Aldravia Mental
O concreto das paredes do prédio mais pareciam paredes de um freezer. O que havia acontecido com o mundo? Uma espessa camada de neve cobria cada canto de cada lugar. Não restava muito o que fazer, não restava muito o que comer, não restava quase nada.
Ele estava correndo há tanto tempo que nem sequer lembrava do próprio nome. No começo correu várias vezes em torno de sua vizinhança para que pudesse lembrar pelo menos do sobrenome na caixa de correio, mas depois de tanto se confundir entre Tyler e Smith, decidiu que não precisava mais de algo para ser chamado.
Precisava correr. Não podia parar nem sequer por um minuto. Toda vez que seus pés faziam o mesmo caminho por muito tempo, mudava sua rota. E ainda assim estava com rasgos gigantescos em suas solas.
Não havia mais alma ao seu redor. Apenas a Neve. Branca, macabra, dominante. O Sol não era suficiente para aquecer nada e as fogueiras morriam tão rápido quanto aqueles que tentavam sobreviver.
A única rota de fuga era seu próprio organismo. Correr para se manter vivo. Correr para não cair congelado junto aos corpos de milhares.
Mas estava tudo bem. Havia se acostumado com a correria. Havia se acostumado a fazer tudo numa velocidade bem maior que deveria. E por incrível que pareça, seu corpo não pedia por ajuda. Talvez pedia. Não que sua mente realmente lhe deixasse ouvir algo.
Nas primeiras semanas houveram sobreviventes. Pessoas que se reuniam ao redor de uma fogueira. E no começo realmente parecia surtir efeito, ainda que o objetivo não fosse sobreviver, e sim morrer de forma confortável. Uma pena.
Agora não restava mais ninguém. Apenas "Ele" corria por entre os carros, os manequins, os prédios, os corpos.
A parte mais medonha de seu dia era quando escorregava num braço ou numa perna no chão. Cair sempre foi e sempre será uma arte. Sorte que Ele o fazia com maestria, caia ao chão na mesma velocidade que levantava e, antes que pudesse entender o que tinha acontecido, estava já alguns metros de distância do local da queda. Correndo. Sem parar.
Os medos, aos poucos, foram se esvaecendo em sua cabeça. Becos sem saída não eram mais problemas. Tropeções eram controláveis. Comidas e bebidas já estavam mapeadas em sua cabeça. Buracos eram tão visíveis como uma supernova. Nada a se temer.
Enquanto fazia sua rota de sempre, passo pós passo, sem parar, encontrou um lago cuja espessura do gelo era tão grande quanto a do concreto.
Era linda a forma como a Neve gostava de se marcar. Deixar perpetuado cada momento de sua existência. Mas até mesmo a Neve precisa apagar seu passado e se renovar.
Ele pensava no próprio peso. Havia corrido tanto que, pelo menos um pouco, deveria ter emagrecido. Ao mesmo tempo, sua única companheira, a Neve, apenas acrescentava peso em suas costas, caindo todos os dias, incansavelmente, equiparando e equilibrando o peso que havia perdido.
Seus devaneios os levaram longe sem nem perceber que já estava no meio do lago. Sem nem perceber que o gelo havia ficado mais fino.
Logo que a primeira rachadura se fez presente, começou a correr em outra direção. Este foi seu único erro.
Uma flor aquática. Viva. Intacta. Havia até um buraco no céu por onde a Neve não descia. Uma parede singela de pureza estava ao seu redor.
Parou.
Parou para apreciar a Flor. Uma belíssima Flor Branca. Tão branca quanto a Neve. Mas no exato momento em que parou, sentiu uma dor gigantesca nos músculos. Como se o frio fizesse cada membro atrofiar um pouco de forma imediata.
Sabia que estava atrofiando quando percebeu que, à medida que a dor - que mais parecia de cortes de dentro pra fora - ia aumentando, a Flor ia se contraindo e murchando. A parede invisível que impedia que a Neve lhe alcançasse ia ficando cada vez menor.
Com muito medo e esforço, levantou uma perna e tentou dar o impulso inicial para correr. Mas a força necessária para aquilo era tão grande que seu pé encostou no gelo de forma bruta, num impacto assustadoramente grande.
A Neve havia vencido.
Lindo e trágico. A forma como o frio ia corroendo cada músculo do rapaz de nome incerto e idade desconhecida. Seus pés pareciam estar amarrados a algo que os impedia de dançar ainda mais dentro da água que, por sua vez, fazia esforço para que cada molécula de H2O sufocasse e puxasse para baixo o corpo do rapaz e as pétalas da Flor.
Segundos. Cinco ou dez segundos. Mas que pareciam horas.
O desespero, por fim, se converteu em arrependimento. Queria apenas levantar a cabeça para fora d'água e pedir desculpas para Flor. Juntos, morreram separados.
Fechou os olhos. Não sentia mais frio.
A sirene do fim das aulas do dia soava loucamente, fazendo com que Raphael se levantasse num susto.
Que sonho sinistro havia sido aquele?
Olhou em volta enquanto suas mãos faziam um movimento robótico e frenético de guardar os materiais escolares.
Percebeu então o porquê de cair no sono no meio das aulas. Seu corpo automatizado simplesmente havia entrado em colapso, mas ainda assim agia de forma fiel e escrava a seu favor.
Talvez, de fato, não estivesse sonhando, pois quando deu seu primeiro passo depois de levantar-se da carteira, enxergou que não havia tanta diferença assim entre seu sonho e a realidade.
Não havia mais alma ao seu redor. Apenas o Frio. Mórbido, macabro, dominante. O Sol não era suficiente para aquecer nada e as fogueiras morriam tão rápido quanto aqueles que tentavam sobreviver ao gigantesco oceano de opressão à inovação.
Mas numa análise mais cautelosa, ainda existiam sobreviventes que, mesmo estando massacrados, encontravam um pouco de ar puro em seus atos.
Abriu os olhos num espanto. Deixou pro lado a Fadiga.
Correu.