A espera
Considerei por fim que o céu é uma instituição cínica, dissimulada. É, de um só tempo, vários e uno, pardo e alaranjado, chuvoso e crepuscular; por vezes é madrugada densa e, num átimo, uma manhã asseada e juvenil. Tudo isso, sem deixar de ser o mesmo zombeteiro enigma que paira sobre a vida com uma indiferença irredutível, como um casco. É a mesma entidade expectante e desastrosa. E foi este céu a minha testemunha de tantos anos desperdiçados em vão pensamento, em um embalo opaco e triste, tal qual o ritmo em que dançam todos os pobres-diabos destinados a solidão.
Deixei-me estar quase perfeitamente inerte na varanda de Pietra, fumando e olhando o tráfego de solitários transeuntes que passavam lá embaixo, parecendo figurantes de cinema mudo; e tudo parecia mesmo um eterno ensaio preto e branco que só não era pleno porque se sobressaia o cinza desse jogo xadrez, o cinza que cobria tudo. E meu corpo estava coberto pelas cinzas de meus cigarros, que preenchiam também o chão e o ar já tão precariamente respirável. Todavia não deixei de esperar. Em algum momento Pietra não deixaria de chegar, eu estava certo disso; esperaria até o fim. Então esperava insensível aos gracejos dos fantasmas e dos demônios, dos anjos e dos santos, tampouco me inspirava algum temor e presença resoluta dos assassinos de aluguel que passavam rente a mim, assoviando melopeias de morte, estalando pistolas de prata.
Esperei por anos; quando o cigarro acabava, mendigava os trocados dos burgueses com a mesma falta de pudor que catava restos de comida nos latões de lixo que formavam fileiras intermináveis naquele bairro de mexicanos. Pietra insistia em não chegar, por vezes até cogitei com tristeza que estivesse morta, ou que algum lunático lhe tivesse feita prisioneira, todavia logo rechacei essas ideias precipitadas, Pietra nunca se deixaria prender ou matar que não por minhas mãos.
E assim foi, chegou com tanta naturalidade que quase acreditei que eu é que entrei a esperá-la cedo demais, que ela estava perfeitamente pontual. Sorriu-me seu riso de louca e passou as pontas dos dedos em meu rosto sujo e roçou-me nuca, por debaixo de minha cabeleira morta. Empurrou a porta que estava apenas encostada e me fez entrar. Era tão bela que tive pena de mim. Os olhos grandes me olhavam com malícia enquanto eu sondava sua boceta com as mãos trêmulas, nossos lábios quase colados. “Como está velho”, disse-me Pietra depois que descolei minha boca de seus seios mansos. “Assim estou por ti”, disse sabendo que isso a lisonjearia e que ficaria substancialmente mais tarada de amor. Ela me sorriu e me aconselhou que deixasse de preciosismo, pois muito ainda tínhamos por esperar, pois outros como nós estavam a caminho e deveríamos povoar o mundo com nossa estirpe, enchê-lo de ervas daninhas a fim de equilibrar o mundo dos deuses, pois sim, alucinada, dizia que éramos deuses e capachos dos deuses e dos mortos. Deu, do meio para o fim, para falar em algum idioma indecifrável, e eu só a entendia mesmo pelos seus trejeitos mudos, e seus pedidos e comandos de olhares. Então nos pusemos a esperar que chegasse a grande catástrofe, enquanto eu a matava milímetro por milímetro, todos os minutos.