CRIATURAS
                                               
Ana Paula aprendeu a não vibrar com alegrias nem se exceder em choro com as mazelas. Simplesmente vivia. Uma vida insossa, sem cores e sem sabores. O marido morreu e os filhos foram morar distantes. Aposentou-se.

Um desassossego dava ideia de que havia perdido alguma coisa. Era uma sensação de que algo errado. Somente isto. Foi fazendo rotina: acordar, banhar-se, ver tv, comer, rezar, dormir. Assim.

Um dia, resolveu mudar o passo. Pintar talvez fosse bom. Procurou um lugar para as primeiras lições.

Depois, quando achou que era suficiente, comprou material bastante para ficar em casa.

As obras foram surgindo, com excitação, com urgência, já nem tendo tempo para a televisão. Aos poucos, a casa ficou cheia, sem mesmo ter onde colocá-las. Tinha um gosto especial por figuras humanas. Dava-lhe vidas, criando histórias para as mesmas, em algumas sofrendo para concluí-las.

Havia uma compulsão, uma exigência que não conseguia controlar. Somente saía de casa o mínimo necessário: abastecer a dispensa, pagar contas, retirar dinheiro do banco. Ainda assim, as saídas eram difíceis, pois mentalmente ia discutindo com as criações, gesticulando, fazendo caretas. Retornava correndo, chegando ao portão ofegante, como se perseguida por seres invisíveis.

Tornou-se pessoa estranha, que causava medo aos vizinhos. Quando os filhos ligavam, demonstrava alegria, dizendo que, afora a saudade, vivia bem, não se preocupassem, que tinha um grupo de amigos com quem convivia. Naturalmente referindo-se às criaturas. Mas os filhos não tinham condições de perceber por onde deslizava a mente da mãe. Assim, deixaram-na em paz, limitando-se a lacônicos contatos, somente para confirmarem o quanto a mãe sentia-se bem sem eles.

Ana Paula foi cada vez mais se enredando. Chegou o momento em que entrava em discussão com as telas. As próprias brigavam entre si. Havia ciúmes entre elas.

Chegou o dia em que os seres se corporificaram e saíram das telas. Então, a confusão foi maior. Ana Paula já não mais tinha controle, nem de si nem das pinturas. Emaranhava-se na própria selva que construíra, adentrava por caminhos que desconhecia, embora os houvesse criado.

Quando acabara de pintar um dragão dourado, com o rosto de uma bela mulher, a confusão ficou maior. O dragão saltou da tela e assustou as demais. Houve gritos e desespero.

As criaturas imploravam que Ana Paula destruísse a obra, mas ela não tomou a iniciativa. Os olhos desmesuradamente abertos percorriam o quarto, tampava os ouvidos para livrar-se das palavras e dos gritos, sem ação, sem se mover, como se petrificada.

Entre eles iniciou-se um complô para destruí-la. O dragão balançava a cabeça, chorando, pedindo que se calassem, que não havia por que temerem. Mas a balbúrdia foi tão grande que os corpos foram se misturando, se enlaçando, formando um monte de seres estranhos investindo contra a criadora. O dragão deixou de chorar e abriu a boca, soltando labaredas.

Como um filho insistisse ligando e não recebendo retorno, pediu para a polícia verificar se havia acontecido alguma coisa.
Ao arrombarem a porta, encontraram Ana Paula carbonizada sob um amontoado de telas.



 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 10/07/2013
Reeditado em 11/07/2013
Código do texto: T4381279
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