O sonho da morte
Era uma fria noite de inverno, o vento uivava uma canção fúnebre que insistia entrar pelos vãos da janela de meu quarto, estalidos dos galhos das árvores e o som das folhas em movimento eram as únicas coisas que compunham o fundo daquela noite soturna. Havia uma áurea misteriosa lá fora, não sabia dizer ao certo por que sentira aquela sensação incógnita, muito menos explicá-la; talvez fosse pela ansiedade causada pela depressão que vinha tendo há mais de cinco meses, ou um mau agouro.
Deitei-me pra dormir mais ou menos 02h00min da manhã. O sono, insistente, lutava para não chegar. O quarto estava completamente escuro, o que colaborava para a sensação estranha que estava sentindo. Observava a escuridão com pesar. Sempre me senti bem dentro da escuridão, mas naquela noite eu a sentia empreitando-me como se estivesse brincando com a presa antes de comê-la. Eu fechava os olhos fitando à escuridão interior à procura do sono que fugia de mim. Antes de abri-los, um medo cortante envolvia meu corpo, preenchendo minha mente com a sensação de ser observado por olhos sorrateiros. O vento lá fora aumentara agressivamente, trazendo consigo, rajadas gélidas que transpassavam pelos vãos da janela. Poucos minutos e o quarto parecia uma câmara glacial. Incomodado pelo frio que agulhava profundamente minha carne enrijecida, levantei-me para ascender a luz e tomar alguma coisa quente, talvez leite, não lembro, pois o que vi em seguida me fez duvidar de tudo que estava vivendo… Meu corpo… deitado sobre a cama, descansava tranquilamente, enquanto eu o via. Estava em pé ao lado da escrivaninha.
— Não pode ser — disse em meu solilóquio.
O pavor tomara meu corpo — espírito? — por completo. Fiquei parado, absorto em pensamentos desconexos que só piorava mais ainda meus temores. Olhei ao redor, meneando a cabeça, pois era a única parte do corpo que ainda conseguia mover, e reparei como tudo parecia um fluído que se movia lentamente. Não havia densidade naquele mundo o qual entrara sem pedir licença, os objetos eram intocáveis, eram somente formas vazias que oscilavam, deixando rastros, como figuras num espelho torto. As cores como as conhecemos não existiam, somente um azul acinzentado, com grande predominância de preto, era o que ornamentava o ambiente, que seria meu quarto.
Depois de um tempo processando informações desconexas, resolvi tocar-me a face, que estava deitada, repousando num profundo sono (ou na morte?). Curvei-me sobre mim mesmo e estendi uma das mãos em direção ao meu rosto, que para meu azar, passou pela carne como se fosse nada.
— Não, não, não… o que está havendo? Que lugar é esse? Que mundo é este? — Indagava perguntas às quais não conseguia obter respostas. Tremia, pasmo com aquele mundo misterioso.
Quando percebi que não encontraria minhas respostas dentro do meu quarto, resolvi sair e procurar ajuda com aqueles que dormiam na casa. Abri a porta do quarto, que fez um grunhido de lamentos, seguidos de um baque final que ecoou por segundos uma canção tenebrosa. Um silêncio funesto manifestou-se como uma anátema que quase me fez cair de joelhos no chão. Tremia. Caminhei alguns passos até a sala, que para meu espanto, se distanciava à medida que pensava me aproximar, até que toda casa se afunilou e me vi numa escuridão infinita, buscando o corpo do meu irmão que jazia dormindo tranquilamente, como uma luz no fim do túnel. Eu corria e quanto mais pensava me aproximar, mais distante a casa ia ficando, até que desapareceu por completo, me deixando sozinho em prantos em meio àquela escuridão inefável.
Encolhi-me em posição fetal, chorando em desespero e agonia, perdido num mundo de trevas e esquecido na solidão. Quando me recompus, abri os olhos e percebi que estava num lugar estranho, macabro, parecia um manicômio. À minha frente estendeu-se um corredor, com pisos xadrez, portas escancaradas movimentavam-se sozinhas e as luzes piscavam freneticamente. A forma fluídica do ambiente deixava rastros nas oscilações que fazia, como se estivesse dentro d’água, dificultando a coerência das coisas, misturando-se num aglomerado fantasmagórico.
Caminhei relutante por alguns metros. As luzes piscando me deixavam aflito, pois colaboravam para que o medo aumentasse absurdamente, incerto de que quando a luz ascendesse alguma coisa terrível aconteceria. Parei no meio do corredor oceânico que se movimentava em pequenas ondas e avistei uma sala ao lado esquerdo. A porta estava entre-aberta, e abriu-se completamente num convite silencioso. Relutante, mas curioso, resolvi entrar. Dentro havia ferramentas cirúrgicas numa mesinha ao fundo, uma maca que parecia estar ali por uma infinidade de tempo se posicionava no meio do quarto, um grande holofote, pendurado no teto, caia aos pedaços. Adentrei no quarto sombrio e a porta fechou-se abruptamente, que revelou uma menina de cabelos pretos escorridos pela face. Ao mesmo tempo que o medo me assolara, ficara aliviado por ter alguém naquele mundo insano o qual eu tinha entrado.
— Está perdido? — perguntou a menina.
Contive as palavras por alguns segundos, pois estas tropeçaram no susto que levara ao ouvir a menina falar.
— Sim, estou perdido. Onde estamos? Não sei como vim parar aqui.
A garotinha começou a gargalhar loucamente, criando ecos que se confundia com outras vozes.
— Não sabemos como chegamos aqui — respondeu soltando risinhos sardônicos.
— Então quer dizer que existem outros aqui como nós? — perguntei a fim de encontrar outras pessoas na esperança de respostas ou de um jeito de sair daquele mundo.
— Aqui está repleto de gente como nós, mas nenhum deles poderá ajudá-lo, estão tão perdidos quanto você, não sabem mais quanto tempo já estão vagando por estes caminhos dolosos da insanidade — disse a menina.
De repente gargalhadas sardônicas começaram a se aproximar, em passos largos tentei sair no corredor pra ver quem eram, mas fui contido pela garotinha que entrou na minha frente quando estava prestes a sair.
— Não faça isso — replicou com profunda seriedade. Um de seus olhos podia ser visto por entre a cachoeira negra que escorria pela sua face.
— Por quê?
— Eles não são como nós, são seres sedentos pelo terror, vão sugar o pouco de sanidade que ainda possui para prendê-lo aqui eternamente. — disse a menina
— Se não são como nós, o que são, então? — perguntei aflito, percebendo que seria muito mais difícil sair daquele mundo do que pensara.
— Medos. São tudo aquilo que você mais teme. Eles podem ver dentro da sua alma e aterrorizar-te profundamente — a voz da menina parecia temerosa.
As gargalhadas se afastaram até que sumiram.
— Acho que já podemos ir. Venha, vamos sair daqui, não é seguro.
A garotinha abriu a porta cautelosamente, pondo a metade da cabeça para fora, verificando se o caminho estava limpo para passarmos.
Saímos do quarto e nos dirigimos até o fim do corredor, que virava à esquerda, dando de frente pra uma porta grande.
— Por aqui, venha! — disse a menina abrindo a porta.
Comecei a me sentir zonzo, e fui tomado por uma vertigem alucinante que me fez cair inconsciente.
***
— Estranho saber que ele está deitado sob esta terra úmida, silencioso, dormindo eternamente.
— Te faz pensar, né?! — Pedro perguntou absorto. — Ele sempre falou deste dia pra mim. Sempre questionei a existência da vida além da morte, mas vejo que começo a pensar diferente, acho que é o desejo de rever as pessoas que amamos novamente. Fico imaginando o que ele pensou logo depois do último gole de veneno que tomara. Não poder voltar mais atrás, encarar a face misteriosa da morte…
***
— Hei… hei, acorde! Parecia sonhar com alguma coisa importante — a menina de cabelos pretos escorridos encarava-me nos olhos com ar de preocupação.
— O que houve comigo? — perguntei.
— Antes de entrarmos por aquela porta você desmaiou. Sorte que o segurei antes que batesse com a cabeça no chão, só que isto me levou ao chão, também — sorriu a menina. Era a primeira vez que vira um sorriso naquele rosto — Com o que estava sonhando?
— Só me lembro de dois amigos que estavam conversando à beira de uma lápide, depois que acordei as imagens parecem estar se distanciando cada vez mais. Não consigo lembrar detalhadamente. Mas era algo tão… tão… nostálgico.
A menina nada respondeu. Estendeu-me a mão num gesto de ajuda para levantar-me.
Olhei ao redor e estávamos numa sala grande, cheia de quadros pendurados, alguns caídos no chão, pinturas de pessoas em prantos era o que expressava naqueles quadros. O ambiente fantasmagórico em suas ondas oscilantes fazia com que as imagens dos rostos nas pinturas clamassem por ajuda, desesperados, criando rastros de espectros perturbados. Acima, no teto, havia um lustre que soltava sutis estalidos que ecoavam pela sala; às vezes, se focasse a atenção profundamente, percebia que os sons dos vidros tilintavam uma música lúgubre, estranhamente melancólica.
— Vamos, precisamos continuar, quero levá-lo até o nosso oráculo — gesticulou, pegando uma de minhas mãos e puxando rumo à porta à direita da sala.
— Oráculo? Mas que lugar é este que até oráculo existe? — soltei um sorriso desdenhoso — Isto só pode ser um sonho.
— Ele é o único que sabe como sair desta dimensão, mas ninguém até hoje teve coragem pra fazê-lo, pois o caminho é cheio dos parasitas de sanidade. Mas quando o vi senti que seria o único que teria a coragem necessária.
— Por que não me disse isso antes? — perguntei.
— Porque não achei que fosse confiável.
— O que a faz pensar que eu seja confiável?
— Porque ainda não me causou nenhum um mal, todos aqui são violentos, perderam a sanidade e vivem vagando por realidades insanas. Chega de conversa, temos que ir andando.
Passamos pela porta, esta dava numa escadaria em espiral, que descia até os confins daquele submundo macabro. Começamos a descer, mas parei abruptamente por conta de sussurros que pareciam vir dentro da minha cabeça. Vozes estranhamente nostálgicas sussurravam coisas como cânticos ritualísticos. Novamente a tontura me veio, só que desta vez com muita mais intensidade, e cai por cima da menina que descia os degraus. Lembro-me apenas de rolarmos escadas abaixo e a visão turva dado lugar à escuridão.
***
— O que é a morte, Arthur? Essa é uma questão que ele sempre indagou, e agora ele mergulha em seus braços, embaixo dessa terra fofa, sob a companhia das larvas que devoram sua carcaça biológica.
— Já pensei de tudo, Pedro, mas nunca consigo chegar numa resposta concreta. Sinto falta dele…
***
Despertei com uma dor aguda na cabeça, havia sangue enrijecido em meu rosto. Tivera outro sonho com meus amigos, mas não tinha tempo pra pensar sobre, estava numa situação complicada, amarrado numa maca. Aos poucos a visão embaraçada foi limpando, aos fundos, vozes fantasmagóricas balbuciavam sobre alguma coisa informal.
Fui levantado abruptamente por um ser que só pude ver a sombra de forma abstrata. Ele estava atrás da maca, andando calmamente de um lado para o outro, mexendo nas ferramentas cirúrgicas. Em gritos de desespero pedi para que me soltassem, mas apenas ouvi um gruído sardônico vindo detrás de mim.
Estava numa sala médica, disso eu sabia. Havia coisas como bisturi, cateter vascular, conector tubular, entre outros equipamentos que me eram desconhecidos. De repente, uma coisa medonha, de forma grotesca abriu a porta e dirigiu-se até mim com uma seringa enorme. Comecei a me debater em desespero, mas nada pude fazer, somente o medo era real naquele instante.
— O que vai fazer comigo, seu maldito, desgraçado? — comecei a gritar loucamente rompendo as barreiras que me impediam de mergulhar na insanidade.
— Simplesmente vou dar-te uma injeção de realidade — disse.
— Mas o que é isso? Onde está a garotinha que estava comigo, maldito?
— Ela está morta, tivemos que tomar precauções precipitadas a respeito de sua existência. Ela vem atrapalhando nossos planos há muito tempo. Ela engana todos aqueles que entram neste mundo, fazendo-os acreditar nela, para que fiquem presos aqui, assim como fez com nós. Esta injeção irá despertá-lo para a realidade que você pertence, pois ainda possui sanidade. Quanto mais tempo ficar neste mundo, mais louco você vai ficando. Agora, estenda o braço.
— Não, não, não! Pare, por favor! O que está acontecendo? — o nó na garganta fora rompido pelo desespero do que viria a seguir.
Senti a agulha penetrando a pele como facilidade. Um líquido viscoso entrou pela veia com dificuldade e pude senti-lo correndo pelo corpo, fincando agulhas em cada centímetro das minhas células. Uma viagem atordoante começara alguns segundos depois. Todo o ambiente se misturou num aglomerado fantasmagórico. Vi-me caindo no olho de um furação insano, cheio de vozes e coisas horrendas me estendendo as mãos, coisas sem formas concretas, como fluídos gosmentos que giravam em torno de mim.
Caí num lugar cheio de fetos magros, ainda na placenta. Estendiam-me as mãos rudimentares. Pedaços de vísceras escarlates compunham uma piscina de sangue e talhos de carne. O cheiro pútrido preenchia meus pulmões fazendo o vômito jorrar como uma cascata. Os fetos rodopiavam ao meu redor, numa dança de números quebrados. Caos de corpos orgânicos disformes rebentavam cérebros como bolhas febris de água fervente. Uma criatura subiu em cima de mim, estendeu uma mão em direção à minha face e disse: — Acorde!
***
— Bem, vamos embora, Arthur. Ficar aqui olhando a lápide dele só me traz pensamentos ruins.
— Sim, vamos, Pedro.
***
Acordei ofegante em minha cama, com a sensação de dejá vu. O quarto estava do mesmo jeito de antes. Estava em minha casa, e isto me fez explodir de alívio. Fora tudo um sonho.
***
— Vamos embora, Arthur.
— Sei lá, cara, é estranho, às vezes tenho a sensação de que ele não morreu. Como se apenas tivesse despertado numa outra realidade. Talvez não exista morte, e ela nada mais seja que uma passagem de um sonho para aquele que morre… Talvez a vida seja apenas um sonho que despertamos em outros sonhos, dependendo da sua própria mente os estados de realidade em que vai nascer… Assim como a crença no inferno, caso seja mais forte que a crença na salvação, seja isto que aguarde os cristãos no calvário dos sonhos da morte.