Trinta e um de Maio
Cheguei em casa depois das seis naquela sexta feira.
Já havia escurecido e fazia um frio quase desagradável. Minha chave custou a entrar na fechadura do portão velho. Pelejei, xinguei e chutei, até conseguir abri-lo.
Com certeza foi o acontecimento mais emocionante do meu tedioso dia até o momento.
Segui até o quarto e esvaziei minha mochila de seu conteúdo.
Liguei o computador e botei alguma musica para distrair minha mente.
Fui a geladeira e abri uma cerveja.
Aquele dia era quase especial para mim. Antigamente, era carregado de ansiedade...
Hoje, era carregado de angústia... E tédio.
31 de maio, véspera de meu aniversário.
Logo eu faria vinte e sete anos. Sentia-me estranho diante daquela cifra.
Vinte e sete.
Deitei-me em minha cama e tentei repassar na cabeça todos os meus aniversários anteriores.
Tentei repassar minhas conquistas e perdas até aquele dia.
Algo dentro de mim dizia-me que o saldo da balança estava negativo. Que minhas últimas escolhas não foram as melhores.
Para quem olhava de fora, eu tinha uma vida quase perfeita. Era um jovem com um futuro promissor.
Sempre que alguém me dizia isso, eu tinha que me segurar para não mandar a pessoa se foder.
Naquele dia, não havia ninguém no mundo que pudesse me convencer que meu futuro era promissor. Nem se o próprio Cristo descesse da cruz para me falar isso.
Minha vida, na minha ótica juvenil, estava uma bagunça.
Era merda viva, como gostava de dizer o meu pai. Não sei por que, o velho adorava esse termo.
Eu sentia que tinha tudo e ao mesmo tempo não tinha nada.
Estudava na maior faculdade do país. Terminava um Doutorado em precoce idade.
Financeiramente não ia bem, mas não ia mal. Nada me faltava.
O que eu poderia querer mais?
Bem, as pessoas esqueciam-se de considerar que eu estava longe de minha casa.
Da minha terra, da minha cidade, da minha família, dos amigos mais próximos.
Minha vida pessoal estava longe de ser satisfatória... Pelo menos aos meus olhos.
Faziam três anos que estava naquela situação. Faltava pouco mais de um ano para que eu entregasse minha tese e pudesse voltar para casa.
Para mim parecia uma eternidade. Tanta coisa mudara que eu quase não me reconhecia.
Nesse período, eu tive casos com diferentes mulheres. Acho que mulheres demais até.
Duas delas fizeram diferença.
Duas ainda faziam diferença.
A primeira me deixou logo que vim para esta cidade distante.
A segunda ocupou-lhe o lugar. Inicialmente, tratou de organizar o que a outra deixara bagunçado, e por um momento achei que aquilo fosse ser definitivo.
Mas os dois mil quilômetros que se interpunham entre nós provaram ser um desafio para qual nós não estávamos prontos. Acabou-se enfim.
Era nela que eu pensava nas minhas constantes viagens entre a casa e o exílio.
Era nela que pensava, quando fazia planos de erguer um lar quando retornasse.
Sentia-me, de certa forma, um idiota, pois usei aquela mulher de alicerce para meus castelos de areia. Desabaram todos. Torres, muralhas, jardins... Só sobrou o fosso.
Fosso em que me afogo hoje. Cheio de piche, em vez de água.
Só sobrou o vazio que eu tinha antes de encontrá-la.
Naqueles dias, eu sonhava constantemente, com estas duas mulheres.
A primeira, hoje, seguia a vida distante, alheia a minha existência.
Da segunda, não sabia o paradeiro e preferia não saber. Se sentia minha falta, se ainda pensava em mim... Aquilo tudo não me interessava.
Em resumo... Não tendo nem uma, nem outra, sentia-me sozinho e sem muitas perspectivas.
Eu passava os dias sem pensar muito nessas coisas, mas vésperas de aniversário são datas que nos fazem repensar a vida.
E era exatamente isso que eu estava fazendo naquele trinta e um de Maio.
Repensando.
Regando tudo a Chico Buarque e cerveja de trigo.
Não fazia ideia da importância daquele momento... Nem o que ele significaria para mim.
Simplesmente fechei os olhos e deixei a música e a cerveja fluírem para dentro.
De certa forma, aquilo me dava algum prazer.
Foi ali, que percebi,
Tragédias à parte, tudo o que eu estava passando, toda aquela solidão, toda aquela reflexão e todos aqueles altos e baixos... Tudo aquilo fazia parte de mim.
Aquilo tudo me definia.