O Uirapuru e a Lua Grande-Parte I

O sol caminhava muito ligeiro para se esconder na grande curva do Rio Guaporé... Não, Doutor! Não era aquela curva de quem zarpa do trapiche do Seringal Três Sentinelas no rumo de Costa Marques... Não senhor! Era a outra curva... Aquela de quem sai do Três Sentinelas em direção a Guajará Mirim.

Lhe digo com toda a certeza, Doutor! Tem dia que as nuvens estão tudo espalhada pelo céu... Ficam assim... Como é que eu vou lhe dizer Doutor... Parecendo renda de bilro! Falando nisso, minha mulher, a Esmeralda, faz cada renda que é uma belezura, Doutor! Aí, “seu” Doutor, o Sol fica que meio escondido no meio delas... E aí, “seu” Doutor, os raios dele, Doutor, se atravessa no rumo dos altos das árvores e se esparrama nas águas escuras do Rio Guaporé, Doutor... E aí, Doutor, é o maior espetáculo que a gente já viu neste mundo, Doutor! O verde das matas muda de cor... Deixa de ser verde, Doutor! Fica meio de cor de ouro, Doutor! E o céu, Doutor? Fica cheio de raios encarnados, amarelos, cinzas e azul meio clarinho; às vezes meio cambando pro chumbo e, outras vezes, meio cambando pro algodão...

E as araras, os tucanos e os papagaios, Doutor? E as curicas? E os marrecos? E os periquitos? E as ciganas voando meio por cima das canaranas, Doutor? Tudo atravessando o céu no rumo dos ninhos, Doutor? No meio daquela belezura de lugar, Doutor, a impressão que o vivente tem é que está no meio do paraíso! Os bichos de pena enfeitando o céu, as matas e o ar, “seu” Doutor!

Me diga, Doutor! O senhor já viu um fim de tarde numa curva do Rio Guaporé, Doutor? Sei...! Sei Doutor! O senhor quer saber do acontecido no dia, quer dizer, na noite da Lua Grande!

O quê? Sim senhor...! Entendi sim senhor! O senhor está chegando agora e preocupado com o seu trabalho nunca prestou atenção numa porcaria de fim de tarde ou na porra de um Por-do-Sol numa merda de curva de rio... É uma pena, Doutor! É muito triste o senhor não saber apreciar o que é bonito... O senhor não sabe o que está perdendo... No refrigério que isso seria para a sua alma...

Calma “seu” Doutor Delegado! Que o senhor é uma autoridade? Eu sei sim, Doutor! O quê, Doutor? O senhor não quer saber o que eu acho? Não tem importância, Doutor, vou falar assim mesmo! Eu acho que o senhor devia de se dar ao respeito, não sabe Doutor? Isso mesmo, dê-se ao respeito! Como é que o senhor me manda enfiar o meu Por-do-Sol duma merda de curva de rio naquele lugar, Doutor?

Vixe, Doutor! O senhor vai me prender? Mas como? Eu não fiz nada! Só porque falei umas verdades pro senhor, Doutor? Doutor, não se esqueça, foi o senhor quem foi lá no meu tapiri me chamar pra vir aqui contar o acontecido naquela noite de Lua Grande... E tem mais, Doutor! Eu só vou repetir para o senhor, Doutor, o que o Joca Aruanã falou para mim, Doutor!

Está bem, Doutor Delegado, eu vou... Como é que o senhor disse? Me ater... Falando nisso... O que diacho quer dizer “ater”, Doutor? Sim senhor! Entendi sim, senhor! Quer dizer me concentrar só no que interessa! Manter o foco... Está bem, Doutor! Eu vou me ater somente aos fatos... Desculpa Doutor, mas, “fato”, não é “tripa”, “buchada” de vivente? Não, Doutor? Quer dizer então que significa “acontecimento”? É mesmo? Quem diria, hem Doutor?

Como o senhor disse, vamos aos “fatos” que interessam ao senhor... Certo... Certo! Entendi! Sim senhor! Vou falar só do sucedido! Então tá! De conforme o Joca Aruanã, tudo começou assim:

Fazia dias que o Joca vinha reparando no comportamento esquisito dos xerimbabos... O quê, Doutor? Xerimbabo? Ah sim! Xerimbabo é a criação do quintal... Por exemplo: pato, porco, d’angola, galinha, macaco prego, barrigudo, filhote de anta, cachorro, pinto, periquito, papagaio, bacorinho... Esses bichos que a gente cria no terreiro de qualquer seringal aqui no Alto Guaporé...

Sim senhor, Doutor, eu vou continuar sim senhor! Foi o senhor mesmo quem atrapalhou a prosa perguntando o que era xerimbabo... Está bem Doutor! Vou desdizer o que disse... O senhor não “ATRAPALHOU” a prosa... O senhor interrompeu a história... Está bom assim? ‘Tá bem, Doutor! Vou desdizer de novo o que eu acabei de dizer! Não é nem prosa e nem história, é DEPOIMENTO! Está bom assim???

Muito bem! Então vamos continuar a história, melhor dizendo, DEPOIMENTO sobre o Joca Aruanã... Pois é! Fazia dias que o Joca vinha prestando atenção no jeito esquisito dos xerimbabos... Sempre depois da leseira do meio-dia os bichos sumiam tudo do quintal...

O quê, Doutor? Leseira do meio-dia? O que é? Ora, ora Doutor! É naquela hora depois do almoço em que o sol está bem no meio do céu; o calor fica de lascar mamona e os bichos da mata ficam tudo em silêncio... Dá um sono danado e a gente só ouve o grito rascante das cigarras no pé-de-ouvido e o rangido do punho da rede no armador na parede... Ô preguiça!

Como é que é Doutor? O nome correto é “siesta”? Siesta... Siesta... Apois! Sim! Sim! Os bolivianos também usam esse nome... Siesta! “Me voy a hacer la “siesta”! O quê, Doutor? É pra eu não me alongar nas explicações? Deixar de enrolação? Mas não foi o senhor mesmo quem perguntou? Vai entender esse povo da cidade! O quê? O que é que eu estou resmungando? Nada não, Doutor! Só estou pensando alto! Sim senhor! Vou continuar sim senhor!

Então Doutor...! O Joca Aruanã me contou que naquele dia saiu cedo do tapiri dele pra pescar uns pirarucus pra festa do aniversário da Rosinha... Falando em Rosinha... O Doutor sabe quem é a Rosinha? Não? A Rosinha é a Maria Rosa, um chamego que é o bem querer do Joca... O quê, Doutor? O senhor não quer nem saber quem é ou deixa de ser chamego do Joca? Tem razão Doutor, não é da sua conta mesmo!

O quê? Nesse momento não interessa, mas que tudo o que está relacionado com o Joca, no momento certo vai lhe interessar? O quê? É pra deixar de lorota e continuar a história, quer dizer, o DEPOIMENTO? Claro! Claro! O senhor é quem manda...

Ele, o Joca, me disse que depois de pescar os pirarucus, ele ia assuntar os xerimbabos e ver pra onde é que eles estavam indo toda tarde depois da leseira do meio-dia ou da “siesta”, no seu dizer.

O quê? Sim...! Ele me disse que a hora em que ele foi assuntar os xerimbabos era mais ou menos umas duas ou três da tarde... E foi justamente quando ele estava descendo o rio, remando em direção à boca do Igarapé Taquara, aquele que liga o Rio Guaporé aos fundos da Sede do Seringal Três Sentinelas, foi que ele viu o tal sujeito desaparecido... Que sujeito, Doutor? O que o senhor está procurando... Como é mesmo o nome do talzinho, Doutor? Do gringo? Irmão Caos...? Não? Não é Irmão Caos...? É H.e.r.m.a.n.n K.l.a.u.s.s...! Com dois “enes” no final do Hermann, e dois “esses” no final do Klauss com “K”? Vixe! E isso é nome de gente, Doutor? ...Hermann Klaus! Eu sempre achei nome de gringo muito do seu esquisito! Hermann Klaus...!!! Isso lá é nome de gente, de cristão!

O quê? Eu não tenho nada a ver com o nome da possível vítima? Como assim, vítima? O meu amigo Joca nunca fez mal para esse tal de Klauss... Não bateu e nem matou o talzinho...Como é que o senhor já está chamando o sujeito de vítima? Quer saber Doutor? Eu não vou falar mais é nada! E o senhor, Doutor? Faça o que bem entender, tá sabendo?

O quê? Se eu não falar mais nada o senhor vai me levar preso pra Guajará Mirim? Pode levar...! Taí os meus pulsos pra colocar as algemas... Como é que é? Como é que um ignorante como eu fica afrontando um Delegado?

Então “seu” Delegado, somente porque eu vivo em um seringal e me expresso na língua coloquial do povo simples das águas e das matas, imediatamente, o senhor, no seu preconceito exacerbado, na sua empáfia autoritária, acha por bem classificar-me de ignaro?

D..o..u..t..o..r Delegado! Como é mesmo o seu nome? Sérgio Couto? Nome de guerra, “seu” Delegado Couto! Muito bem, “seu” Delegado, o senhor dá-me licença por um minuto... Tenho algumas coisas guardadas no escritório da Sede do Seringal...

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Aqui está “seu” Delegado! Os meus diplomas de bacharel em Direito e Sociologia... Naturalmente o senhor, “seu” Delegado, sabe que eu sei que o senhor sabe que não tem autoridade, direito ou motivo de prender-me por quaisquer razões que o senhor pensa que tem... Estamos entendidos, DOUTOR Delegado?

Como é que é? Ah! O senhor quer saber como é que eu, com todas essas qualificações acadêmicas, comporto-me como um “beradeiro”? Expressando-me como um caboclo ignorante? Ora Doutor, essas qualificações foram adquiridas há anos luz de tempos atrás... Já lá se vão mais de trinta anos... Foi exigência do meu pai... Fui para Belém fazer um curso superior... Cursei Direito para atender o desejo do meu pai que queria um advogado na família, aproveitei o ensejo e cursei Direito e Sociologia, os dois ao mesmo tempo, depois voltei para a beira do Rio Guaporé e aqui estou sem exercer nenhuma das atividades até hoje... Ganho a vida extraindo óleos vegetais, tais como óleo de copaíba e andiroba, e estou envolvido também com a produção de apitoxina... Estou tão integrado às matas e rios que voltei a ser caboclo novamente... Como o senhor pode ver “seu” Delegado, na floresta e nos rios do Vale do Guaporé, nem tudo é o que parece...

O quê? Ahm! Então o senhor agora acha que eu fiz uma interpretação equivocada das suas intenções? Claro! Claro! Está desculpado, “seu” Delegado! Como é? Ah sim, sim, é uma opção minha viver aqui no Vale do Guaporé... A vida aqui é tranquila... Sem os aborrecimentos da cidade... A integração com a natureza é total... Para os sensitivos, e eu sou um sensitivo, a simbiose é plena... Tão plena que eu esqueço as minhas qualificações acadêmicas e me transmuto em um pescador e mateiro simplório como o senhor achou que eu era... E na verdade, Doutor Delegado... Eu sou!

O quê, Doutor? Se desde o início eu estava brincando com o senhor? Não, não e não! Eu nunca me fingi de “beradeiro”, de caboclo... Eu sou “beradeiro”, sou caboclo... Eu sou nativo da beira do rio e das matas... Eu sou filho do Vale do Guaporé!

Então ficamos assim... O meu amigo Joca, até prova em contrário, não cometeu crime algum... Ele apenas está desaparecido nas matas do Vale do Guaporé... Diga-se de passagem, por vontade própria... Ele é dado a essas excentricidades... Às vezes ele fica semanas desaparecido e depois sem mais nem menos ele reaparece na Sede do Seringal como se nada tivesse acontecido... É o jeito dele... E o que ele falou desse cara aí, esse tal gringo Klauss com dois “esses”, foi exatamente o que eu vou falar para o senhor, “seu” Delegado...

O meu amigo Joca falou que quando estava remando para entrar na desembocadura do Igarapé Taquara, ele cumprimentou o sujeito e que quando respondeu o cumprimento do dito cujo, o sujeito pediu uma carona para ir até o pé de Quariquara, árvore raríssima na Amazônia, que está localizada atrás da Sede do Seringal e fica entre uma Castanheira e um pé de Jatobá, bem ao lado de um Ipê Amarelo...

Como é que é? Como é que o tal do Klauss com dois “esses” sabia de todas essas informações? Segundo o Joca, esse gringo já havia estado pelo seringal catalogando árvores raras e de lei... Vou lhe contar uma coisa, “seu” Delegado, só Deus sabe como é que essas árvores, a Quariquara e o Jatobá vieram parar por estas bandas...

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O Joca me contou que deu carona para o tal Klauss com dois “esses”, e que durante o trajeto foi mostrando para ele as várias árvores de madeira de lei que existem ao longo das margens do Igarapé Taquara... Mostrou um pé de Cedro, uma Cerejeira, um Angelin, uma Imburana... Ipês de várias cores, do tipo rosa, amarelo, roxo e branco; mostrou um Mogno e uma Aroeira, deu até água de murucutua para o estrangeiro...

Como? O que é murucutua? Desculpe a minha risada e o meu espanto com a sua ignorância com as coisas das matas, “seu” Delegado, mas é que para nós, que vivemos nas matas e nos rios, os nomes das plantas, árvores e animais é tão comum que achamos que todas as pessoas os conhecem... Costume bobo, esse nosso! Murucutua, “seu” Delegado, é só o popular Cipó D’água... Um cipó que contém em seu interior, uma água cristalina, inodora e levemente alcalina... Bom para saciar a sede, principalmente nas terras altas, longe de igarapés, Lagos e rios.

Deixe de ser impaciente, “seu” Delegado, o costume por essas bandas é contar a história com todos os detalhes... O povo daqui não tem televisão... E luz elétrica? Somente com motor estacionário e olhe lá... O rádio só funciona quando tem pilha nova... Então, Delegado, o costume é contar as histórias como se estivesse passando um filme... O contador da história repassa para o ouvinte ou ouvintes o contexto da narrativa em três dimensões, descreve os cenários, os sons e os cheiros... Você deixa de ser mero ouvinte, passa a ser espectador e vive cada momento da história como se protagonista fosse... Entendeu né, Doutor? Beleza! Fique tranquilo... O senhor vai saber de todo o acontecido como se fosse o próprio Joca que estivesse passando um videoteipe para o senhor... ‘Tá prestando atenção? Tudo bem...! Então vamos continuar a história, digo, DEPOIMENTO...

O Joca contou que demoraram navegando pelo Igarapé por causa dele ficar indicando os pontos de referência para a localização das árvores e tudo o mais que o gringo pedisse... Uma orquídea aqui, uma bromélia ali, o nome de um bicho que passasse ligeiro pelas árvores... Demoraram tanto que quanto chegaram à localização da Quariquara já era bem umas quatro horas, e, no descampado onde ficam as árvores...

Como que árvores, Doutor? Ora, ora “seu” Delegado, a Castanheira, o Ipê e o Jatobá... Então eu não lhe falei que naquele recanto da floresta existe um descampado parecido com um terreiro? Falei não? Taí! Pensei que tinha falado! Pois é! Quando eles chegaram ao descampado, naquela espécie de terreiro... E não é que eles se depararam com todos os xerimbabos do Seringal, Doutor! Inclusive o “Chico” estava por lá também, todo lampeiro e comportado...

Que “Chico”, “seu” Delegado? O “Chico”, ora! O macaco-prego de estimação da dona Maroca, a cozinheira e curandeira do Seringal Três Sentinelas... O que é muito estranho...!!? O “Chico” vive com uma corda amarrada na cintura que é para não ficar se enxerindo com as galinhas do terreiro... O Joca ficou se perguntando como é que o danado do “Chico” se soltou...!? Imagine um macaco safado, “seu” Delegado! Imaginou? Pois é! O sacana do “Chico” é duas vezes pior... Inclusive, o Joca me disse que o “Chico”, junto com os outros bichos, parecia até que estavam de panema... Todos olhando fixamente para o alto dos galhos do pé de Jatobá...

O quê? O que é “panema”? É o mesmo que enfeitiçado, azarado, moleirão, sem vontade de nada... Esse tipo de coisa!

Aí, “seu” Delegado, eles, para não espantarem os bichos, se esconderam por detrás de umas raízes de Sapopemba e ficaram lá, assuntando o que é que estava se passando naquela parte da mata... Pelo menos o Joca me garantiu que ele não atinava nada com nada em relação ao estranho comportamento dos animais até ouvirem o canto do Uirapuru... Ficaram um bom tempo em silêncio absoluto... E então Doutor, é que perceberam que não eram só eles que estavam em total silêncio... Estavam também ali, os bichos de toda a floresta... Parecia até que não existia vida naquele trecho da selva; ouvia-se somente o passarinho cantando... E então, Doutor, foi que o Joca percebeu que o chilreio daquele passarinho, especificamente, era o canto mais bonito de Uirapuru que ele já havia ouvido...

Naquele momento mágico, no seio da floresta, foi que eles perceberam que aquela cantoria tão diferente dos outros tinha o poder de enfeitiçar todo o povo da mata e dos rios, inclusive os Encantados que vivem nas florestas e nas águas...

Como o que é “Encantado”? Não venha o senhor me dizer que não sabe o que é um “Encantado”!? O que é um “Ente da Floresta”! Não? Tem certeza?

O senhor não sabe o que é um Caipora? Um Curupira? Um... Um Mapinguari? Uma... Iara? Uma Matinta Pereira? E um Urutau? Esse o senhor já ouviu falar, não? Não? Tem certeza? E um Boto? Esse, com certeza, o senhor conhece... Um Boto? Ahn! Pelo menos um Boto o senhor conhece! Boto cor-de-rosa é o que o senhor conhece? E o Boto encantado? Aquele que usa um chapéu panamá e se veste de terno branco para ir às festas de beira de rio para seduzir as caboclas? Esse... O senhor não conhece! Peraí, “seu” Delegado! De que planeta o senhor veio?

Certo! Certo! É claro que vou respeitar o senhor! E entendi sim, senhor! O senhor não veio de planeta nenhum... O senhor veio do Rio de Janeiro... É carioca de quê? Ah sim! Carioca da Gema... Desculpe-me Doutor! Mas o que é “carioca da gema”? Sim! Sim! Carioca da Gema é o carioca genuíno!

Eu também sou genuíno!

Não! Não! Eu não sou carioca, não...!!! Eu sou Amazônida! Genuinamente amazônida e, por favor, não estranhe o meu peito estufado quando eu digo que sou Amazônida; é o orgulho de ter nascido nesta planície... Sou amazônida de quarta geração! Sou nascido e criado aqui, neste seringal! Como o senhor pode ver, sou filho dos rios e das matas como eu já lhe falei.

Como é que é? Por que o canto, especificamente, “desse” Uirapuru, enfeitiça animais, homens e até os Encantados da floresta? Ora, Doutor, é porque estamos falando de um Uirapuru diferente, Doutor! Em geral, o Uirapuru é um passarinho de cor pardo-avermelhado com pequenas pintas brancas na cabeça... É um bichinho pequeno, de pés grandes... Um passarinho comum... Na verdade, à primeira vista, ele é bem sem gracinha; porém, quando o bichinho canta ele vira uma águia, uma Harpia gigante, um Gavião Real de tanto que o canto dele é bonito...

Muito sim senhor...! Mas muito bonito mesmo é o canto de qualquer Uirapuru... Porém, na verdade verdadeira, “desse” Uirapuru que estamos falando, a melhor definição do canto “desse” Uirapuru, é que o canto dele é mavioso, divino, ou melhor, SUBLIME... É capaz até de parar o tempo... Quando ele canta não se ouve o zumbido de uma abelha, nesse momento, até a Jequitiranaboia vira mosquito.

Como é que é “seu” Delegado? O que é que o tal Uirapuru “sublime” tem a ver com o caso que o senhor está investigando?

Tudo, “seu” Delegado...! Tudo...! Pois é justamente por causa “desse” Uirapuru que o Joca Aruanã falou que o homem que o senhor procura escafedeu-se... Sumiu assim, ó...!!! PLUFT! Sem mais nem menos...

Como sumiu? Sumindo, ora! Mas fique tranquilo, Doutor, vou repassar para o senhor toda a história que o Joca Arauanã me contou...

Dá licença, Doutor? Vou fazer uma pausa para enrolar um cigarrinho de palha... O Doutor aceita um? Não? Prefere um dos seus? Beleza! Fique à vontade!

- o –

Então, foi assim... Eles estavam escondidos por detrás das raízes da Sapopemba observando o estranho comportamento das criações do Seringal quando sem nem mais e nem menos, começaram a aparecer vários animais da floresta...

Que animais, “seu” Delegado!? Ora, Doutor, os bichos das matas do tipo quati... Pacas e cutias, veados galheiros e jaguatiricas, cobras jiboias e jararacas... Antas e tatus, até uma onça pintada do tipo canguçu - daquelas que tem calombo no cocuruto de tão grande que é -, e até uma onça preta, a Pantera, o Joca Aruanã acha que viu...

Sim, Doutor! Não! Não! De jeito nenhum!

De acordo com a história do Joca, os animais estavam todos comportados. Nenhum bicho grande e feroz, tipo Onça-Canguçu ou Pantera, cobra venenosa ou Jaguatirica ou mesmo Gato Maracajá, tentaram atacar os bichos pequenos... O Joca me disse que pareciam até os bichos da Arca de Noé... Aquele santo que enfrentou o Dilúvio num grande batelão...

Ah! Sei! Sei que o senhor conhece o Noé da Arca... Falei só por falar! Para dar um exemplo... Foi assim que o Joca exemplou para mim, daí eu usei o jeito dele...

Pois é! Todos estavam enfeitiçados com o canto sublime do passarinho, o Uirapuru... O Joca falou que a cada momento chegavam mais e mais animais, principalmente pássaros... Daí a pouco, os galhos da Quariquara e os galhos das árvores que circundavam a clareira ficaram parecendo um ninhal de tanto que ficaram povoados de aves grandes, médias e pequenas, do tipo de Gavião Real, Tucano, Papagaio e Curió, Bem-te-vi e Rolinha, Chico-Preto, Mutum e Jacu, araras então, tinha e todo tipo e cores: azul, amarela e vermelha; ele disse também que havia muitos macacos e Bichos Preguiça; e no chão da mata o que mais se via era, Quati, Paca, Cutia, Caititu, Veado Galheiro, Onça Parda, pintada e preta como eu já falei para o senhor... Havia também Anta, Capivara, Jacu e Mutum... Até os bichos de casco do tipo Jabuti, Tracajá, Tartaruga e Muçuã... E bem na frente deles, tinha também um enorme Tatu Canastra...

O senhor que saber se eles estavam em silêncio e respeitando-se uns aos outros, sem brigas e sem ataques? Claro, “seu” Delegado! O meu amigo Joca falou que todos estavam em silêncio e olhando para um determinado ponto no alto dos galhos do pé de Quaiquara de onde vinha o canto do passarinho... E foi justamente para esse ponto, que o Joca e o gringo Klauss (com dois “esses” como o senhor frisou), olharam à procura do Uirapuru... Todos, inclusive o Joca e o gringo, estavam hipnotizados pelo canto mavioso do passarinho...

Sim senhor! Depois de muito procurarem no meio de todos os pássaros que ocupavam os galhos da Quariquara eles conseguiram enxergar o Uirapuru, e foi exatamente nessa hora que o Joca me falou que ele tomou o maior susto da vida dele...

Exato, "seu" Delegado! Foi essa a mesma pergunta que eu fiz para o meu amigo... Sim! Claro, Doutor Delegado! Tenha paciência que eu chego lá... Então...! Ele me disse uma coisa que, na hora, eu duvidei da seriedade do meu amigo Joca...

O quê, Doutor? Que coisa foi essa?

Vou lhe dizer já, já! Primeiro eu vou fazer uma pergunta para o senhor.

Doutor, o senhor já viu uma fotografia do passarinho Uirapuru?

Já? É mesmo? E essa fotografia era colorida ou era em preto e branco...??? Colorida? Então o senhor se lembra das cores do passarinho? Das cores que eu falei para o senhor? Pois é! As cores do bichinho são às vezes pardo-avermelhado, às vezes pardo-avermelhado variando para o amarelo e sempre com pequenas pintas brancas pela cabeça... Essas são as cores mais ou menos padrão do bichinho, Doutor!

O que é que tem de estranho nas cores do passarinho Uirapuru?

Pois é, Doutor!

O meu amigo Joca me disse meio desconfiado, meio sem jeito, olhando pros lados e falando no meio dos dentes que o passarinho Uirapuru que ele e o gringo Klauss com dois “esses” viram era... Era... Era...

BRANCO, “seu” Delegado...!?!?

Isso mesmo, Doutor Delegado! Claro que eu não estou de sacanagem com o senhor! O tal do passarinho Uirapuru que estava cantando na clareira da Quariquara era BRANCO, Doutor Delegado... BRANCO!!! O senhor, Doutor Delegado, já ouviu falar de um Uirapuru BRANCO?

Não! Não é?

Já?

Como assim? Já! Ahm! O passarinho só podia ser albino... Ééé...!!! Taí...!!! Pode até ser...!!! ALBINO? Hummmm!!!!

Só tem uma coisa que o senhor está esquecendo, Doutor! Na selva... Nas matas... Bicho albino não dura um dia sequer... Os predadores tipo: Gavião Real, Harpia ou Gavião Tesoureiro ou qualquer outro predador logo, logo transformam o tal bicho albino em café-da-manhã ou almoço... A não ser que...

A não ser o quê, Doutor? O senhor quer saber o que eu vou inventar agora? Não, Doutor! Eu não vou inventar nada... Só vou lhe dizer um palpite que eu tive e que o Joca logo me esclareceu e confirmou o que eu pensei na ocasião...

Que palpite foi esse que passei para o Joca, Doutor? Bem... Na ocasião eu falei para o Joca que, um bicho albino ou que tenha qualquer coisa de diferente dos outros, e que chame a atenção dos predadores só sobrevive se for adotado por um...

Por um o quê, Doutor? Por um... - dessa vez, o que eu vou falar para o senhor, é bem capaz de fazer o senhor pirar o cabeção como gosta de falar o meu neto Tobias - se for adotado por quem, Doutor? Ora, ora doutor! Se o bicho for adotado por um CURUPIRA! Se o bicho ficar sob a proteção dele!

Não falei? Eu sabia que o senhor ia ficar espantado.

Feche a boca e diminua os olhos, Doutor! O senhor está com uma cara de fazer medo... Cruz! Credo!

Nada disso, Doutor! O que eu estou dizendo para o senhor é a mesma coisa que o Joca falou pra mim... Eu também fiquei com a mesma cara que o senhor está! Pelo menos foi o que o Joca me falou... O passarinho Uirapuru que estava cantando tinha a cor branca... E é verdade o que eu lhe falei... Bicho diferente do costume da raça, por exemplo: aleijado, de cor diferente, essas coisas... Só fica vivo na mata se ficar sob a proteção especial do Curupira...

Curupira, Doutor? O que é que é um Curupira? Então o senhor não sabe o que é um Curupira? E o que é que esse tal de Curupira tem a ver com o sumiço do gringo Klauss com dois “esses”?

Ora, ora Delegado! Tudo “seu” Delegado! Tem tudo a ver... Ora se não foi ele quem deu um sumiço no sacana do gringo? O meu amigo Joca me garantiu de pé junto que foi o Curupira quem deu um “chega-prá-lá” no safado do gringo, no mentiroso do gringo... Quer que eu lhe diga a verdade verdadeira, Doutor? Vou dizer... Foi o Curupira quem fez o gringo se escafeder... Como castigo... Pra servir de EXEMPLO! Gringo bandido, safado... Gringo sacana e um tremendo de um “filho-da-puta”! Pronto! Falei!

Então o senhor acha que eu estou envolvido com o sumiço do gringo e é por isso que eu estou enrolando o depoimento e ainda fico esculhambando o sacana do tal Klauss com dois esses? Pois saiba senhor Delegado, que eu e o meu amigo Joca, ao contrário do que o senhor pensa, não temos nada a ver com o sumiço do alemão, aquele escroque, como dizia meu antigo professor de Direito quando queria se referir a um malandro criminoso... Aquele escroque!

Como é que é, senhor Delegado? O senhor quer que eu explique melhor essa parte da história e por que é que eu, de repente, passei a xingar o safado do gringo?

O quê?

O senhor está achando que eu sou cúmplice do meu amigo Joca? Claro que eu sou cumplice do Joca, eu sou amigo dele, ora!

Delegado, agora quem decidiu fui eu... Vou deixar de “lenga lenga” e vou repassar para o senhor o resto da história do Joca e do que eu, pessoalmente, sei desse caso.

- o -

Pois é, seu Delegado... Estavam o Joca e o gringo quietinhos por detrás da Sapopemba, de olho vidrado nos bichos que estavam no chão e nos galhos... Todo mundo quietinho... Ouvindo o Uirapuru cantar, quando chegou um bando, ou melhor, uma vara de Caititus chefiados por um Porco-do-mato tão grande que parecia mais era uma anta, Doutor... E um detalhe chamou a atenção do Joca, os pelos das costas do cateto eram amarelados, puxando mais para “mel-com-terra”, quase brancos... Pelo menos foi isso que o Joca me disse...

E o mais incrível, seu Delegado, é que esse caititu estava montado e guiado pelo Curupira... E o mais incrível ainda, seu Delegado, o bando de... Bando não, vara de porco... Chegou e ficou em completo silêncio - e todo mundo sabe o quanto que um bando ou uma vara de caititu como queira, faz barulho - pois é! Tanto os catetos quanto o Curupira ficaram quietinhos... Todos olhando para cima, para os galhos da Quariquara... Hipnotizados... Ouvindo o canto do passarinho...

Não! Nananinanão, seu Delegado! Eu não estou de sacanagem com o senhor, não! Longe de mim tal procedimento... Se o Joca falou que eles estavam lá é porque é a pura verdade, “seu” Delegado!

Fim da Parte I

Continua... Parte II =>