JOIA DE FAMÍLIA
 
Seria o último almoço na casa. A família reunida: filhos, genros, noras, netos. Hortênsia gostava de surpresa. Por isto, no convite não contara da venda.  Na hora da sobremesa, anunciou:

— Vendi a casa, com tudo dentro. Quem quiser ficar com algo, deve retirar até terça. 
Depois, o novo proprietário tomará posse.
Após o burburinho que o anúncio causou, Julieta foi a primeira a dizer:
 — As poltronas são minhas.
Decorridos alguns meses, estava sentada sobre uma delas, olhando fotos, emocionando-se. Há cinquenta anos que as poltronas estavam na família e eram fotografadas. Por ocasião do nascimento de Hortênsia os pais sentaram-se com ela no colo e os demais filhos em volta. Também quando Juliteta foi batizada, os parentes foram reunidos para registrar o evento; pai e mãe com o bebê nos braços. Então, os referidos móveis haviam mudado de roupa. Julieta deu-se conta de que os revestimentos acompanharam a moda.
Agora, é a sua vez de mudar o tecido. Deseja que o trabalho seja feito em casa. Contratou os profissionais para tanto.
— Entrem, por favor.    
Continua olhando as fotos, mas não descuida de observar o que os homens estão fazendo.
— Móveis como estes já não fazem mais, diz o estofador. - Coisa boa.
— Pois é. Por isto que desejo que fiquem bem bonitas. De certa forma, fazem parte da minha vida. Olhe aqui. Participaram dos eventos marcantes.
— Estes são seus avós?
— Sim. E esta sou eu.
O rapaz faz um tímido elogio e volta ao trabalho, retirando as coberturas antigas.
Julieta atenta, contando quantas vezes já haviam sido revestidas.
— Quero que fiquem como novas. Retire tudo o que puder. Não quero cheiro de coisa velha. Devem ficar lindas.
Em dado momento, um dos rapazes toca em algo metálico. Passa a mão, retirando a pulseira de ouro, com berloques.
—   Veja. Que linda. É sua?
—   Não. É antiga. Como teria parado aí?  Bonita mesmo. Vou perguntar de quem foi. Será que não sentiram falta?
Depois de embelezadas, as poltronas fizeram sucesso na casa de Julieta. Uma noite, enquanto aguardava o marido, sentou-se para ler um livro. Adormeceu. Não entendeu como a moça de branco entrou. Talvez tivesse vindo com Josué. A jovem sentou-se a seu lado e começou e chorar. Primeiro, tampava o rosto com as duas mãos, depois apontou para o lugar onde estava a joia e, entre soluços, dizia:
— É minha. Morri por ela.  Tenho direito. Por favor, devolva-me.
Levantou-se e foi pegar o objeto. Mas em vez disto, retirou uma rosa branca do vaso. Julieta pensou que fosse uma ladra. Ficou se perguntando como descobrira a pulseira, se não havia falado para ninguém, nem para Josué. Saltou da poltrona, para impedir o gesto da moça, e acordou-se. Estava só.
Foi até a cozinha. Tomou um copo de água e voltou para o mesmo lugar. Antes de se sentar, abriu o estojo. Suspirou, aliviada.
— Foi apenas um sonho. Nada mais. 
Abriu o livro, mas não conseguiu ler. A presença da moça parecia real. Precisava dar um jeito de descobrir o mistério. Dentro de dois dias a mãe voltaria da Europa.
A primeira a sair pelo portão do desembarque é Hortênsia, cheia de malas. A filha abraça-a demoradamente.
— Que bom que voltou, mãe. Estava com saudade. Fez boa viagem?
—   Sim, muito boa. Tenho tanto pra contar, fotos e presentes. Vamos. Estou doida para chegar em casa.
Mal entraram, mesmo antes de fechar a porta, mostrou a joia.
— Conhece? Sabe de quem é?
Viu a mãe empalidecer e estatelar-se no chão. Julieta chamou-a, deu tapinhas no rosto, sem conseguir despertá-la. Já procurava o nome do médico para chamar, quando a mãe balbuciou:
— Onde você comprou isto?
— Não comprei. Conhece ou não?
— Claro. Conheci uma parecida. Mas não pode ser a mesma. Essas letras. Não pode ser. Como conseguiu?
— Estava dentro de uma das poltronas.
Olhou para a joia e soluçou.
— Meu Deus. Pobre criatura. Era inocente. Como pude esquecer?
— Mãe, fala devagar. Quer água? Parece que viu fantasma. Por que uma joia causa tanto desassossego? Ou é o cansaço da viagem? Fica calma e me conta o que sabe.
— Mamãe tinha tanto orgulho dela. Havia recebido nos quinze anos. Depois de casada, a cada filho que nascia, papai fabricava uma letra correspondente ao nome e acrescentava na pulseira. Teu avô foi um excelente ourives.
— Mas como uma coisa tão bonita ficou perdida por tantos anos? Ninguém sentiu falta? E vovó?
— Que Deus me perdoe. 
— Conta, mãe. Já estou bastante curiosa, desde o dia em que reformei as poltronas. Fiquei ansiosa que voltasse. Sabia que não era sua, pois nunca a vi. E pela sua reação, parece que ela guarda um segredo. Adoro segredos. Conta, vai. E para de chorar.
Hortênsia ficou com o olhar parado por algum tempo, como se os pensamentos percorressem o passado; as lágrimas escorrendo. Fechou os olhos e deixou as imagens fluírem ao mesmo tempo em que ia relatando.
— Ana viera trabalhar como minha babá. Eu estava com três anos, mais ou menos. Do que mais brincávamos era de esconder coisas. Ela incentivava, dizendo que quanto mais escondida, quanto mais tempo levasse para ser encontrada, mais balas eu ganharia. Mamãe me proibia de comer balas, para não estragar os dentes. Nossa combinação era de que o segredo nunca poderia ser revelado, em hipótese alguma.
— Lembra como era Ana.
— Não. Faz muito tempo. Por quê?
— Tive um sonho. Uma moça disse que morreu por causa da joia. Tem algum sentido?
— Sim. Foi acusada de furto. Suicidou-se.
— Mas o que a pulseira teve a ver com isto?
— Deixa-me terminar a história. Uma tarde, somente Ana e eu estávamos em casa. Chegou a hora da brincadeira. Fui ao estojo e peguei a pulseira. Ana disse que não, que aquilo não era brinquedo. Mas eu bati pé, chorei e a convenci. Eu sabia bem fazer isto. Era a filha mais moça e mimada. Brincamos durante tempo. Em dado momento, ela foi preparar-me um lanche. Aproveitei para esconder a pulseira num buraquinho. Levei tempo empurrando cada um dos berloques.    
— E por que não esclareceu, não disse onde tinha escondido?
— Eu não sabia de nada. Criança não se mete na conversa dos mais velhos, dizia mamãe. Somente anos mais tarde é que descobri como os fatos ocorreram. Então, já não me lembrava de ter escondido. Somente agora, vendo a pulseira, tudo voltou à minha mente. É terrível. Pobre moça. Sou a culpada. 
— Não, mãe. Era muito pequena.
— Quero pedir perdão a ela. Vou levar a pulseira e enterrar junto ao túmulo. Me ajuda?
— Não acho correto. O que a morta vai fazer com uma pulseira?
—   Mas ela não veio buscar? Preciso ir pedir perdão.
Na semana seguinte, quando ambas encontram o túmulo de Ana, sobre ele havia uma rosa branca, murcha.






 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 11/07/2013
Reeditado em 11/07/2013
Código do texto: T4382412
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