Necrópsia
Aqueles ossos expostos na mesa fria do necrotério despertavam em mim um desejo primitivo de não me afastar das minhas carnes, mas não havia escapatória, - eu já era voto vencido, - cheguei ali sem nem chance de ensaiar sequer um desfalecimento, aliás, como não poderia ser diferente de quem é protagonista de um lugar como aquele: morto, desencarnado. Dalí em diante, foi um tal de a equipe médica separar os meus braços, minhas pernas, abdômen e... “Eis aqui o perímetro lesionado, identificado no exame balístico que deu origem à causa mortis, professor!” – um grupo voltava saltitante e com um ar de superioridade de uma sala meio escura lá no fim do corredor, exibindo o meu tórax esmagado e acondicionado em um saco plástico transparente, em cima de uma bandeja de aço, como se fosse um troféu. Estranhamente, naquele instante aquele pedaço de mim pareceu estar latejando. De fato, aqueles três jovens médicos traziam meu tórax aos solavancos, tentando manter o equilíbrio da bandeja, e isso é que me fez pensar na possibilidade de ele parecer querer de repente pular dali. Além disso, a baixa temperatura do ambiente vaporizava a umidade dentro da embalagem plástica, e pude também, fantasiosamente, pensar em um grande frango assado, embalado para viagem.
-Iremos, então, interromper a aula agora por duas horas para o intervalo do almoço; depois iremos dissecá-lo!”– falou o professor; todos imediatamente concordaram e foram logo tirando luvas, máscaras... meu tórax voltou para a geladeira.
O que eles iriam comer, fígado ao molho ferruginoso, miolo à La Carbonara, Carpaccio com Guacamole?! Sei lá, eu apostaria mesmo em uma boa dobradinha, com todas aquelas vísceras combinando com arroz branco, farinha e pimenta malagueta e mais uma cervejinha pra refrescar... uma, não, duas, três, seis...
Acreditando que ainda precisava aproveitar a saída daqueles jovens médicos para dar uma espiada sem ser percebido, saí de trás de uma grande geladeira de aço e me aproximei, contemplando serenamente o que resultara de mim: eu estava em todos os cantos daquelas salas; todas aquelas gavetas geladas guardavam partes do meu corpo, com plaquetas identificadoras. E minha cabeça, -lembrei, - onde está a minha cabeça? Como eu teria morrido? Só lembrava que um caminhão... será que, mais uma vez, eu teria me descuidado, não cortando o cabelo?! É, porque eu tinha a mania de não me cuidar, de atrasar o corte; vai ver, morri feio pra burro!
Definitivamente, eu não tinha consciência plena da minha morte, nem do que realmente ela representava, por isso eu estava ali tentando imaginar o que aqueles caras foram comer em plena sexta-feira, meio dia e... – putz! – sexta-feira, e eu aqui dentro, pensei. Saí estabanado, corredor afora, alcancei a porta da saída principal, - era automática – antes que ela abrisse, alguém entrou de repente atravessando o vidro – se ele pode, eu também posso, imaginei. Quando dei por mim, já estava em frente ao boteco do outro lado da rua e, melhor: toda aquela equipe médica também estava lá; o próprio professor me recebeu de braços abertos, me apresentando àqueles rapazes, deixando escapar um “demorou!”. Todos riram, eu mais ainda: oxalá vigiava por mim.