excessos e de excessividades, ainda que eu me sentisse cada vez mais incompleto e desconcertante?
Não sou estranho, porque tudo é enigmático. Há algo em minha alma tão oculto, mais tão oculto, que mesmo sabendo que preciso resgatar, que preciso submergir de minhas profundezas e ocultações, ainda assim eu sinto que esse algo oculto me sussurra que é melhor não toca-lo em mim, não olha-lo demais, não pensá-lo por muito tempo, não estender meu braço para alcançá-lo, e não consigo entender essa minha estranheza que persiste em deixar inviolável esse algo que me incomoda, que me faz olhar para os objetos, que me compele a crer que assim é melhor, que empurra para os becos escuros da esperança, que força minha mão a girar a chave para fechar a porta de meu lado oculto, cruel e obscuro.
Meus olhos estavam abertos para o cume de minhas ignomínias, mas uma oração, ainda febril, se levantou de uma pedra, aproximou-se de meu rosto, e rasgou algo: era uma máscara, uma máscara com mil rostos e mil gestos faciais e vozes. Senti-me mais despido do que em qualquer dia de minha vida. Essa mesma oração, com suas próprias lágrimas escorrendo dos olhos, pegou em minha mão e me levou a um jardim onde só havia areia e os fósseis das criações humanas; olhando-me nos olhos, perguntou-me: “Por que insistes em estar nesse mundo, em existir, se tudo é impregnado de gratuidade e de incoerências?” Eu ri, e sem saber o motivo do meu riso, respondi à oração: “eu sou a prece e as súplicas que pulsam em cada ente desse manicômio infinito. Abandoná-los seria abandonar a mim mesmo; abdicar do absurdo seria abdicar de minha vida; trair a morte ou a vida seria me trair, por isso devo ser fiel a minha comunhão com cada elemento da existência, por mais torpe ou sábia que algo seja, pois assim estarei sendo fiel a mim mesmo, e nossa irmandade assim nunca poderá ser aniquilada”.
Uma poeira gigantesca se ergueu por todos os lados do jardim, corri como um louco, gritei por ajuda, fechei os olhos, e senti meu corpo desfalecer. Acordo de meu despertar que estava em coma. Cada som, cada ruído familiar ou ignoto, cada confusão, cada gesto de amor e de crueldade, cada guerra, cada descoberta, cada ser, cada coisa real e irreal, tudo são caminhos que podem nos levar a desenterrar ou a transfigurar nosso próprio ser necropsiado.