Sofrimento Vicioso
O som do piano ressoou por todo o quarto. Denis viu-se sendo engolido por aquela melodia cortante que dilacerava seu frágil coração vazio. A melodia expressava tamanha tristeza que era impossível parar de ouvi-la. Era como o canto das sereias, que quanto mais ouvistes, tanto mais próximo das profundezas do mar nos encaminhamos. Um profundo sofrimento o engolia, bebendo sua alma como leite morno num dia frio. Apertou os olhos, contraiu as pálpebras fortemente e ficou observando a escuridão interior. Havia momentos em que à medida que as notas saltavam para tons mais agudos, Denis sentia uma fisgada em seu coração. A doçura daquela melodia cortante como uma lâmina, viciante como uma droga, destruidora como a humanidade, lhe dava um sentido para a vida, por mais que nada ganhaste com aquilo, ele se sentia seguro em meio à tristeza que consumia aos poucos a chama de sua vida.
Denis deitou em sua cama, confortavelmente mortal, pois o mundo lhe parecia tão agressivo que até mesmo os objetos inanimados lhe pareciam hostis. A única coisa que lhe sobrara era esquecer-se de tudo e sagrar sua existência inteiramente àquela sinfonia simbólica e penetrante como agulhas. O sono veio caindo como um véu sobre Denis, entorpecendo seus sentidos, lançando-o ao mundo imaginário dos sonhos, onde tu és seu próprio Deus…
A visão turva deu lugar há uma sensação nostálgica, que logo foi tomando forma detalhada. Uma sala entornada por móveis elegantes, com lustres que reluziam uma luz dourada, banhando as cortinas que dançavam em ritmos uniformes. No meio da sala havia um piano branco com detalhes em ouro. Um pequeno garoto, de rosto lívido, olhar profundamente penetrante e fosco, aproximou-se do piano e sentou-se. Tocou uma nota, duas, três. Logo Denis foi percebendo que os arranjos das notas formavam harmoniosamente a melodia que sempre o prendeu àquele estado de solitude profunda. Denis aproximou-se do pequeno garoto e repousou a mão em seu frágil ombro. O garoto continuou tocando. Denis deu um passo à direita do garoto e seus olhos estremeceram. Lágrimas agora jorravam dos olhos de Denis, pois, ao olhar no fundo dos olhos do pequeno pianista, ele soubera que este era ele mesmo quando criança. O sofrimento e a dor estavam tomando até mesmo os sonhos e lembranças do menino feliz que ele foi um dia.Tentou salvar o garoto daquela tristeza infinita, mas nada adiantava, pois a melodia tornou-se intensamente melancólica, evocando espectros que emanavam de cada nota tocada. Cores resplandecentes circundavam o pequeno pianista. Faces chorosas, repletas de angustia e dor sobrevoavam a sala, formando um arco-íris dolente. Assim como Denis, elas não queriam parar a melodia, pois esta dava existência a elas, mesmo que dolorosa, elas tinha um propósito, e era exatamente a mesma coisa que Denis pensava.
O garoto levantou-se aquiescente e estendeu-lhe a mão. O piano continuou trabalhando sua melodia viciante e venenosa. Denis tocou a mão do garoto, e este o guiou até a janela e apontou para um jardim, que ia tomando forma à medida que Denis tomava consciência de sua existência. Ele se viu brincando num jardim repleto de rosas púrpuras, que emanavam fluídos cheirosos de diversas cores. Percebeu o sorriso que estava ostentando ao olhar a si mesmo brincando feliz, correndo pelo jardim florido.
- Ainda há esperança, Denis – o garoto disse. – Mesmo que não pareça, o pequeno Denis do jardim ainda existe em ti, ele espera até que o aceite novamente. Não deixe que sua tristeza acabe com o pouco de vida que ainda existe em ti. Olhe para mim e veja, eu fui lembranças vívidas do seu passado, hoje sou apenas uma miragem em preto e branco. Salve-se, e todos nós estaremos a salvos…
O piano aumentara sua melodia infinitamente, parecia estar ciente de que Denis cogitara a ideia de abandonar a tristeza para sempre. As notas começaram a soar como vozes em sua cabeça, argumentando que ele estava seguro junto dela, pois nada mais poderia machucá-lo novamente. Que junto dela ele estaria seguro.
- Acorde Denis. Um mundo lindo espera por você. Não precisa sofrer mais.
Agora o piano tomou uma forma grotesca e junto dele toda a sala misturou-se num aglomerado de formas abstratas horrendas. A melodia queimava tudo como o fogo que acinzenta aquilo em que tocas com seus dedos finos e ardentes. As cortinas formavam expressões grotescas, cheias de ódio. Uma delas alcançou o braço do pequeno pianista e o arrastou para o meio da sala. O piano foi abrindo sua enorme boca lentamente, as teclas formavam dentes afiados e longos. Segurou o garoto com um dos braços de apoio e tentou arrastá-lo para dentro daquele mundo de sofrimento e horror. O garoto não resistiu, apenas olhou para Denis e disse:
- Agora tenho ciência que sabes o que deves ser feito. Acredito que depois de ter visto a voracidade da tristeza em que se apoiou sua vida inteira, terá sabedoria para ver que ela nunca fora sua amiga. Você não passou de um simples hospedeiro, enquanto ela se alimentava da sua força vital e crescia infinitamente.
Nem mesmo teve tempo de terminar a frase e foi arrastado para dentro da boca do piano maléfico.
A melodia foi acalmando e o piano aproximou-se de Denis gentilmente, tentando persuadi-lo com sua falsa bondade.
- Denis, não há como livrar-se daquilo que tu és. Sem mim você estará sozinho, inseguro e impotente contra tudo. Não percebe que somos um só? — disse o piano suavemente.
Denis olhou ao redor, tudo voltava ao seu estado natural. Silencioso e solitário. O piano voltava a tocar sua doce e triste melodia. Por instantes, Denis quase se entregara à tristeza novamente.
- Diga-me, qual a sua verdadeira natureza? Você é fruto de quê?
O piano fizera apenas alguns estalidos, mas nada disse. Algumas partes da sala começaram a esvaecer no ar, levando aqueles fragmentos de sonhos para o baú das lembranças esquecidas.
- Responda – Denis aumentou seu tom, havia sinal de autoridade em sua voz.
O piano nada respondera, repousava em silencio. Já havia parado a melodia.
- Estive errado esses anos todos. Nunca houve motivos para sofrer, né?! Não existe causa para o sofrer, a única causa existente esteve sempre dentro de mim e o julgamento que fiz dos desafios da vida. Fui usado pelo meu medo de ser feliz, achando que nada mais poderia me desanimar, já que estava mergulhado no sofrimento.
A sala irrompeu num forte clarão que fez esfarelar todo aquele ambiente envolto pela tristeza. Todo cenário quebrou-se para revelar um pequeno garoto que ostentava o sorriso mais belo que poderia ostentar. Uma estrada de areia fina e branca entornada por enormes eucaliptos foi se formando à medida que os dois se aproximavam um do outro. Um lugar misterioso e belo, novo aos olhos de Denis. Um mundo todo a ser explorado.
O pequeno garoto parou à frente de Denis e desferiu um abraço aconchegante e caloroso, diferente de tudo aquilo que ele sentira no mundo tristonho que sempre vivera. Denis o acalentou fortemente, derramando torrente de lágrimas que brilhavam como cristais, que ao acharem o chão, as lágrimas explodiram numa enorme chuva de pétalas de rosas. Um vento forte soprou para longe as pétalas que abriram um caminho desenhado em ouro incandescente. Os dois deram as mãos e caminharam rumo a uma nova vida.
- É hora de partir e viver sua vida, Denis – disse o pequeno garoto.- Estarei sempre com você.
- Diga-me, quem realmente é você? – perguntou Denis.
- Ainda não percebeu?! Sou conhecido por um nome que jamais deverá se esquecer… Felicidade.
O garoto passou-lhe a mão pela face e disse:
- Hora de acordar…