O segredo do Capitão Garrafa
A gente vinha toda semana. Daqui deste ponto dava pra ver toda a Lagoa do Jacaré, que é o primeiro estágio da Lagoa Feia, de norte pra sul. Naquela época tudo era tabúa, água e aguapé. Um cheiro de capim molhado, de lama, de vida. As máquinas criminosas ainda não tinham passado por aqui e drenagem era apenas um nome a ser consultado durante as aulas de D. Lelete. A grande lagoa chamava-se Feia, a gente não entendia o porquê, mas preferíamos nos ocupar com coisas mais importantes como esperar, ansiosamente, pelas noites de sábado para poder assistir, junto com a gurizada, na loja de Seu Benício Abreu – um dos poucos aparelhos de televisão de Tócos – ao programa Perdidos no Espaço. A chamada dos episódios permanecia nas nossas mentes durante a semana e era aqui, onde vocês estão agora, que a gente discutia a continuação da série, tentando adivinhar por que aventuras passariam os personagens. Pouco nos importavam as notícias da Voz do Brasil, naquele rádio enorme, envolto em caixa de madeira. Parecia haver dois mundos: um, dos nossos pais, preocupados com os descaminhos do recente golpe militar; e outro, o nosso, onde tudo era festa, pipa, bola de gude, foguetes. Um mundo que discutíamos sentados entre os pendões da tabúa, com os pés na água florida de aguapé.
Nossas reuniões eram freqüentes, nossos lugares na roda eram os mesmos, tínhamos entre oito e doze anos e nossas histórias eram muito parecidas. Sobre os assuntos, só havia novidades quando chegava algum primo, trazendo as boas novas do Rio de Janeiro. Lá sim, era o lugar onde acontecia de tudo. Qualquer fato tornava-se possível no Rio. É verdade que havia um certo exagero e mesmo mentira, mas a gente ficava boquiaberta com os casos que eles contavam.
Tudo seguia igual, igualzinho, não fosse a última novidade: Tuinho deu de comparecer às reuniões de posse de uma garrafa d’água coberta com um pano. Era uma dessas de água mineral e a gente, a princípio, pensou que era água pra beber, para quando ele tivesse sede, e houve quem a pedisse várias vezes, para esse mesmo fim, ao que ele negava com veemência. O tempo passava e a água continuava lá. Às vezes, deitava-a sobre arbustos, na tabúa e mesmo imersa nas águas da lagoa. Como ele e a garrafa tornaram-se inseparáveis naqueles dias, a gente começou a pensar que Tuinho estava lelé-da-cuca ou sei-la-o-quê.
O tempo passava e Tuinho nada revelava sobre o objeto da curiosidade da turma. Tornou-se sério e calado. Parecia conhecer o Segredo de Fátima de que a Irmã Zilda tanto falava. Todos percebíamos que algo havia mudado. Ele não era mais o mesmo: até a voz tinha se tornado grave. Então ficou decretado, no silêncio da pequena confraria, que ele não seria mais um dos nossos; melhor que fosse se juntar àquele povo que perdia tempo escutando notícias pelo rádio, depois daquela musiquinha chata e pontual. Melhor mesmo, porque no grupo não poderia haver gente metida a besta. Que fosse para o raio-que-o-parta com seus mistérios e suas garrafas e nos deixasse em paz com nossa lagoa, que sempre nos lavava a alma, principalmente depois da missa, quando enfileirados para a confissão ao padre, íamos nos lembrando da professora de catecismo que vivia dizendo “confesse todos os pecados” e nós ficávamos calados e pensativos. O que seria pecado? O que não? Se não havia, inventava. O importante era ter o que falar na hora, por entre os buraquinhos do confessionário. Isso era uma das tarefas mais difíceis do mundo. Quando terminava, era como se estivéssemos flutuando a caminho do céu e no momento da hóstia “não pode mastigar: tem que dissolver”. Sim, depois da missa, a lagoa.
E Tuinho, nas semanas que se seguiram, não mais deu as caras, passando mais tempo com os novos amigos, jogando bola na praça, com gente de sua laia, onde até homem feito tinha. Ficou estabelecido uma espécie de limite entre o nosso paraíso e o dele. Mas, finalmente, um dia em que o vento estava forte e aproveitamos para soltar as pipas maiores, chamadas estrelas, ele apareceu, assim meio com saudades, meio com remorso ou com vergonha de estar crescendo. Fez sinal com a mão, os meninos amarraram suas linhas no chão e foram ao seu encontro.
Aqui mesmo, do alto desta dobra do terreno, ele fez com que todos se sentassem e, num crepúsculo dos mais belos, onde artefatos de papel de seda balançavam-se ao vento, tomamos conhecimento de algo que os livros de ciências só nos ensinariam mais tarde, coisas que nossos pais não nos haviam ensinado. Ainda me lembro da sua voz, dos gestos e dos cuidados ao transmitir informações sobre assuntos tão isolados de nossos propósitos. Aquele momento foi marcante em nossas vidas. Os adultos carregamos uma carga de emoções que nos remetem sempre a sonhos definitivos. Bendito Antônio e sua aula; mas, também bendito foi o tempo em que de nada sabíamos.
E ele desembrulhou a garrafa de água mineral e apontou algo em seu interior que de início não conseguíamos ver, mas que, com uma mexida, subia e descia: uma espécie de gelatina branca, uma pequena água-viva, uma alga como no desenho do livro. Era esperma.
Ele explicou que no início da puberdade era uma coisa muito rala, um líquido um pouco mais grosso que a água, e que assim deveria ser com a gente, quando experimentássemos a masturbação, técnica até então desconhecida de nós. E caiu-se o véu. Já era noite quando ele terminou de explicar sobre como nascemos. No dia seguinte, após tentativas, comentávamos que a “técnica” não funcionava. Mas, com a prática, acabamos por perceber que era uma questão de tempo.
A partir daquele dia, Tuinho era o nosso herói. Uma espécie de Capitão Garrafa, o mais velho, o mais esperto, o chefe do bando. E cada vez mais branca a água-viva, sempre exibida como um troféu.
Os dias foram se sucedendo e Tuinho permaneceu no poder por um longo período, até que nós nos mudamos para a cidade, ou ingressamos no ginásio, ou nos tornamos loucos, ou morremos. Até desfazer-se o bando, lá na curva do Pantaleão, sepultando um passado, cujo tempo não nos perdoou e nos fez crescer, talvez por culpa dos verdadeiros pecados que pensávamos não cometer.
Pois, foi aqui neste local o sermão do crepúsculo - o das estrelas coloridas cruzando o céu - que fez de Tuinho o herói de nossas histórias. Só falta dizer o motivo pelo qual eu os trouxe até aqui.
Recentemente, durante as festividades de inauguração do Colégio Almirante Barroso, fui chamado a um canto, quando reconheci um dos nossos amigos daquela época que me perguntou se eu ficara sabendo da última sobre Antônio. Fiquei surpreso, quando ele passou a me contar que, no ano passado, o nosso amigo reuniu toda a sua família aqui, para que testemunhasse a maior proeza de sua vida, pedindo, em pacto de segredo absoluto, que jamais contassem a alguém, em hipótese alguma, o que estaria para acontecer. Devemos perdoar os parentes. Foi demais.
Ele subiu aqui no alto, falou alguma coisa sobre a grande lagoa, sobre crepúsculos e sobre a paz. E voou. Como garça, planou sobre a planície com total liberdade. Para trás ficaram a usina, a Ilha dos Carães, a Vala do Mato. Do alto, um mundo de água, tabúa e aguapé foi desaparecendo. Lentamente. Foi aí, então, que percebi a presença dessas máquinas.