Os românticos

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O romantismo ressuscitou.

Entediado com as crueldades dos facínoras e a omissão dos justos, decidi visitar alguns amigos. Arrumei-me, pus meu terno preto – abri mão da brilhantina nos cabelos e da flor vermelha grudada junto ao peito, bem no rumo do coração... Limpei minha testa com o lenço branco; dobrei-o, coloquei-o no bolso, beijei minha amada... E fui.

Cheguei. Parei o carro. Olhei a inscrição exordial, no alto do frontispício, e resolvi entrar, pois a solidão da vida me impelia àquele lugar. Desci do carro e entrei, deixando para trás a inscrição: Cemitério São João Batista.

Passeei junto a alguns túmulos e muitos me seguiram. Estavam calados e, apesar do silêncio, eu me sentia entre amigos. Eles olhavam para os paletós desgastados, estranhavam o mofo, mas, depois de darem algumas batidinhas nas peças das vestimentas, espantando a poeira, colocavam os chapéus e partiam.

Álvares de Azevedo mantinha no bolso superior esquerdo o lenço azul-marinho trazido da Alemanha há exatos dois anos antes de morrer. Coincidência ou não, ele acaba de cotejar duas datas: 12 de Setembro de 1831 e 25 de Abril de 1852. Acima da primeira referência temporal, outro escrito: “Aqui jaz” – Ele evitou ler o nome. Pareceu reflexivo.

Aos poucos, assobios e declamações se tornam a tônica do concerto. Parecem afiar a voz, desenferrujando o verbo. Sorriem e buscam, nas reminiscências, as tiras do passado. Álvares inicia: “É formosa, meu Deus! Desde que a vi na minha alma suspira a sombra dela. E sinto que podia nesta vida num seu lânguido olhar morrer por ela”.

Procuro identificar a musa que o inspirara. Haveria alguma mulher entre nós? Ao redor, entretanto, além de túmulos e cruzes, apenas os amigos poetas que se achegavam, agora mais confiantes e à vontade, apesar da minha presença. Não havia nenhum medo – eles me compreendiam. Estávamos alheios ao mundo, entre tumbas e fotos. Aproximo-me de Álvares. Ele retorna ao estado do silêncio. Parece tristonho. Dentro de um dos mausoléus observo uma foto. É para ela que ele fulmina o poético e sofrido olhar.

– Por que diabos tu choras, meu amigo? – pergunta Gonçalves Dias ao plumitivo. – E por quem? – continua.

Ainda agarrado à grade sepulcral da bela senhorita da foto, a resposta:

– Ela silencia.

– “Ela ama a solidão, ama o silêncio, ama o prado florido, a selva umbrosa...” Vamos em boa hora, pois o mundo nos espera! – responde Gonçalves Dias, caçoando do amigo.

– Ah vida! Eterna fuga, permanente ilusão. “Vivi a solidão, odeio o mundo, e no orvalho embucei meu rosto pálido como um astro na treva...”. Ela me ignora, Gonça! Como somos tolos e como são tiranas todas as mulheres! Elas nos enfeitam a vida com o gracejo do espanto ao primeiro olhar, mas, furtivas, alimentam nosso mordaz desejo quando nos ignoram. Ela silencia, amigo. Ela silencia...

Almeida Garret se aproxima. Sorri e zomba do inglório amigo:

– Vavá, exaspere-se, claro! Elas merecem qualquer constrição. “Este sonhar acordado, este cismar poético diante dos sublimes espetáculos da natureza, é dos prazeres grandes que Deus concedeu às almas de certa têmpera”. Não sei quanto aos homens, mas foi Deus, certamente – foi Ele, sim, – quem inventou as mulheres.

Os amigos tentam sair do cemitério. Dão as mãos e ensaiam versos para a próxima pândega. Haverá sarau na casa do Barão de Cafundó. Ao cruzarem o portão onde se destaca a inscrição “Última morada”, uma voz os assombra:

“Alma minha gentil, que te partiste tão cedo desta vida, descontente, repousa lá no Céu eternamente e viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento Etéreo, onde subiste, memória desta vida se consente, não te esqueças daquele amor ardente que já nos olhos meus tão puro viste”.

Álvares, emocionado, comenta:

– Grande amigo Camões! Como me consola o calor da sua preocupação. Este amor de agora, que me parece infindo, está me consumindo a alma viva, apesar de a morte ser um mal inebriante.

Parecendo alheio aos apelos, a voz continua:

“E se vires que pode merecer-te alguma cousa a dor que me ficou da mágoa, sem remédio, de perder-te, roga a Deus, que teus anos encurtou, que tão cedo de cá me leve a ver-te, quão cedo de meus olhos te levou”.

Eles cruzam a alameda. No muro do campo-santo, numa das esquinas, existe uma barbearia. Resolvem ir até ela. Há cadeiras vazias. Sentam-se. Alguns são atendidos. Outros conversam. De repente, durante o segundo verso do último terceto de um alexandrino de Vinicius, três indivíduos, estranhos ao grupo, surgem, atrapalhando a declamação de Álvares. O fígaro os cumprimenta, aparentando intimidade:

– Bom dia Senhor Machado! Como está Vossa Senhoria, Seu Raul? Vamos sentar Senhor Visconde! A casa está cheia, mas acomoda todo mundo.

Casimiro de Abreu olha para os amigos e comenta:

– Machado de Assis, Raul Pompeia e Visconde de Taunay não deveriam estar aqui! Entram em nossas cercanias para caçoarem de nós. Isso não vai acabar bem!

Machado de Assis, cutucando o Raul, assevera:

– Mundo cruel! Entender as entrelinhas da realidade humana é muito mais que morrer de amores por frívolas moçoilas que passam, seduzindo os tolos com requebros de maldade.

Álvares, que estava sentado olhando a foto da senhorita, quis levantar-se.

– Ainda não acabou, senhor! – diz o barbeiro. – Falta o cavanhaque.

– É incrível como o tempo nos modifica os pensamentos! – comenta Gonçalves Dias, levantando-se. – Não foi você quem escreveu que a mão do tempo e o hálito dos homens murchem a flor das ilusões da vida, musa consoladora. É no teu seio amigo e sossegado que o poeta respira o suave sono?

Machado silencia. O sino da capela toca doze badaladas e os túmulos são preenchidos pela magia do tempo.

Transtornado, sentado no bar que margeia o Cemitério, espero que a noite seguinte me alimente de novos versos, banhando-me o devaneio, pois enquanto há vida e medo, somente na loucura encontro a lucidez necessária para viver nesse orbe de aparências.

Juazeiro do Norte-CE, 08 DE Abril de 2012.

11h01min

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 20/05/2013
Código do texto: T4299772
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