Diário dos Desejos - Capítulo 5
CAPÍTULO 5
Kay acordou em um quarto de hospital e viu Clare sentada ao seu lado, ainda vestida de copo de leite.
- O que houve?
- Graças a Deus, – Clare suspira aliviada. – Me desculpe, não sabia que você era alérgico. Foi burrice a minha fazer aquela surpresa.
- Surpresa? – Foi quando se lembrou do que aconteceu.
O estranho nunca tirou os olhos dos seus, nem por um instante. Nem mesmo quando sua garganta fechou e não conseguia respirar. Quando caiu desorientado e o viu, ele ainda o encarava impiedoso. A lembrança daqueles olhos o aterrorizava, sentia-se observado constantemente. Depois disso, tudo não passa de branco.
- Mais alguém veio com você? - Sua preocupação ainda era aquela.
- Não, nós chegamos faz poucos minutos. Ainda estou de vestido, por isso pedi para meu motorista voltar e pegar uma muda de roupa para mim.
- Para que?
- Não quero passar o resto da madrugada fantasiada de copo de leite. Vai que você tenha uma alergia só me vendo? – Mesmo tentando descontrair, Kay virou-se para vasculhar o quarto com os olhos, ignorando completamente a piada.
- Tem certeza que ninguém mais veio além de você?
- Por que tanta preocupação? Pode ligar para seus pais se quiser.
- Que hospital é esse? Você foi seguida por alguém?
- Kay, você está assustando. Tente relaxar, já liguei para seus pais e eles vêm buscá-lo de manhã.
Preocupá-la não o ajudaria, pensou enfim. "Não tem como ela entender como me sinto. Nem eu entendo como me sinto. Nunca passei por isso antes na minha vida. Desejos... Quantos desejos ainda tenho?!" Parando de pensar para conferir, viu que apenas seu indicador possui uma mancha grande o bastante para um desejo. A segunda havia sido usada após a meia noite. Um leve desespero o atingiu. "Não... Está errado, eu deveria ter duas manchas agora. O que aconteceu com a segunda?!"
Interrompendo seus pensamentos, Clare o chamou tirando algo de dentro da bolsa.
- Kay, onde você conseguiu isto? – Ela estava segurando uma máscara estranha. – Ninguém viu quando você a pôs, nem de onde tirou isto.
Não era uma máscara qualquer, era uma máscara de gás usada comumente por bombeiros. Ela possui um visor de vidro e dois círculos metálicos esburacados próximos da boca. Kay viu e não se lembrava de possuir tal coisa nem de tê-la desejado, mas acreditou fazer sentido ter feito o pedido quando sua vida dependia daquilo. "E agora?" Pensou aflito. "Como explicar isso? Não quero envolver mais pessoas com essa maldição, não depois de a primeira pessoa envolvida ser também o maníaco da insônia. Quanto menos gente souber, melhor."
- Não é a primeira vez que quase morro asfixiado com pólen, Clare. - Disse, com olhar distante e sempre cuidando com o canto do olho por qualquer movimento próximo à porta.
- Entendo, - Ela põe a máscara sobre o lençol em seu colo. - Deve ser difícil viver tendo que se prevenir de algo que a maioria não precisa. - Suas palavras tiveram mais impacto do que aparentaram. Não apenas a alergia, seu cotidiano que, apesar de semelhante com o de qualquer garoto de sua idade, se tornou uma prevenção constante contra o perigo. - Provavelmente se não fosse por esta máscara você estaria... - O celular de Clare toca em sua bolsa. É seu motorista. - Já volto, ele acaba de chegar com minha muda de roupa. Algum problema? - Ela se referia em passar a noite em seu quarto.
- Faça o que achar ser certo. - Disse sem olhá-la nos olhos. Então ela sai, sem ter certeza se terá sua companhia pelo resto da madrugada. Ele não quis forçá-la a fazer nada contra sua vontade, afinal tudo que lhe acontece só poderia ser fruto da improbabilidade. Mesmo que ela nunca descobrisse, não foi culpa dela, nem mesmo a surpresa dos copos de leite. De qualquer forma, estava mais preocupado com outro assunto.
"Certo, eu vi seu rosto. Agora é somente uma questão de tempo até descobrir sua identidade. Mas como faço isso?" Pensou nas possibilidades de busca. Poderia procurar observando em sua escola durante o recreio, talvez perguntar para alguns estudantes de cada classe, mas pareciam alternativas inviáveis para a mais eficaz. "A melhor forma de identificá-lo seria através dos arquivos escolares. O problema é como conseguir acesso a esses documentos. Hoje é sábado, qualquer alternativa só poderia ser posta em prática segunda-feira." Então lembrou-se de Clare, sentindo-se angustiado pela forma que a dispensou mais cedo. "Ela era minha melhor chance! Sendo a representante e tão influente na escola, ela provavelmente tem acesso aos arquivos de cada estudante. Se eu fosse ela, da maneira rude que agi, eu não voltaria." Esse era um assunto que não poderia adiar. Esperar até o próximo dia de aula, após ter certeza de que o estranho o viu claramente e conhecia seu rosto, significava o risco de estar sendo perseguido por alguém que, diferente de todos incluindo a si mesmo, nunca descansa, muito menos à noite. Agora mesmo ele poderia estar procurando-o, sabendo que, da festa, partiu direto para o hospital mais próximo.
Seu quarto no segundo andar significava um risco a menos por onde o estranho poderia invadir, mas também uma rota de fuga a menos. Caso ele surja na porta, sua única escolha seria arriscar quebrar as pernas saltando pela janela. E foi o que quase fez quando Clare abriu a porta.
Ela imediatamente o viu como um animal assustado, com pelos eriçados, braços contra a cama e joelhos flexionados prontos para saltar da cama. Sua tentativa frustrada de deitar-se e fingir que nada aconteceu apenas fez com que Clare andasse ao redor da cama e sentasse sem dizer nada. "Que vergonha!" Pensou, encarando os punhos e a máscara ao lado com olhos abertos de susto. "Primeiro faço parecer que ando sempre carregando uma máscara de gás, depois quase salto da cama. Ela deve achar que sou maluco, neurótico com certeza."
O silêncio se manteve até que Clare, vestida casualmente com calças e camisa brancas, tirasse um livro da bolsa. - Se precisar de qualquer coisa é só pedir. Você precisa de repouso depois do que passou.
Não demorou para reconhecer que aquela seria uma longa noite. A falta de uma mancha, a necessidade de agir rápido, o susto que acaba de levar, tudo o distrai do sono. São 2 da manhã, e faltam 22 horas para possuir dois desejos. Parando para pensar, nunca teve a oportunidade de aproveitar o fato de ter duas manchas. Apesar de esta vantagem ter salvado sua vida naquela noite, reconhecia precisar de mais se as coisas continuassem a piorar.
"Quanto maior for a felicidade gerada pelos desejos, mais desejos poderei armazenar. Então, quando eu desejei que o estranho dormisse, isso deve ter deixado ele tão feliz a ponto de permitir que eu ganhasse uma mancha. No entanto, parece que nem meus desejos são capazes de fazer aquele garoto dormir, não o bastante. Eu não posso mais desperdiçar meu desejos assim. Eu deveria procurar por pessoas que desejam algo que não podem ter, realizar seu desejo, gerar felicidade e finalmente ganhar uma nova mancha. Quanto mais manchas eu tiver, maiores serão minhas chances de sobreviver de agora em diante, assim como aconteceu esta noite. Eu apenas tenho um desejo agora, preciso esperar que um dia passe e então procurar alguém que deseje por algo."
Tantas coisas passavam por sua mente, tudo estressante e preocupante. Mal conseguia cogitar a possibilidade de dormir naquela noite. Estava cansado, sem sono e com muito medo. "Quem é aquele estranho? Por que ele não pode agir como uma pessoa normal e dormir? Eu já usei dois desejos para aquele desgraçado dormir, mas nada parece adiantar. Do que ele é feito afinal de contas? Todos precisam dormir. Se as coisas continuarem assim, nunca poderei descansar em paz. Tudo que quero é que ele saia da minha vida de uma vez por todas. Não ligo se ele não consegue dormir, apenas vagueie por aí com insônia longe de mim!"
- Estou decepcionado com você Kay. – Disse uma voz muito familiar.
Kay quase alertou Clare de seu susto, por sorte não abrindo a boca. Se assustou ao ver que havia mais alguém naquele quarto além de Clare, e ele estava sentado em um banco bem à frente de sua cama. Era o responsável pelo seu dom, o Deus da Improbabilidade, vestido de terno e cartola como da última vez no ônibus. Não restavam dúvidas que ele surgiu ali do absoluto nada, e como da última vez, se comunicavam através de telepatia.
- Senhor Improvável, nos encontramos de novo. Parece que meus desejos não são capazes de ajudar a todos. Não é culpa minha se aquele sujeito não pode dormir.
- Está errado, você é que pensa feito um idiota que não vê além do que sabe ou acha saber. - Parecia estar caçoando-o quando brotou um longo sorriso. - Dei-lhe um dom, e eu sabia muito antes de você que acabaria interpretando este presente como uma maldição. Afinal, todos nascem infelizes. A felicidade se adquire com o decorrer da vida.
- Você é que está errado! Aquele maluco seria feliz se não tivesse nascido com problemas para dormir. Como ele pode ser feliz se precisa lutar para adquirir uma habilidade que todos possuem?
- Não confunda prazer com felicidade. Pensando assim, qualquer um poderia ser feliz comendo após um jejum de três dias. A restrição de uma necessidade do corpo pode e será interpretada com uma explosão de prazer quando saciar-se de repente, mas isso não significa que a pessoa tenha encontrado a felicidade. Não percebeu que a segunda mancha que adquiriu era estranha?
A princípio não entendeu o que o Deus quis dizer. Talvez a satisfação de finalmente conseguir a segunda mancha o impediu de notar. Após interpretar a chegada da mancha como uma recompensa por desejar o sono do estranho, não refletiu mais que isso.
- Se você decidir abandonar aquele pobre garoto apenas porque seus desejos não podem fazê-lo dormir, isso significa apenas que você não entende como ele se sente, como esta garota, por exemplo.
Ele virou o rosto para vê-la lendo, sem suspeitar do diálogo entre os dois. - O que tem ela?
Clare estava lendo o livro com olhos tristes. Postura correta, leitura vagarosa e um leve bocejo que soou como um suspiro. Após observá-la, Kay julgou que ela deveria estar com sono e preferia muito mais estar dormindo em sua casa do que estar em um hospital lhe fazendo companhia.
- Clare Prive, – Disse o Deus da Improbabilidade, distorcendo levemente o sorriso em seu rosto. – Rica e exemplar. Possui tudo que precisa para ser feliz e seu comportamento é ideal para uma vida bem sucedida. Como ela se sente e se ela é feliz, estas são perguntas nunca feitas para ela. Mas o que será que ela estará pensando neste exato momento?
Com um curto intervalo de cinco segundos, uma nova voz foi ouvida no quarto. Era a voz de Clare, e apesar de Kay ver que sua boca não se move, era exatamente o que passava em sua mente enquanto fingia ler.
- Eu sou feliz, tenho pais maravilhosos, uma mansão caríssima, motorista particular, ótimos amigos, um namorado lindo, notas altas nas provas, minha vida é perfeita. No entanto, me sinto sozinha às vezes, uma solidão que não pode ser compartilhada por ninguém que conheço. Eu gostaria de poder dividir meus pensamentos com alguém que pensa como eu e que tenha uma vida semelhante a que levo. Mas quem é igual a mim? Nem todos podem nascer em uma família tão rica quanto a minha, ou ter pais unidos que me amam, ou tantas coisas que possuo desde que nasci, coisas que nunca tive que fazer esforço para adquirir. Eu simplesmente nasci com tudo e não consigo deixar de notar tantas coisas que faltam para as pessoas que conheço fora de casa. Sinto-me como uma estranha, uma espécie de ser humano diferente do resto. Todos me veem diferente, com inveja nos olhos, tudo por causa do acidente de nascer quem eu sou. Poderia não ser assim, eu poderia ter nascido numa família pobre com pais separados. Eu tenho tudo incluindo uma personalidade adequada para a sociedade em que vivo. Sou estudiosa, carismática, engraçada, até mesmo bonita. Céus... Não me falta nada, e mesmo assim sinto como se não tivesse tudo. Quando vejo alguém que não faz parte da minha família, meus olhos chegam a brilhar. São tão diferentes, eles precisam se esforçar para conseguir o que querem. E quando finalmente conseguem após tentar tanto, se sentem como eu jamais seria capaz de me sentir ou imaginar. Eu gostaria de sentir isso, essa sensação, o que é conquistar algo, mas não posso, porque eu tenho tudo. Eu sou feliz, mas me sinto solitária. Isso é tão injusto, estar sozinha por ser feliz é uma maldição.
Após ouvir tais pensamentos, Kay sentiu-se impressionado, não pelo fato de estar lendo os pensamentos de outra pessoa pela primeira vez, mas por saber que mesmo quem tem tudo não é tão feliz quanto pensava. "Realmente, um dom é sempre acompanhado de uma maldição. E cá estou eu, desistindo de alguém que só quer dormir. Esta é a primeira vez que eu entendo como alguém se sente..." Pensando melhor, balançou a cabeça e corrigiu-se. "Não, estou errado por pensar assim. Para entendê-la eu precisaria ter tudo que ela teve, viver a mesma vida que ela viveu. Eu jamais a entenderei, mas eu simpatizo por ela. Eu gostaria de agradecê-la por abrir meus olhos. Agora eu sei que preciso ajudar aquele garoto, pois essa é a única maneira de agradecer pela segunda mancha que adquiri. Por isso eu vou usar este desejo que me resta hoje para entender como ele se sente. Clare abriu meus olhos, e não vou fechá-los até ajudar aquele estranho.
O Deus não estava mais presente. Sua presença desapareceu junto com os pensamentos de Clare que foram silenciados. A mancha que restava encolheu-se após fazer o pedido. Seu desejo foi para jamais dormir até que ajudasse o garoto com a cicatriz na testa a dormir.