O Uirapuru e a Lua Grande-Parte II
Não é melhor que o senhor espere que eu termine a história para que só depois o senhor comece a fazer as perguntas, “seu” Delegado! Esse aparelho na sua mão é o quê? Um gravador? É mesmo? Então, seu Delegado, depois o senhor tira as suas dúvidas quando o senhor ouvir a fita que o senhor está gravando... Ok? Beleza?
Então, tudo certo... Pois é! O Curupira estava na clareira... E não era só o Curupira não...
Deixe para fazer perguntas depois, “seu” Delegado... Nós combinamos, não foi? Pois é! À medida que o passarinho cantava e redobrava o canto, começaram a acontecer umas coisas estranhas na clareira...
O senhor quer saber que coisas? Calma seu Delegado, espere o resto da história...
Então... O meu amigo Joca falou que de onde eles estavam dava para ver toda a extensão da clareira... Aí, escondido por detrás das raízes da Sapopemba ele viu que no meio das folhas de um Tambatajá que subiam em ramas pelo tronco de uma Imbaúba se imiscuía uma Matinta Pereira meio escondida entre as folhas verdes claras e vermelhas da trepadeira...
Discretamente, o Joca cutucou as costelas do gringo e apontou para a Matinta Pereira... O gringo olhou na direção apontada e balançou os ombros sinalizando não ter visto e nem entendido nada...
Depois o Joca falou que por detrás dos fetos de uma cortina de samambaia pendente dos galhos de um pé de Acapú, ele vislumbrou um vulto muito grande, quase imóvel... Ele disse que apertou os olhos, fixou as vista e então ele viu...
O que foi que ele viu Doutor? Calma... Tenha paciência “seu” Doutor, me deixe continuar a história...
O Joca jurou de pé junto que se arrepiou todinho... Dos cabelos da nuca até os cabelos da canela quando ele viu o que achou que nunca iria ver na vida... Doutor, quase mimetizado na cortina de samambaia, primeiro ele viu a cabeça e o olho grandão, depois, quando deu uma rajada de vento ele conseguiu ver o corpão do bicho... Doutor, o Joca viu um Mapinguari...
O Mapinguari, “seu” Delegado, é o bicho mais feroz e sanguinário que existe nas matas de toda a Amazônia... O Mapinguari estraçalha e come qualquer vivente que ele encontra pela frente...
O que é um Mapinguari, Doutor? Um Mapinguari é um bicho tão feroz que até as onças pretas, as panteras, e as onças canguçu, os jaguares, têm medo dele... Só que naquele momento o bicho feroz estava mansinho... Mansinho que nem o gato “Riscado”, o bichano xodó da Dona Maroca, só escutando o canto do Uirapuru... O Mapinguari estava tão hipnotizado quanto os outros, os bichos e os homens que abelhudavam escondidos...
O quê, Doutor? De onde surgiu a rajada de vento? Se no meio da mata tem rajada de vento?
Não senhor! No meio da mata dificilmente ocorrem rajadas de vento... A não ser que vá acontecer um temporal... E de onde saiu a tal rajada de vento que mostrou o Mapinguari? Pois é! Eu também fiz essa pergunta ao meu amigo Joca... Ele me respondeu que a rajada de vento foi provocada pela chegada do Saci-Pererê... O senhor sabia Doutor, que o Saci-Pererê chega a qualquer lugar quase sempre montado num redemoinho ou voando numa rajada de vento?
Não sabia? Então tá!
Doutor, dessa vez o senhor aceita um cigarrinho de palha? Não! Prefere os seus...?
- o -
O senhor não sabe quase nada das coisas da Amazônia, não é, Doutor?
Em sua opinião, Delegado, tanto eu quanto o Joca somos dois malucos tentando enrolar a polícia, não é? Pois fique sabendo, Doutor, que nem eu, nem o Joca e tampouco o povo da região é doido ou maluco em acreditar nesses seres sobrenaturais, nessas Entidades da Floresta... Essa crença faz parte das nossas vidas, do nosso dia-a-dia... Do nosso cotidiano aqui na mata... Aqui não tem maluco não Doutor, o que existe é uma cultura ribeirinha, uma cultura cabocla de que tudo é integrado... O céu, o rio, as matas, o visível e o invisível, os bichos e os homens, o sagrado e o profano... Aqui se festeja a Festa do Divino e o Dia de Iemanjá... Simples assim!
Mas me deixe continuar a história do Joca... O meu amigo me disse que daí a pouco, à medida que o Uirapuru Branco dobrava e redobrava o canto, as Entidades da Floresta começaram a aparecer no descampado...
Na penumbra das sombras das árvores, em meio aos fetos de palmeiras e bromélias que circundavam a clareira, o Joca viu um homem de terno branco e chapéu “panamá” caído sobre a testa... Era o Boto! Por falar em Boto, eu tenho uma pergunta para o senhor... O Doutor por acaso, sabe por que o Boto sempre usa um chapéu caído na testa? Não? Então vou dizer...
É para esconder um buraco que ele tem na cabeça... Esse buraco é a única forma de identificar um Boto Encantado no meio dos caboclos que dançam nas festas ribeirinhas...
O senhor não quer perder tempo ouvindo crendices? Estão está bem, vou continuar com a história... Por detrás do tronco de um pé de Mogno, entre os talos de uma palmeira Caiuê, o meu amigo Joca viu uma cocar de penas de araras vermelhas, era o guerreiro Ajuricaba que trazia ao peito acobreado e musculoso, atada a um cordão de embira, uma Muiraquitã em forma de rã que um raio de sol, caprichosamente, rebrilhava faíscas verdes esmeralda... O valoroso guerreiro olhava embevecido para o passarinho cantador.
No canto direito da clareira, no sentido de onde estavam escondidos o caboclo e o alienígena, num grande toco de Sucupira enegrecido, provavelmente, pelo fogo de um raio, disfarçado de ponta quebrada do madeiro, um Jurutaui despertado de seu sono diurno, com a cabeça voltada para o Uirapuru, em reverência, cerrava os olhos amarelados para melhor ouvir o canto mavioso do passarinho...
De repente o silêncio da assistência foi levemente quebrado pelo silvo intermitente da língua de um ofídio gigante, era a Cobra Norato e seu companheiro, o Boitatá, que descansavam as enormes cabeças sobre um tronco caído de Angelim.
Isso mesmo, seu Delegado, naquele fim de tarde em que o Joca e o gringo espreitaram os animais e as Entidades da Mata ouvindo o canto do Uirapuru Branco, coisas estranhas estavam acontecendo... O Joca me disse que já havia escutado do avô dele que por sua vez havia escutado do avô dele que, em determinadas épocas do ano e em determinado períodos, que variavam entre dezoito e vinte anos, sempre surgia um Uirapuru Branco com a capacidade de, com o seu canto, enfeitiçar bichos e Entidades de toda a floresta, incluindo o bicho homem...
Sim senhor? Por que o Joca não estava enfeitiçado pelo canto do Uirapuru Branco? E por que o gringo também não?
A esse fenômeno cabem duas explicações: primeiro, o Joca trazia ao pescoço um “patuá” feito de “Olho-de-Boto” e um Bentinho com a imagem de Nossa Senhora do Seringueiro; segundo, o gringo é gente da cidade, e essa gente da cidade, por exemplo, como o senhor, “seu” Delegado, a não ser que o Encantado ou a Entidade queira botar uma “panema” no infeliz, ele somente sente um arrepio e consegue ver alguns vultos que ele confunde com as sombras dos galhos das árvores ou o sacolejar dos arbustos... Não tem jeito, quem não crê não vê... Entendeu senhor Delegado? Na terra das matas e dos rios as coisas são simples assim...
“Seu” Delegado, a Madrinha deixou aí em cima da mesinha, uma travessa cheia de abiu, o senhor aceita um? Não? Olha, “Seu” Delegado, o senhor não sabe o que está perdendo... Essa é uma das frutas mais saborosas da floresta... Parece até que é feita de açúcar... Dá licença que eu vou pegar uns...
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Pois é! O meu amigo Joca me falou que à medida que o Sol sumia por detrás das copas das árvores gigantes, tipo Castanheira e Sumaúma, e as sombras da tarde davam lugar para as sombras da noite, os vagalumes e os cupinzeiros começaram a piscar suas luzes iluminando a floresta. Daí a pouco, o Joca me disse, toda a clareira e a floresta ao redor ficaram iluminadas pelos vagalumes e pelos cupins luminescentes que transformaram os galhos e as folhas das árvores, as palhas das palmeiras, os pequenos ramos de samambaias, folhas de tambatajás e as folhas secas do chão em um imenso enfeite de natal... Tudo brilhava, piscava e girava em forma de redemoinho convergindo em direção ao Uirapuru Branco...
Ele me disse também que não sabia se eram as luzes dos vagalumes e dos cupins fosforescentes que iluminavam o Uirapuru Branco como uma tocha de “Fogo-fátuo” ou era o próprio passarinho que emanava e pulsava o brilho na mesma medida que o canto dele aumentava e a noite avançava... Somente muito depois é que ele viu que o que iluminava o pássaro mágico era um facho azulado de luz que vinha tremelicando do alto das árvores, do céu prateado de estrelas...
Como é que é “seu” Delegado? De onde vinha o facho de luz? Pois é! Foi justamente o que eu perguntei pro Joca... Então, depois de arregalar os olhos com a lembrança do acontecido, ele me disse que o raio de luz vinha diretamente da Lua, de uma Lua Azul, uma Lua enorme, tão grande como ele nunca havia visto... Só tinha ouvido falar pelo avô dele que por sua vez também tinha ouvido falar pelo avô... Sabe “seu” Delegado, o Joca é um sortudo de marca maior... Eu, por exemplo, estou perto dos sessenta anos e, tirando os anos do Colegial e Faculdade em que fui obrigado a ficar fora daqui, o resto do tempo eu sempre vivi nestas matas, e lhe digo, eu nunca tive o privilégio de ver um Uirapuru Branco, cantando e iluminado pela Lua Grande ou Lua Azul como vocês da cidade gostam de dizer...
A Lua Azul ou Lua Grande, “seu” Delegado, como eu já lhe falei, só aparece de tempos em tempos... E quando ela aparece, a floresta toda fica estranha... Acontecem coisas ou como vocês da cidade gostam de dizer... Acontecem estranhos fenômenos, tanto na mata como nos rios, igarapés e Lagos... No Igarapé Taquara, por exemplo, aquele que eu já falei para o senhor... Lembra? Aquele em que o Joca encontrou o gringo... Pois é! O Igarapé Taquara, como eu lhe disse, passa por detrás da Sede do seringal e vai desembocar em um Lago, o Lago Verde, cuja margem fica beirando a clareira... Nesse Lago mora a Iara, uma entidade que habita os rios e os Lagos... Pois então! O Joca me falou ainda, que a Iara também estava escutando o Uirapuru Branco... Veja que fato curioso, “seu” Delegado, os dois maiores protetores dos viventes da Amazônia, o Curupira e a Iara, os dois encantados mais poderosos das matas e dos rios; os dois, juntos e embevecidos, escutando o passarinho mágico cantar numa noite de Lua Grande ou Lua Azul, como o senhor preferir...
Cada qual no seu domínio, o Curupira, aboletado no lombo do cateto e a Iara, sentada sobre uma flor de Vitória Régia e se embalando suavemente no doce remanso do Lago, todo iluminado pela luz azul da Lua Grande...
Somente um Uirapuru Branco para fazer uma proeza dessas!
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Pois é! Continuando a história do Joca... Ele me disse que com muito esforço conseguiu desviar os olhos do passarinho e virar a cabeça em direção ao gringo, e foi então que o meu amigo Joca percebeu que o sacana do alemão não estava mais ao lado dele...
Pois não é, “seu” Delegado, que o safado do tal de Klauss, com dois “esses”, tinha saído de perto do Joca e, de surdina, tinha se arrastado lá para debaixo do pé de Quariquara e já estava se preparando para subir na bendita da árvore para...!?!?
O senhor quer saber para quê? Por que é que o filho-da-puta do alemão queria subir na Quariquara “seu” Delegado? Quer dizer então que o senhor nem imagina o motivo para o desgraçado do alemão querer subir na porra da árvore?
Sabe o quê, “seu” Delegado? O senhor é muito ingênuo para o cargo que o senhor exerce, não é não?
Desculpe...!!! Desculpe...!!! Por favor, me perdoe...!!! Não foi a minha intenção faltar com o respeito ao senhor...! É que a lembrança desse gringo me tira do sério... Deixe-me continuar a história do Joca e no final o senhor vai entender muita coisa...
“Seu”Delegado, o safado do alemão queria subir no tronco de Quariquara somente para pegar o Uirapuru... O corno queria capturar o passarinho mais famoso e mais misterioso da Amazônia...
Veja se tem cabimento, “seu” Delegado, o passarinho que o “filho-de-uma-ronca-e-fuça” do alemão queria capturar era só, deixe-me gastar um pouco de latim com o senhor:
Primus: o cantador mais imponente da floresta;
Secundus: um passarinho encantado;
Tertius: um passarinho desse tipo só aparece a cada dezoito ou vinte anos, portanto, raríssimo;
Quartus: aquela clareira na floresta estava toda sob o domínio dele e povoada de feras, Entes e Encantados, ou seja, os senhores da floresta e, naquele momento, súditos do Maestro das Matas;
Quintus: o passarinho, além de sobrenatural, era o bicho de estimação preferido de quem? Quem...? Hem, ”seu” Delegado??? Era só, do Curupira!
Sextus et ultimu: o gringo teve o atrevimento de tentar capturar... Na verdade, roubar o passarinho de estimação do Curupira, “seu” Delegado!? Somente um leso e abestado, desculpe a redundância, tentaria uma burrice dessas...
Deu no que deu “seu” Delegado! Nenhum dos animais, tanto de asa quanto de quatro patas e muito menos os Entes da Floresta perceberam que o safardana do alemão tinha subido de esguelha pelo tronco da Quariquara e, segundo o Joca, já estava quase pegando o passarinho quando o gringo, talvez por descuido, talvez por que Jaci, a Lua, tenha escondido o seu raio de luz azul atrás de uma nuvem ou mesmo de uma folhagem... O fato é que o gringo não viu nem percebeu o Macaco-Soim e tampouco o rabo do bichinho descansando numa forquilha da Quariquara.
Resultado: acabou pisando com toda a força do peso dele na ponta do rabo do coitado e aí, “seu” Delegado, o “tendeu” ficou armado, o macaquinho gritou de dor...
Falando nisso, o senhor, “seu” Delegado, já ouviu o grito normal de um Macaco-Soim? Desses gritos de alegria, de quem está brincando! Não? Nem queira saber “seu” Delegado! O Grito é agudo... Agudo, fino e estridente... Tão fino que dói bem lá na raiz do ouvido... E o grito “desse” Soim, especificamente, “seu” Delegado, foi de dor extremada... Na verdade o sacaninha do Soim não gritou... Ele berrou... Berrou e urrou, de espanto e dor, “seu” Delegado!
Muita dor e surpresa foram o que o Soim sentiu... O Macaco-Soim é arisco por natureza, sempre atento a tudo que se passa à sua volta, em cima e em baixo, nos lados, na frente e atrás... Dificilmente a gente surpreende o danado do macaquinho... Além disso, o pestinha do macaquinho gosta de gritar bem alto por qualquer “dê-cá-aquela-palha”...
Imagine só, “seu” Delegado, a surpresa do dengoso do Soim quando sentiu que alguma coisa estranha estava quase esmagando a ponta do rabo dele... Abriu o berro a plenos pulmões! Por isso o grito do tal Macaco-Soim foi tão fino e tão agudo que despertou toda a plateia do feitiço do Uirapuru Branco...
O Joca me falou que quase borrou as calças quando olhou os bichos na clareira e na mataria ao redor se agitando sobre a luz do luar... Ele me disse que o medo que sentiu foi tão grande que fez com que ele ficasse congelado... Parado e com os pés grudados no chão da mata rente às raízes da Sapopemba enquanto via o Mapinguari, as boiúnas Cobra Norato e Boitatá, as onças-canguçu e as cobras jararacas se agitarem... Todas as feras se espreitando umas às outras... Procurando o melhor posicionamento de ataque e defesa...
Os grasnados, os pios e os gritos; os urros e lamentos de toda a bicharada pequena junto ao tropel de bater de cascos e asas das presas fáceis na fuga desesperada e transida de pavor diante das feras que até aquele momento eram mansas e quietas como elas...
Todo o “furdunço” da bicharada transformou aquele pedaço de mata numa confusão tamanha que o Joca até /me disse que não sabia se corria também, se procurava esconderijo ou se trepava nas raízes da Sapopemba e procurava abrigo nos galhos mais altos das árvores ali por perto...
“Seu” Delegado, o Joca lembrou também que no meio do salseiro que se transformou a clareira, com gritos grasnados e berros... Ele disse que no meio de toda a bagunça, acima de tudo o que estava acontecendo, ele ouviu a risada sinistra do Urutau, lá de cima de um toco de pau seco... Ele disse que o Urutau parecia se divertir com o medo pavoroso dos bichos que corriam esbaforidos pelo chão coberto de folhas, galhos secos e matos rasteiros que forram as raízes das matas...
Como, “seu” Delegado? Como que eu sei de todo esse atropelo ocorrido na clareira e nas matas? Ora “seu” Delegado, eu sei por que o Joca descreveu para mim todo o acontecido tim-tim por tim-tim!
Por fim, o Joca me disse que o pandemônio foi tão grande que quando ele se deu conta, ele estava no alto dos galhos de um pé de Abiu, mais agarrado no tronco que filhote de macaco-aranha nas costas da mãe.
Ele me disse que, atracado no galho mais alto do abieiro, ele viu que os Encantados estavam tão surpresos quanto ele com a bagunça dos bichos de patas e de asas e que, somente passado alguns instantes é que eles perceberam a presença do “fio-de-uma-puta” do alemão... E foi só então, também, é que o gringo viu a cagada que ele tinha feito... Mas aí já era tarde para limpar a bosta esparramada...
“Seu” Delegado, o Joca me falou que o gringo, na ânsia de pegar o Uirapuru Branco de qualquer jeito, não viu que o passarinho tinha desaparecido e que no lugar dele estava um ninho de Caba, das grandes... Daquelas que mais parecem uma Jacinta, de tão grande...
Falando em “caba”, “Seu” Delegado, o senhor sabe o que é uma “caba”? Não? Nem queira saber!
Doutor, “caba” é um maribondo tão feroz que até o Bicho Preguiça que tem mais pelo que um Mapinguari foge deles como o diabo da cruz...
Pois é, Doutor, onde já se viu pegar com a mão um passarinho feiticeiro?
Doutor, um Uirapuru Branco só chega à idade adulta quando é encantado pelo Curupira, o Protetor das matas e dos bichos das florestas... Eu já falei para o senhor, Doutor! O Curupira tem como bichinho de estimação o Uirapuru Branco... Ele mantém o passarinho bem no centro da mata para cantar só para ele, para o seu deleite...
O Joca e eu, a gente pensa... Pensa não, imagina que é a Lua Grande ou Lua Azul que faz o passarinho encantado vir para a margem da floresta para cantar... Afinal, se ele não vir para a beira da floresta, para perto dos rios e dos lagos como é que a filha de Jaci, a Lua, vai poder ouvir o canto mágico do passarinho encantado...?
Como é que é, Doutor? Quem é a filha de Jaci, a Lua? Ora, Doutor, a filha de Jaci, a Lua, é a rainha dos rios e dos lagos, a Iara, Doutor!
Pois então, Doutor Delegado! O desgraçado do gringo pensou que estava pegando o passarinho mágico e, em vez disso, ele pegou foi um ninho de maribondo, de vespas gigantes, Doutor... É o que o Uirapuru Branco faz... Ele deixa o abusado chegar perto e quando o abestado pensa que já está com o passarinho no papo, na verdade, ele está mais é agarrado em um ninho de “cabas”, Doutor.
Como o senhor pode ver, foi o que aconteceu naquele momento com o gringo, Doutor. Porém, não foi só isso o que aconteceu... O Joca me disse que quando o alemão agarrou o ninho de vespas, as “cabas” avançaram para cima dele fazendo o sacana cair e se estatelar em cima de um tronco podre de Angelim onde havia um ninho de Tocandiras...
Por falar em Tocandira, o senhor, Doutor, já ouviu falar na dor que a mordida de uma Tocandira provoca no “desinfeliz” que é mordido por ela? Não? Nem queira saber, Doutor! A Tocandira é um formigão que tem o tamanho de quase meia polegada, Doutor! Ela é de cor preta e tem a mordida tão dolorida, mas tão dolorida que o infeliz que é mordido por elas chega a vomitar de tanta dor que o desgraçado sente... Alguns chegam a mijar nas calças... Pois é, Doutor! O passarinho mágico canta tão bonito que parece até uma ave do Céu, porém, castiga mais feio que Boto Tucuxi com raiva de pescador ganancioso... O quê, Doutor? O que é Boto Tucuxi? Hiii, Doutor, é melhor deixar pra lá... Depois eu explico para o senhor!
Então, Doutor! Como desgraça pouca é bobagem! A desgraça do gringo não ficou somente nas picadas das “cabas” e nas mordidas das Tocandiras... Nem bem o coitado...
Como é que é Doutor? Porque eu, agora, estou chamando o tal de Klauss com dois “esses” de coitado se agora a pouco eu estava esculhambando o sujeito?
Bem, Doutor, um desgraçado que, além de cair de uma altura danada, é picado e mordido pelos insetos mais escrotos da floresta só pode ser chamado de “coitado”... Não tem outra forma de classificar o sujeito... Porém, não foi só isso que aconteceu com o “fio-da-puta” do gringo... Tem mais castigo... Calma, Doutor! Me deixe continuar a história do sacana do alemão...
Pois é, Doutor! Toda a desgraça do gringo ainda era pouca... Veio mais castigo para o “filho-de-uma-puta”. Nem bem o gringo se levantou, aos pulos. Gritando e se debatendo para espantar as “cabas” e as Tocandiras que atazanavam a vida do tarzinho, ele foi agarrado pelas pernas e pelos braços por um Mapinguari furioso e faminto prontinho para devorar um jantar diferente... Carne fina... Carne branca e gringa...
Sim, Doutor!? Como que eu sei da preferência do paladar do Mapinguari? Não sei! Estou apenas repetindo o que Joca especulou na hora do acontecido, e depois, eu também... Na opinião do Joca e minha, o Mapinguari estava gostando da expectativa de comer comida diferente... O Joca achou isso porque a baba escorria pelos cantos da boca do Mapinguari... O Joca disse que era baba rala... Baba de quem está desejando... Igual mulher prenha!
Então... Doutor! O Joca me falou que quando o gringo percebeu que estava sendo agarrado pelo Mapinguari e que estava prestes a ser devorado, o sujeito danou a gritar cada vez mais alto e a se debater, chutando e esmurrando o monstro... O Joca disse que o nojento gritava mais alto que o Soim com o rabo machucado pelo próprio gringo...
Como é que é Doutor? Por que o Joca não ajudou o tal de Klauss com dois “esses”?
Muito bem, Doutor! Me diga uma coisa! O senhor, Doutor... O senhor... Desceria da segurança de um galho alto, com mais de cinco metros de altura para ajudar quem quer que fosse que estivesse sendo agarrado por um monstro como um Mapinguari... À noite...! No meio da floresta...? Se o senhor conhecesse a fama de um Mapinguari, o senhor, Doutor, em sã consciência, enfrentaria um monstro daquele só para ajudar um sujeito que, em sua opinião, era um tremendo de um filho-da-puta? Desceria “seu” Doutor? Acho que não! Pois foi exatamente o que o Joca fez e eu lhe digo, Doutor, eu também faria a mesmíssima coisa!
Mas tenha paciência, Doutor! Ao final da história o senhor vai compreender muita coisa... Tenha calma...! Escute o resto...!
Doutor, todo mundo na Amazônia sabe que o Rei das matas, o que manda prender e manda soltar... O “fodão”, como diz o meu filho caçula, o Neco, é o Curupira... Pois então, Doutor! O monstro do Mapinguari pode meter medo e aterrorizar a floresta inteira... Devorar qualquer um que se atreva a passar na frente dele, porém...
Sempre tem um “porém”, não é mesmo, Doutor?
Porém, abaixo de Quaraci, o Sol, e Jaci, a Lua, todos devem obediência ao Curupira, inclusive os homens, Doutor... Como eu disse ao senhor, Doutor, o Curupira é o protetor das matas e dos animais que nela vivem... E o Mapinguari, Doutor, por mais que seja um encantado, um monstro, ele não deixa de ser um animal... Portanto, deve obediência ao seu Mestre, o Curupira.
E foi com essa autoridade... Como é que eu vou dizer para o senhor... Deixe-me lembrar de um adjetivo preferido do meu antigo professor de Direito Penal... Deixe-me lembrar... Deixe-me lembrar... Lembrei! E foi com essa autoridade INSOFISMÁVEL que, no momento em que o Mapinguari ia levando o desesperado gringo em direção à boca, o Curupira apeou do enorme Caititu em que estava montado e parado na frente da fera fez um sinal com a mão esquerda ordenando que o Mapinguari largasse o gringo Klauss com dois “esses”... A fera titubeou, rosnou e bufou, mais largou a presa ao chão, virou-se com a rapidez de um raio e pegou um Tatu Canastra retardatário da fuga em massa que ocorria naquele momento na clareira e cercanias. O Mapinguari pegou o tatu e com uma só dentada comeu metade do bicho e depois sumiu no meio da mata comendo o que restara do Canastra...
O meu amigo Joca disse que primeiro, deu dó, depois deu vontade de rir quando viu o gringo Klauss, com dois “esses”, caído no chão e tremendo que nem vara verde, todo mijado e cagado de puro pavor e olhando de baixo para cima o ser mitológico parado na frente dele...
Em pé, com as pernas abertas bem plantadas no chão forrado de folhas e galhos secos e com as mãos à cintura, o Curupira olhando com os olhos furibundos aquela figura patética gritando em desvario, o Senhor da Floresta aguardava aquela coisa se acalmar.
Pelo que o Joca me disse eu bem imagino o que se passava pela cabeça do gringo... Pense só, “seu” Delegado!
Em uma noite escura, numa clareira de uma mata fechada da misteriosa Amazônia. Iluminada somente pelos pirilampos, cupins fosforescentes e alguns raios prateados da Lua Grande, onde imperava um pandemônio sem precedentes, com gritos, rugidos, grasnados e pios estridentes; gemidos de dor e de espanto; bater de asas e de cascos em fuga. De repente, você, um alienígena perdido nos meio dos trópicos, um estrangeiro completamente ignorante da cultura e dos mitos locais se vê deitado aos pés de uma deidade de pele branca como leite de seringa, vestido apenas de uma tanga confeccionada de folhas de samambaia; com uma cabeleira abundante e esvoaçante de cor de fogo e com faiscantes olhos negros cintilando de raiva olhando-o com o desprezo que os deuses devotam aos mortais que ousam desafiá-los...
Aí, “seu” Delgado, você com o corpo pinicando de dor das ferroadas das “cabas” e das mordidas das Tocandiras, e como desgraça pouca é bobagem, ainda tem os braços, as pernas e as costelas todas lanhadas pelas garras do Mapinguari, e então, sem reação para mais nada, só lhe resta esperar a morte passivamente que nem porco no chiqueiro em véspera de Festa do Divino...
Olhe “seu” Delegado, qualquer valente, nessa situação, se borra todinho e treme que nem canarana em correnteza de cachoeira... Pois foi exatamente o que o gringo cagão fez... O borra-botas do gringo ficou lá, aos pés do Curupira, borrado, mijado, tremendo e chorando que nem bacorinho desmamado... Só esperando a morte chegar...
Sabe o que é que o Curupira fez com o gringo, “seu” Delegado? Ahm! O senhor nem imagina? Ou então imagina que o curupira o matou?
Neca de pitiriba...!
Nananinanão, “seu” Delegado! O Curupira simplesmente tomou o gringo para montaria, “seu” Delegado!
Isso mesmo, “seu” Delegado! Pegou o gringo e o transformou em montaria... O gringo virou o novo Caititu Chefe do bando de catetos...
Como assim novo chefe do bando? Ora, ora “seu” Delegado!
Acontece assim... O Curupira por ser protetor das florestas e dos animais que nela vivem, ele é um defensor intransigente da vida... O Curupira só admite a morte de um ser na floresta se essa morte servir para a vida... Deixa-me explicar para o senhor.
Funciona assim... Um caçador abate uma paca, uma cutia, um galheiro ou uma anta e leva a carcaça para o alimento dele e da família, para o Curupira está tudo bem... É o ciclo da vida na selva... Um serve para alimentar o outro... O senhor entende né? Em suma... É a cadeia alimentar... Tem os que estão no topo e tem os que estão na base. A base alimenta o topo... É a lógica darwiniana...
No entanto, se um caçador abate uma presa só por diversão, só por desfastio... Se o Curupira estiver por perto, com certeza, esse caçador será castigado... De alguma forma ele vai ser castigado... O caçador certamente se perderá na selva, pegará “panema” e, dependendo da gravidade da falta, poderá até ser picado por uma jararaca ou sofrerá emboscada de Onça Pintada, uma Canguçu...
Certamente! Certamente “seu” Delegado! O gringo Klauss, com dois “esses”, não matou e não feriu bicho nenhum... Realmente! O senhor tem toda a razão.
Porém! Eu já falei para o senhor... Tem sempre um “porém” – como eu gosto dessa palavra, ela abre possibilidades de mil conjecturas, não é mesmo? - o gringo cometeu um dos crimes mais graves que uma pessoa pode cometer na floresta, “seu” Delegado! O gringo interrompeu uma noite de idílio na selva... Uma noite única que acontece, como eu já falei para o senhor, a cada dezoito ou vinte anos...
O gringo se atreveu a interromper uma comunhão entre Encantados e Deidades, entre predadores e presas... Uma comunhão entre a Floresta e seus Habitantes numa noite mágica e iluminada pela luz azul da Lua Grande... Coisa raríssima na floresta! Numa noite assim, “seu” Delegado, a comunhão, na perfeita acepção da palavra, é total.
“Seu” Delegado, essa comunhão só acontece uma vez a cada geração... É a única noite na Floresta em que não acontece confronto entre presas e predadores... Sabe por que, “seu” Delegado? Porque todos estão sob os encantos da música divina do Uirapuru Branco e da Paz da luz azul da Lua Grande, ou pelo menos deveria acontecer até a interrupção do gringo na tentativa de capturar o passarinho mágico e animal preferido na estimação da deidade Curupira.
Para esse tipo de crime, “seu” Delegado, só existe um castigo a altura da gravidade cometida... É o castigo da transmutação... E foi exatamente o que o Curupira fez com o gringo... A deidade o transformou em sua montaria, no seu Cateto Chefe... Simples assim!
Isso mesmo, “seu” Delegado, o gringo não está perdido, não morreu e não está ferido na selva ou mantido prisioneiro por quem quer que seja morador humano das selvas ou dos rios...
O gringo, pela grave falta cometida, é escravo e montaria do Curupira... O gringo, “seu” Delegado, virou um Caititu enorme e com os pelos do lombo da cor amarelada, quase loira. Da mesma cor do Caititu em que o Curupira chegou montado à clareira, o que, aliás, deixou de ser Caititu no mesmo instante em o gringo Klauss, com dois “esses”, virou porco-do-mato.
Como não entendeu “seu” Delegado? Um gringo virou cateto e assumiu o lugar de outro gringo que também era cateto e que virou gente... Tudo ao mesmo tempo... Simples assim.
Não senhor! Eu não estou doido e nem estou enrolando o senhor... E posso provar tudo o que eu estou dizendo “seu” Delegado...
Sim senhor, claro que eu posso provar! Posso provar que o gringo que era cateto virou gente e deu o lugar dele para o gringo que era gente e que, por sua vez, virou cateto.
Como é que é possível uma loucura dessas? Simples! Sendo possível... Na floresta, “seu” Delegado, tudo é possível... Certamente o senhor já ouviu alguém dizer que, “existe mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”, não é mesmo?
Pois então! Na floresta, “seu” Delegado, acontece mais coisas estranhas do que pode imaginar o mais abestado dos ribeirinhos, inclusive o abestado do gringo e muita gente que vem por aqui...
Aham! Sim! Claro! Claro! Vou levar o senhor até a prova do que eu lhe falei... Venha comigo, vamos até o tapiri da Dona Maroca, uma curandeira, uma espécie de Xamã aqui da região...
- o –
Delegado, muito cuidado com o lugar por onde o senhor vai pisar...! Venha por aqui... Ande exatamente pelo mesmo caminho que estou seguindo... Delegado, no meio dessas folhas e galhos secos, por debaixo desses fetos de palheiras e bananeira-de-macaco na beira da trilha na mata, a jararaca e a surucucu pico-de-jaca, víboras muito das venenosas costumam se esconder nas ramas para quando o vivente passar por perto... Vupt! A mordida na batata da perna está dada... Delegado, essas cobras são tão venenosas, mas tão venenosas, que quando elas mordem o cristão que está passando, elas saem de lado que é para o infeliz não cair por cima delas... Mortinho da silva! Por isso tem que ficar esperto... “Um olho no rato, o outro no macaco”.
Não fique assustado não, Delegado, siga os meus passos que está tudo bem...
Pronto! Chegamos ao tapiri da Dona Maroca... Olhe lá, “seu” Delegado, ela está no terreiro dando xerém e quirela pros xerimbabos...
‘Tarde, Dona Maroca! Dá licença? Sua benção, Dona Maroca!
Delegado, Dona Maroca... Dona Maroca, Delegado!
Fim da Parte II
Continua... Parte III =>