Uma Queda Uma Vida

Vive naquela floresta todo tipo de animal possível de se imaginar em regiões semelhantes. A mata, para quem a contempla de longe, parece impenetrável; um mundo totalmente inacessível. O único rio que a atravessa desce do seu nascedouro nas montanhas distantes e deixa ali a sua marca. A vida por lá é abundante e copiosa. Já nas primeiras horas da manhã, ao abrir-se o sol de verão, a claridade que inunda algumas partes do rio, ao coar-se entre a vegetação, cinge de cores as águas; a luz intensa modifica o ambiente. O leito ilumina-se.

Patos selvagens aproveitam esses momentos para o seu banho de sol. Por cima das águas, refletindo a luz, abelhas voejam em círculos. As asas escuras dos marimbondos adquirem um tom vivo e transparente. As borboletas que cruzam as margens de um lado a outro param ali com freadas intermitentes e saboreiam aquele calor; a claridade destaca ainda mais a beleza de suas formas e a harmonia dos seus movimentos.

Libélulas vêm e vão, planando aqui e acolá. Seus pares de asas fininhas e já quase transparentes somem de vez e é possível vislumbrar, por segundos, todo o corpo esguio dessas lavadeiras antes do seu movimento vertical brusco para cima ou para baixo. Têm em comum com o salto de um paraquedista, observado de longe e ao sabor da gravidade, entregue à queda enquanto não aciona a sua proteção.

Os oásis dessa mata escura e desconhecida são esses pontos abençoados pela dádiva da luz solar. O rio faz curvas no seu interior, indo de encontro a verdadeiros antros de selvageria. Em suas partes mais largas crocodilos descansam nas margens, descendo vez ou outra para se afundarem na água; gaivotas enfileiram-se nos galhos secos, contemplando tudo ao redor; micos saltam de galho em galho e é constante a ronda das águias a espera do momento certeiro de embicar e trazer, pendurada, a sua presa.

Caminhando-se mais um pouco por uma das trilhas que margeiam o rio, entre árvores galhudas, a jogar sobre a passagem sua rica folhagem, vai-se de encontro ao cenário e ao acontecimento que deu origem a essa história. O fato de ser a mata gigante e inóspita não impede alguém de nela sobreviver. Foi o que aconteceu a Cris; Cristiano é seu verdadeiro nome. O voo que o trouxera a passeio foi o prêmio prometido, e muito cobrado, caso terminasse com sucesso o curso escolar fundamental.

Acompanhado do pai, que pilotava o jatinho, e mais um casal de irmãos mais novos Cris curtia, aos quinze anos, sua primeira aventura real e não mais aquelas que roubavam suas poucas horas de ócio, dada a rotina escolar intensíssima.

- Então; o que está achando? – perguntou o pai, no controle da aeronave.

- Não tenho palavras – respondeu Cris, ao ver debaixo de si o cenário deslumbrante da selva.

O pai era mestre na arte de pilotar; não só o próprio avião como a própria vida. Aos 46 anos, podia considerar-se um vencedor e até parar se quisesse. Mas não queria. Amava o trabalho como amava esses momentos em que proporcionava felicidade aos filhos.

Vista de cima a mata não proporcionava visão maior do que a interminável cortina de verde a se perder de vista. As árvores entrelaçavam-se. Em algumas partes podia-se ver a paleta esbranquiçada das nuvens a deslizar suas formas sobre o rico dossel; é como se céu e floresta se unissem no distante horizonte. O tempo nublado dificultava um pouco a visão, mas para o destro piloto isto não representava problema.

Em dado momento, porém, ele percebeu que a aeronave perdia altura. Os meninos sentiram o nervosismo do pai, como as gotas de suor que surgiram em seu rosto pálido e contraído.

- Estamos caindo, papai? – perguntou a menininha, mas o homem não respondeu. Não precisava. Sua atitude era de extremo desespero. Mexia impensadamente em cada botão de controle. Mas o que tinha que acontecer estava escrito.

- Apertem o cinto! – gritou o pai apavorado.

O avião desceu e projetou-se sobre enorme e frondosa árvore, ficando preso a ela, entre seus galhos. O pai, consciente após o susto e a parada total, vira-se para olhar os filhos e verificar como estão; não vê Cris entre eles.

- Cris! Onde está Cris? – gritou, alarmado. Viu a abertura e soube o que havia acontecido.

O jatinho, ao descer, batendo contra as árvores, antes de se apoiar em

uma delas, teve arrancada uma de suas janelas, justamente onde se encontrava o menino que, sem ter tido tempo de apertar o cinto de segurança, pois se encontrava sem ele, foi sugado pelo vácuo e lançado para fora. Para sua sorte e salvação, passava por baixo o rio, com suas águas, naquele ponto, caudalosas, mas não tanto profundas. Cris, que havia perdido os sentidos com o impacto da ejeção, recuperou-os ao cair na água. Zonzo e atormentado consegue nadar até a margem e pôr-se em terra.

Por mais que gritasse por socorro, chamando o nome do pai e dos irmãos, não foi ouvido. Caminhou horas, sem destino; dormiu às margens do rio, amanheceu sujo e esfomeado e viu pela frente um dia lúgubre e sem perspectivas. A comunicação pelo rádio trouxe até os entes queridos de Cris o resgate e a salvação. Mas, para ele mesmo isto não foi possível. Não faltaram as buscas intensas, repletas de tecnologia e de esperança. Contudo, enquanto farta a primeira, a outra esmoreceu-se, traída pelo turbilhão de perigos e pela imensidade da mata e acabou morrendo. Mas não Cris; ele sobreviveu a tudo.

Superando o medo da solidão e adaptando-se para a nova vida, venceu os primeiros e mais cruciais obstáculos. Sabendo o que comer e como encontrar e improvisando para si um local de morada criou um modo de vida até que as circunstâncias e o tempo o fizessem encontradiço. Mas os anos iam passando e nada acontecia. O adolescente civilizado, o menino moderno e citadino é hoje o ser selvagem, cuja mata é o lar, os animais são a família, os berros e os trejeitos são a forma de comunicação. Entende e é entendido. Não mata para se alimentar, pois não precisa da carne, mas dos frutos abundantes e das raízes generosas a sua disposição. Sobe em árvores, passeia entre elas. Brinca com os gorilas; entende e é entendido.

Foi essa a história que me passaram e a reconto a quem por ela se interessar. Acreditando ou não na sua veracidade, esta é a história do homem macaco.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 04/04/2013
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