A SOMBRA

Havia imagens fragmentadas nos espelhos do meu quarto. Podia ver as imagens se decomporem infinitesimalmente em feixes de luz. Mas existia um contraponto! Eu gostava de contrapontos, da oposição! Esse contraponto era justamente a sombra do meu corpo. Havia duas faces: a face luminosa, o mundo visível e o reflexo do meu rosto no espelho e a face oculta, o universo sutil, a sombra. Essencialmente tudo é sombra. Costumava dizer que a mônada é a sombra e não o fogo primordial. Talvez a sombra fosse o Louco do tarô de Marselha. A sombra é a grande mãe. A sombra nos projeta. A sombra é o subconsciente e a consciência, um mero subproduto da subconsciência. Nesse tempo, eu estava iniciando meus estudos em alemão e adorava a palavra Schatten, ela me fascinava. Mas por que me fascinava? Simplesmente porque significa sombra! Assim como Shadow também me fascinava. No fim, era só mais uma maneira de expressar meu amor pela sombra. Eu tinha uma namorada e ela se chamava Sombra. Não, mentira! O nome dela era Sofia. Acho que também podia ser Logos, no entanto Sofia é um bom nome para uma garota. Ela viria para cá à tarde, eu estava esperando por ela. Não tardou para que chegasse. Abri-lhe a porta. A porta fez uma sombra e Sofia olhou-a profundamente, embora não compartilhasse meu interesse pela sombra. Ela me beijou e logo lhe desci a mão pela silhueta. Ela me olhou e disse:

- Amor, você não dormiu bem, não foi?Está com os olhos inchados!

- Dormi três horas apenas – Respondi.

-Essa sua obsessão pela sombra está-lhe prejudicando- Ela disse com pesar.

- E o que há de mal nisso tudo? Temos que nos sacrificar por um ideal.

- Não é um ideal, amor, é uma obsessão. Temos coisas mais interessantes para fazer

-Como o quê?

Ela se virou de modo que seu corpo se contorceu e lentamente foi tirando as alças da blusa e convidou-me a tirar o resto. Na cama, discutimos sobre muitos assuntos: desde problemas da nossa relação à minha metafísica obcecada. Na verdade, existia uma clara intersecção entre a minha metafísica obcecada e os problemas da relação. Ela era linda e inteligente e dominava cinco idiomas: alemão, inglês, português, francês e russo. Sim, russo! Já eu dominava Cabala, astrologia hermética, numerologia, tarologia e quirologia. A relação era matematicamente perfeita e enriquecedora. Sua lua era em leão, sol em libra e ascendente em libra, de modo que explicava muita coisa. Já eu possuía a maioria dos meus planetas pessoais em signos de água, tinha sol em escorpião e ascendente em peixes, o que também explicava muita coisa.

-Amor, pare um pouco de pensar nessas coisas! Pense um pouco no mundo real... É uma sugestão.

- Este é o meu mundo real... Basta olhar para os livros nas minhas estantes. Quer saber o que vejo?

- Sim, por favor!

- Essa cena está congelada em minha mente... Seu corpo nu deitado em minha cama. As janelas abertas com o sol se pondo, a nossa discussão inócua... Tudo, tudo congelado em minha mente e vejo a cena como se fosse o negativo de uma fotografia.

Ela ergueu seu corpo se apoiando com os joelhos sobre a cama. Estendeu as mãos para me alcançar e abriu os lábios lentamente:

Eu te amo, não peço que seja alguém normal, mas apenas que não ignore o mundo lá fora. Lá fora há vida criativa, o mundo não se passa apenas em sua cabeça, em suas abstrações.

- Tudo bem, vou tentar.

Ela se vestiu e saiu. Mas havia algo que ela não sabia, eu estava saindo com outra mulher e eu estava me apaixonando por ela, chamava-se Hera. Eu ainda amava a Sofia, mas Hera tinha algo que Sofia não me oferecia: entendimento. Enquanto Sofia me oferecia sua beleza que me desnorteava, Hera me apresentava seu universo inscrito no meu: seu universo cigano.

Sofia já havia me pego com outras mulheres, mas casos à toa, de modo que não se aborrecia.

Eu ia ter com Hera em breve. Hera me indagou sobre Sofia.

- Qual a crença da Sofia?

- Sofia é ateia.

-Percebi que seria algo assim pelo que me contou.

- Não vamos falar de Sofia- falei afagando seu cabelo negro e descendo a mão aos arredores dos seus peitos.

-Precisamos conversar – Ela disse.

-Sobre o quê ? – Perguntei.

- A sombra de que tanto fala, vamos discutir sobre ela.

- O que deseja saber?

- No que a sombra implica materialmente ao seu ver?

-A sombra projeta a matéria, da mesma forma que matéria é algum tipo de energia. A sombra é algo que impregna todo o universo como se fosse o éter da alquimia. A sombra é uma deusa, assim como a Loucura do Erasmo de Rotterdam. A partir da sombra se criam os pintores, os artistas, os poetas, os boêmios e toda energia criativa. A sombra é o universo sutil.

- Sempre pensei que o universo sutil fosse meramente energético.

- É uma forma de encarar a realidade, a minha sombra é uma metáfora.

E tudo parte da Sombra que é a grande mãe. Toda criação é essencialmente obscura e ganha vida conforme vai sendo revelada.

- Entendo. E no tarô, o que seria a sombra?

- As cartas nos sentidos anti-horários ou então a carta à esquerda que representa o passado

- Eu entendi. Mas como essa grande deusa nutre seus filhos?

- Ela nutre com seus mistérios que vão sendo revelados gradativamente. O mistério é a essência da vida.

- Compreendo.

- Vamos sair um pouco? – Sugeri.

-Está bem.

Saímos para a claridade, para a face luminosa, para meu reflexo no espelho.

- O sol que é a vida – ela disse.

- E de onde vem a sua vida senão da Sombra?

- Não entendi.

- Toda criação é obscura.

-Já me disse. Mas discordo de você em um ponto. Acho que depende de aonde queremos chegar. Se quisermos seguir pela via: Fogo, terra, ar e água, a Sombra é o objetivo final, no entanto se seguirmos pelo caminho inverso chegaremos ao fogo primordial.

- Mas aí você está se prendendo a certa linearidade, lembre-se que ainda há o Louco, a carta zero no tarô que ao meu ver é a sombra interna de todo ser humano.

- Não precisa se estender, já pude entender aonde quer chegar.

Peguei em sua mão e por acaso Sofia nos viu, o que não me espantou.

Quando voltei para a casa, Sofia – que possuía a chave da porta- já estava lá para ter uma longa conversa comigo.

- Então anda saindo com outra mulher?

- Sim, não viu?

- Vi sim – Uma lágrima escorreu de seu olho em direção ao pescoço.

Aproximei-me dela e lambi sua lágrima, afagando seu cabelo.

- Não se preocupe, não representa uma ameaça para você – respondi.

- Posso confiar?

- Só se quiser.

- Não sou suficiente para você?

- Acho que já deveria ter percebido que não. Quantas amantes eu não já tive?

- Sua sinceridade me magoa.

- Então nada me pergunte. Deixe estar. – Disse abraçando-a.

E fizemos sexo em cima da cômoda. Foi algo nervoso e apressado.

Então voltei a pensar na Sombra, a minha grande Deusa e minha consorte, aliás me era. Eu era a Sombra, era filho da Sombra e era seu marido. Eis o mistério da Santíssima trindade.Eis o mistério de todas as trindades das religiões antigas e agora a minha face sombria estava à tona... Meus desejos carnais irrefreáveis, meu subconsciente atacando, meus instintos magoando a quem mais eu amava. Mas a Sombra cobrava um preço para ser revelada sob a luz do sol miserável, um filho ingrato da Sombra. Eu amava a Sombra como amava Sofia. Mas tinha de renunciar a uma para que a outra se sobressaísse. Eis o meu dilema. E que dilema miserável. Que condição miserável... Ser filho da Sombra, ser seu marido e ser a própria Sombra. A Sombra se basta. A Sombra é soberana e mãe de todos os deuses. A sombra é mulher e no seu útero dança todo o universo das coisas tolas. E nunca as coisas nascem completamente, pois estão em estado embrionário, latente, envolvidos pelos véus sombrios do útero da Grande Mãe. A não ser quando se doma o Self de Jung, aí que se aprende a controlar a Sombra. Você passa a ser seu mestre, nesse estágio você é a própria Sombra. Mas eu tinha coisas melhores para pensar nesse momento. Por exemplo... No sexo maravilhoso que tivera há pouco. No entanto, a sombra me consumia e então voltei a pensar nela. A sombra é anti-ideológica, ela não apresenta um organograma a seguir, nem qualquer tipo de meta ou ideal que não seja a própria Sombra. Ela apenas quer que se viva a Sombra em sua plenitude, e viver a Sombra implica em admitir a natureza nefasta e primitiva que habita qualquer ser, mas é necessário que se dome ambos os lados... A face oculta e a face visível de qualquer situação. Eu li Demian de Hermann Hesse e me encantei com a seguinte máxima: A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo [...] Esta é justamente a única proposta da Sombra: destruir um mundo para nascer. É o que faltou ao pobre Werther, as cascas o destruíram, ao invés de ele mesmo quebrar as cascas e então bastou uma pequena desilusão que a ele parecia o fim do mundo para que se desistisse de nascer, assim como tirar própria vida ainda em estado embrionário. Sim, pois creio que ainda não tivesse nascido. Bela obra de Goethe. Nem tão pouco, podemos viver como Hamlet ou como o sonhador de Noites Brancas do Dostoievski. Não podemos ignorar o mundo lá fora, apesar de todo mundo estar dentro de nós. A filosofia é uma amiga que nos mata, nos intoxica. Temos que dominá-la, assim como a Sombra. Tudo é autocontrole.

Sofia estava deitada sobre a cama e eu queria amá-la mais e mais. Mas já estava cansado. Então voltei a pensar. Eu já havia me despido de qualquer moral como propôs Nietzsche, no entanto nem todas as morais são nocivas, algumas são úteis. O além-homem é nocivo, esse sim é perigoso e todos devem temê-lo. Eu acreditava em metafísica, mas me considerava algo como um além-homem. Sofia devia me temer, mas ela me amava. Isso me comovia. Eu teria todas as mulheres que desejasse e isso a matava lentamente, mas havia algo que eu não queria controlar, era a face oculta, os meus desejos mais recônditos. Eu amava Sofia, amava sua beleza, suas volúpias, sua mente, seus modos, seus sentimentos, amava-a em todos os níveis desde os mais profanos até os mais etéreos. Mas isso não me impedia de ter tesão por outras mulheres e por que controlar algo tão natural? O homem foi feito para a poligamia. Vi a sombra de uma borboleta passar pelo quarto, vi apenas a sombra! O que havia de significar? A sombra, a borboleta... Talvez uma nova fase, uma nova vida. Talvez eu nasça e saia dos véus sombrios do útero da Grande Mãe.

Sofia acordou e não pude deixar de conferir seu rosto assustado quando notou que seu corpo não estava coberto e as janelas permaneciam abertas. Eu as havia aberto e eu a havia descoberto. Era até algo usual da minha parte, no entanto ela não deixava de surpreender-se. .

- Não quero mais você- ela me contou.

- Por quê?

- Você me faz mal.

- Então vá embora – disse puxando um cigarro do maço.

Ela saiu toda desconcertada com olhos inchados pelo choro. Eu permaneci imóvel em frente à janela aberta observando as árvores da Grande Mãe.

Naquele dia convidei duas amigas para passar a noite comigo. Era meu modo de reagir, de me contrapor, de me indignar. Eu era uma oposição, eu era a Sombra. Lágrimas não me vieram materialmente, mas ficaram cristalizadas na mente.

De repente, as imagens ficaram difusas em cores violeta e anil e eu não sei por que eu comecei a dançar, dancei e dancei até que caí no chão do quarto. Era madrugada, elas já tinham ido embora. Eu estava só. Envolvido pelas cores. Tentei me levantar e de fato levantei. O corpo estava embriagado e eu gostava da sensação do álcool tornando as membranas do cérebro mais finas. O álcool fazia parte do meu ritual sagrado de comunhão com os cosmos. Pode parecer besteira, coisa de drogado, embora... Realmente o fosse.

Eu voltei a dançar desesperadamente e a rodopiar continuamente até bater contra a parede do quarto. E bati.

Pela manhã, revi as fotografias que tirei com Sofia. E preguei na parede todas elas, de modo que eu acordasse olhando para seu rosto. Saí de casa e trouxe a cigana para morar comigo . Ela sugeriu que eu retirasse as fotos, mas eu me neguei e ela tudo compreendeu. Pedi para que ela fizesse uma massagem em mim. E assim ela o fez.

- Você está com alguns ferimentos – ela disse.

- Bati contra a parede – respondi.

Ela fingiu não se importar.

Quando ela terminou a massagem bebi uma dose de uísque e ela me censurou por isso.

- Você quer ir embora também?Não pode lidar com meu jeito? Então faça como ela... Vá embora!

Ela chorou, mas se recusou a ir. Acho que sentiu que precisava cuidar de mim.

- Você não está sendo você mesmo. Você está consumido por essa ideia de Sombra e de Super-homem sei lá o quê.

- Além-homem seria mais apropriado porque vem de Übermensch- Corrigi-a.

- Pouco importa, o que importa é que você está morrendo.

- Todos têm que morrer para ter uma nova vida.

- Você tem que criar a filosofia e não ela criar você.- Ela disse.

- Discordo plenamente. A filosofia muda nossas vidas, ela é um caminho.

- E que caminho hein. Você tá se acabando nisso, dispensou a pessoa que você mais ama e agora se contenta comigo. Eu tenho pena de você.

- Se tem pena de mim, vá embora. Alguém que se encontra como eu... Não é digno de pena.

-Não vou, porque você não está em condições de morar sozinho. Você deveria lutar pela Sofia e não deixá-la ir tão facilmente.

- Tenho que respeitar a escolha dela.

- Seu miserável. Ela foi obrigada a fazê-lo, você está virando um monstro. Ela pensou que você lutaria por ela, tentaria mudar.

-Ela então deveria respeitar minha escolha de ser como tenho sido. Se ela não pode conviver com um monstro, então o melhor para ela é ir embora. Monstros são perigosos. A propósito, pensei que você fosse diferente, mas vejo que também pode ser engolida por mim. Vá embora. Sou perigoso.

- Cale a boca, miserável. Vou fazer seu almoço.

E ela tirou as cartas de tarô, ao invés do baralho cigano para mim e havia a Torre em uma posição que reforça o seu sentido de desconstrução, de dissolução de formas, do homem que se rebaixa a sua condição de miséria, do homem diminuído. Que cai da Torre, que cai da sua arrogância. O homem ocupa apenas uma pequena parte da carta da Torre, ele está reduzido a quase nada. O seu ego não é nada comparado ao movimento das coisas tolas do universo, tampouco à transpessoalidade. ELE CAI DA TORRE. Também surgiu A morte e o Diabo. E eu acho que eu entendi porque apareceram. O que para mim significou que vou quebrar a casca do ovo, eu vou nascer, vou destruir um mundo. Demian foi realmente uma leitura que me fez pensar.

- Eu vou te ajudar a de fato renascer – Hera me disse.

Eu apenas fiquei em silêncio.

Eu estava deitado ao lado de Hera e já estava amanhecendo, então me levantei da cama e como de costume abri as janelas. Havia todo um mundo lá fora. As árvores da Grande Mãe, o solo fértil da primavera e todas as coisas tolas dançando no universo. Deixei-a dormir e saí de casa atrás de respostas. Subi numa colina e admirei a linda vista de cima. E pensei no que diferem o mundo introverso do mundo extroverso. Parecem faces da mesma moeda. Eles se retroalimentam. Todo o mundo está dentro de nós e nós estamos dentro de todo o mundo. É aquele princípio chamado de imanência. A matéria altera o pensamento e o pensamento altera a matéria. Não existe início, princípio e fim. Os extremos se tocam, eles se amam, eles se nutrem, enquanto o movimento os leva a oscilar pelas suas gradações e lepidamente passam pelo meio. Mas o que me leva a ser tão introvertido e não perceber que também estou do lado de fora de mim mesmo? Será a minha soberba? Será porque sou aquele que originalmente experimentou o fruto do conhecimento? Acho que me basto? Eis mais um dilema miserável. Preciso viver dentro de mim, mas preciso me reconhecer fora dos limites da minha caixa craniana maldita. Dos limites do meu corpo, do meu ego, desse traste que vaga entre o tudo e o nada, perdido no tempo e no espaço.