A Protetora de Seogh

Acordei suavemente do meu sono pesado, abrindo os olhos só um pouco. Esperava como sempre ver os caibros e o teto de madeira do meu quarto, mas ao invés disso vi o céu estrelado e a lua cheia, linda e brilhante, iluminando a noite.

Esta visão somada ao sacolejar constante do que seria minha “cama” me lembrou da minha situação real: eu estava acorrentada à uma espécie de carroça, na verdade um pedaço grande de madeira sobre duas rodas e puxada por dois cavalos reais; estava sendo levada pela velha estrada de terra que separava o Vale de Sirah-Mad da área central do Reino de Seogh.

Guardas reais do rei Hagri haviam me caçado, e mesmo com minha fuga alucinada pela floresta obscura de Seogh, eles conseguiram me alcançar, me infligindo uma forte pancada na cabeça que acabou por me desacordar.

Agora estou sendo levada prisioneira até o castelo. Os pensamentos do que poderia me acontecer me afligiam. O Rei Hagri tinha a fama de ser impiedoso com os infratores, que ameaçavam a paz do reino de alguma forma. Para alguém como eu, uma aspirante à protetora que havia causado discórdia entre a família real, a pena certamente seria severa, apesar de pertencer à família Snyl - dona de uma reputação impecável de mais de 5 gerações de protetores mestres. Eu estava a caminho de me tornar uma exímia protetora também, sendo a filha mais velha.

Até que cometi um crime: conheci o príncipe Henry, filho do rei Hagri, belo rapaz de cabelos castanhos e olhos azuis como o céu, sorriso marcante... entre nós aconteceu uma calorosa amizade bem vista e permitida, seguida de um relacionamento amoroso às escondidas, proibido.

Protetoras não se casam com príncipes; príncipes se casam com princesas. Sempre foi assim, e assim reinou a paz por muitos anos. Não sabíamos o que fazer, planejamos fugir e abdicar de tudo para o que fomos preparados, mas antes disso fomos descobertos, é claro. Fugi imediatamente, e o príncipe correu para junto a seu pai para tentar interceder a meu favor, mas não adiantou: a ordem foi dada aos guardas reais, e cá estou eu.

Remexi-me furiosamente, mas não havia como escapar daquelas algemas apertadas e encantadas, e mesmo que conseguisse havia dezenas de guardas ao meu redor, de modo que não iria muito longe.

Eles sabiam que eu estava a um passo de tomar posse da minha função, o que significava que já podia dominar quase completamente os meus poderes, e minhas inúmeras habilidades eram praticamente insuperáveis.

Enfim, após cerca de 1 hora, chegamos à área central do Reino de Seogh. Logo já estávamos adentrando os portões da propriedade exclusiva real, e foi neste ponto que os guardas pararam e me retiraram daquela carroça ou fosse lá o que fosse.

Minhas mãos e pés permaneciam acorrentados, e eu mal conseguia andar. Se ao menos meus pés estivessem livres certamente escaparia sem o menor problema, mas eles, claro, estavam cientes disso.

Fui levada até a presença do rei Hagri, e quando adentrei o salão real me deparei com ele sentado sobre o trono e ao seu lado estava príncipe Henry, que não se conteve e gritou meu nome ao me ver. Ele se levantou e correu em minha direção, mas à um sinal do rei, os guardas o impediram de chegar até mim.

Olhei para ele com a expressão mais serena possível. Uma verdadeira protetora jamais se mostraria abatida, e mesmo que eu fosse destituída da minha função meu coração permaneceria para sempre de protetora.

Então o Rei Hagri se levantou de seu trono - algo que surpreendeu a todos pois o protocolo seria que esperasse sentado - e caminhou ao meu encontro. Os guardas continuaram indo em sua direção, até que o rei fez um gesto para que eles parassem e me soltassem. Ao fazerem isso, eles se curvaram em respeito e deram alguns passos para trás.

Permaneci parada, e quando o rei se aproximou me curvei diante dele e encontrei forças para dizer:

- Majestade... - minha voz saiu fraca, mas firme. Mantive a cabeça baixa.

- Shariih Snyl... - disse o rei.

Pude sentir seu olhar sobre mim. Ele segurou o meu queixo e me fez olhá-lo nos olhos, olhos azuis severos, porém amáveis de alguma forma. Senti vergonha, pois estava suja, descabelada, na posição de criminosa, enfim, numa situação realmente deplorável.

Então o rei continuou a falar:

- Sabe, entendo perfeitamente porque meu filho se encantou por você. É realmente uma moça bonita. Linda, eu diria. Dona de serenos olhos verdes, firmes, cabelos longos e negros que caem como uma moldura por sua face... tem uma voz que ao mesmo tempo é doce e autoritária, e possui todos os quesitos necessários para uma protetora de confiança do reino. - ele fez uma pausa de efeito - Mas o que aconteceu? Como pôde se meter nesta encrenca?

Levei alguns segundos para perceber que não era uma pergunta retórica.

- Majestade, peço perdão. Minha intenção jamais foi ofender ou me opor à paz e à ordem do reino.

- O problema não é minha capacidade de perdoar, minha cara. O perdão é sublime, mas melhor do que pedir perdão é procurar evitar situações nas quais tenha que fazê-lo. Sabe muito bem o que eu faço com infratores e criminosos: eles são castigados conforme sua infração ou crime. Prezo muito seu trabalho, sei que você, Shariih, é a mais aplicada aprendiz Snyl dos últimos tempos, mas não posso ficar indiferente à isso. - então ele ergueu a voz e deu a sentença - Prisão por tempo indeterminado, mínimo de 10 anos! Tirem-na da minha presença! - tendo dito isso o rei se virou e começou a caminhar em direção ao seu trono.

Eu não reagi, apesar do enorme aperto no peito me contive, e apenas olhei para Henry, que tentou novamente correr em minha direção, mas foi impedido pelos guardas que ainda o seguravam. Ah, se ele soubesse o segredo que eu escondia dele... certamente encontraria mais forças para vencer todos aqueles guardas, mas era melhor não contar. Bem, em pouco tempo de qualquer forma todos saberiam.

Em silêncio fui levada à prisão, masmorras de Seogh, e fui trancafiada na cela de segurança máxima, vigiada por 14 guardas dia e noite. E mesmo assim minhas correntes não foram tiradas.

Sentei-me no chão frio da cela, bem no canto, o mais longe possível da vistas dos guardas, e chorei ali, procurando controlar os soluços para que ninguém me ouvisse.

Acho que chorei silenciosamente por horas, até que ouvi um som estranho. Segurei a respiração para poder ouvir melhor, pois o ruído era muito baixo.

Percebi então que era um som de atrito entre pedras assim que vi que um tijolo fora deslocado, bem ao lado de onde eu estava sentada. Então, por aquela pequena fresta, vi o brilho de dois olhos que me assustaram inicialmente, mas depois percebi que eram amigáveis.

- Shariih? - sussurrou o indivíduo. Fiquei tão estupefata que não consegui responder, de modo que ele continuou - Sou eu...

Tentei reconhecer a voz, mas por mais que eu me esforçasse não consegui me lembrar quem poderia ser. A princípio pensei que poderia ser Henry, mas sua voz e até mesmo o seu sussurro eram inconfundíveis para mim.

- Desculpe, quem é você? - sussurrei, e olhei na direção dos guardas, que pareciam não haver notado o pequeno movimento nos fundos de minha cela.

- Sou eu, Rei Hagri!

Me voltei com espanto. Estava boquiaberta. Esperaria que até um anjo viesse falar comigo na prisão, mas a última criatura com a qual eu contaria seria o Rei Hagri.

- Está falando sério? - parecia ainda mais provável alguém me pregar uma peça do que o próprio Rei Hagri me visitar na prisão.

- Sim sim, agora escute, não temos muito tempo! Eu vim te ajudar, Shariih! - agora a voz estava mesmo parecendo com a do rei.

- Ajud... - comecei a falar.

- Psiu, presta atenção em mim! Vim te ajudar a se libertar! Mas jamais, em nenhuma hipótese, poderá dizer que fui eu quem ajudou, tudo bem?

- Sim!

- Prometa que não vai contar!

- Eu prometo, em jogo está minha honra de Protetora Snyl. - essa era a palavra de uma protetora, e desonrá-la traria graves consequências.

- Muito bem. Vou dar-lhe as palavras-chaves de suas algemas. Assim que se libertar, usará seus poderes de protetora para escapar. - As palavras-chaves que abriam as algemas eram ultra-secretas, apenas o rei e os guardas cuja lealdade já havia sido provada sabiam. O fato do rei se prontificar a me revelar significava que, por algum motivo ainda desconhecido, eu era digna de sua confiança.

- E depois, Majestade? Para onde irei?

- No castelo há muitas passagens secretas, e dentre elas há 7 que são encantadas e te levarão à lugares especiais. Você irá sair daqui e se dirigir à sala do trono. Partindo do meu trono, a sétima coluna à direita, possui um desenho de uma águia. Toque os olhos da águia da seguinte maneira: primeiro o olho esquerdo, depois o direito, em seguida, esquerdo 2 vezes e direito 3 vezes, e se revelará uma passagem dentro da coluna. Passe rapidamente, pois ela se fecha quase imediatamente. Entendeu?

- Sim, Majestade. Mas onde eu vou parar?

- Na Campina de Atrebh-Or. É um local distante e seguro. De lá, saberá o que fazer em seguida, não se preocupe. Apenas vá, tudo bem?

- Sim, Majestade. Mas posso perguntar por que está fazendo isso por mim?

- Porque eu já esperava por você há um bom tempo, Shariih. Finalmente entre nós se manifestou a Protetora da Profecia!

- O quê? Que profecia?

- Depois explico melhor, Shariih. Mas meu neto será importante para o Reino de Seogh. Um verdadeiro libertador!

- Neto? – espantei-me

- Seu filho, Shariih, com meu filho Henry. Meu neto que nascerá em alguns meses.

Não sei como ele sabia. Nem a Henry tive tempo de contar. Mas o Rei Hagri sabia que eu estava esperando um filho de Henry. E como se lesse meus pensamentos, ele disse:

- Sim, minha querida Shariih, eu sei. Meu neto está em seu ventre e preciso cuidar para que ele nasça em segurança. A profecia já começou a se cumprir, a guerra será travada, mas se fizermos tudo certo... venceremos!

E foi assim que começou minha saga pela libertação do Reino de Seogh.

A Guerra ainda não havia começado, mas não importava: quando for travada, já estaremos prontos para vencê-la. Palavra de Protetora Snyl.

Dâmaris Góes
Enviado por Dâmaris Góes em 07/05/2013
Reeditado em 07/05/2013
Código do texto: T4278244
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