Diário dos Desejos - Capítulo 3

CAPÍTULO 3

Duas semanas se passaram. Estas foram as piores semanas na vida de Kay. Cada minuto fora de casa, cada esquina que passava, sempre que um estranho andava ao seu lado, o medo de um acidente improvável o assombrava. Era como se a morte o esperasse cometer um passo em falso para ceifa-lo. Até mesmo em casa o medo não cessava.

- Mesmo estando dormindo em meu quarto, um meteoro poderia cair em minha cabeça. Isto não é um dom, é uma maldição. Como aquele Deus espera que eu viva o resto da minha vida assim? Eu tenho o dom de desejar qualquer coisa, mas sinto como se fosse a pessoa mais infeliz do mundo. Preciso de ajuda, mas quem pode me ajudar?!

Desde então, a escola parecia ser o local mais seguro do mundo. Apesar de a burocracia empestar cada corredor e sala, saber que ninguém poderia entrar ou sair sem autorização fazia deste o local mais improvável de surgir um assassino. Aquele virou seu novo habitat natural onde passava tardes lendo ao invés de assistir televisão em casa. Essa mudança foi bem vista pelos pais, mas não era como se Kay tivesse escolha. Sua vontade de descabelar-se enquanto estudava biologia era imensa. Quando a bibliotecária saiu para ir ao banheiro ele aproveitou para falar sozinho.

- Para mim já chega, não quero mais este poder. Está me ouvindo? Senhor Improvável?!

Não houve resposta. Já havia tentado se comunicar com o Deus outras vezes, mas aparentemente ele somente surge quando bem lhe convém. Kay até já tentou forçar espirros usando sua alergia para atraí-lo, porém sem sucesso. Sua vida agora se resumia a pequenos prazeres que antes seriam desprazeres, como a segurança da escola. Pensou em desejar uma arma, mas a ideia parecia atrair mais problemas do que distanciá-los. Sem saber como se proteger nem onde se refugiar, quis ficar dentro da escola e não sair até descobrir uma maneira de estar seguro. Ás 23:00 horas todas as atividades da escola se encerraram. A bibliotecária estava prestes a sair quando reparou que alguém ainda estava lá com olhos vidrados em um livro. Ela se aproximou para avisa-lo:

- Estamos fechando.

- Me desculpe, posso ficar um pouco mais? – pediu Kay.

- Nós nem estamos próximos do período de provas. Por que está vindo tão frequentemente à biblioteca?

- De repente este lugar parece minha segunda casa.

- Mesmo assim lamento informar que se quiser ler aqui vai ter que fazer isso amanhã. Hora de fechar.

- Não! – disse Kay prestes a implorar – Por favor, eu não quero sair agora. Não pode me deixar dormir aqui? Juro que deixo tudo arrumado.

- Regras são regras.

- E se eu realizasse um desejo seu? Aqui e agora, só pedir e terá o que quiser. Qualquer coisa!

- Pare de besteiras, saia agora antes que eu chame o segurança.

Era inútil discutir. Durante sua ida ao banheiro, Kay pensou em coisas terríveis que poderiam acontecer com ele se saísse agora.

- Se já é mais perigoso do que o normal durante o dia imagine à noite! Sair agora seria uma sentença de morte, preciso ficar aqui a todo custo. Velha desgraçada! Uma pessoa tem a felicidade lhe batendo a porta e ela rejeita, que mal agradecida - Pensou lembrando-se do rosto enrugado da bibliotecária – São 23:06. Mais 53 minutos e poderei fazer um pedido sem problemas, e eu sei muito bem o que quero.

Antes de sair do banheiro, ele esperou trinta minutos. Não queria se arriscar de encontrar com alguém no seu caminho de volta para a biblioteca. Os corredores estavam completamente desertos. Se houvesse alguém dentro da escola seria um segurança, e este provavelmente estaria mantendo guarda na recepção.

- Perfeito – pensou rindo – Agora tudo que preciso fazer é andar até a porta da biblioteca, desejar a chave, e terei um lugar para dormir em segurança esta noite.

Já em frente à porta, Kay parou para conferir o horário em seu relógio de pulso. São 23:39. Poderia desejar a chave imediatamente, mas a ideia de fazer um pedido sem estar o mais próximo possível de meia noite lhe era extremamente desconfortável. Desde a experiência que teve no ônibus com o Deus da Improbabilidade, fez um juramento para si de nunca usar um pedido distante da meia noite a menos que seja uma emergência. Qualquer coisa poderia acontecer a qualquer hora e lugar, então queria estar sempre preparado. Decidiu esperar do lado de fora. Sentou-se com as costas encostadas na porta e ficou contemplando os ponteiros do relógio. Assim passou-se minuto após minuto, e cada minuto deixava-o mais sonolento. Tinha medo de cair no sono, mas o medo de perder um desejo o mantinha acordado. 23:55, faltava pouco.

- Acho que está na hora – disse aliviado.

Levantou-se e deu uns tapinhas nas nádegas para tirar a poeira do chão. No instante que se virou para a porta imaginou ter visto alguém. O escuro lhe pregava peças o tempo inteiro. Desde que conheceu o Deus da Improbabilidade, Kay ficou neurótico, mais do que o normal. Preocupava-se com coisas ridículas e quase impossíveis. Mesmo que tivesse realmente visto alguém só poderia ter sido o segurança, pensou.

- Nem tenho certeza se era alguém. Mas... Espera... - pensou enquanto o medo crescia em seu peito aos poucos - E se realmente tinha alguém lá? Estava no fundo do corredor, próximo às escadas. Eu não ouço nada, nenhum passo. Entretanto, ele ou ela poderia estar andando sorrateiramente neste instante em minha direção. Posso me virar... Não, péssima ideia! Se realmente for alguém e não for o segurança então posso estar correndo perigo. Se este estranho souber que eu sei de sua presença ele começará a correr, não terei tempo de abrir a porta e me trancar lá dentro. Faltam 4 minutos para meia noite... Essa é uma emergência.

Sem hesitar, Kay pensou em seu desejo e pôde sentir a textura de um pequeno objeto metálico em sua mão direita. Seus olhos apavorados focaram na fechadura enquanto suas mãos trêmulas posicionavam a chave cuidadosamente para que entrasse na primeira tentativa. Pôde ouvir o som da porta destravando e, em uma série de movimentos rápidos e precisos, abriu a porta, removeu a chave, entrou sem se virar, e trancou imediatamente após fechar a porta.

Seu coração saltava para compensar os 10 segundos que ficou congelado. Afastou-se da porta e guardou a chave no bolso. Seu maior medo agora era que a maçaneta se movesse, confirmando a presença de um completo estranho que se aproximava dele em um local que, supostamente, ninguém deveria estar presente. Não importava quem fosse, ninguém tinha autorização para circular na escola neste horário. Ele olhou seu relógio, faltavam 3 minutos para seu próximo desejo.

Neste momento de tensão, tentou se lembrar o que tinha visto exatamente. Estava longe e escuro, pôde ver apenas uma silhueta quando se virava despreocupado para a porta.

- Mas como era a silhueta? Não parecia de forma alguma com um homem. Era alguém mais baixo, não poderia ser o segurança. Talvez eu tenha sido capaz de ver seus olhos um instante, mas só consigo imaginar alguém me espionando com más intenções.

A porta tremeu, não mais do que a reação de Kay. Algo havia batido nela com força, definitivamente havia alguém lá. Se fosse o segurança provavelmente ele gritaria perguntando quem era, mas isso não aconteceu. Um completo estranho, num lugar que ninguém deveria estar, perseguindo-o até a biblioteca. A maçaneta desceu. Seja lá quem for, queria entrar. Faltam 2 minutos.

- Alguém está atrás de mim! – gritava Kay em sua mente. Todos os seus músculos estavam enrijecidos de puro medo, como um mecanismo natural para correr de qualquer perigo. – Tem alguém querendo me pegar! É um assassino, só pode ser, e ele vai me matar! Tenho que ganhar tempo... Talvez se eu bloquear a porta com uma mesa eu posso...

Sua mente embranqueceu com o som que a fechadura fez. Uma chave havia sido inserida produzindo um som característico. Em seguida, a porta foi destrancada e ela se abriu lentamente. O sujeito do outro lado não poderia ser identificado por causa da escuridão. Somente sua silhueta era vista por causa da luz da lua. Sua cabeça se curvou e seus olhos vasculharam o recinto. Eram olhos gigantescos, castanhos e bem abertos. Cada um de seus movimentos eram acompanhados por Kay que se escondia atrás de uma prateleira de livros perto do balcão da bibliotecária. A testa do invasor era a única parte de seu rosto além dos olhos que podia ser observada. Estava tingida de vermelho, e sangue escorria entre os olhos. O estranho não deu sinais de descobri-lo pela pequena e imperceptível brecha entre livros. No entanto, isso não o impediu de se desesperar ainda mais quando o estranho entrou, fechou a porta e o som de fechadura sendo trancada ecoasse como um estalido.

A escuridão era absoluta, nada poderia ser enxergado. Para piorar, o lugar não possuía janelas. Estava completamente paralisado de medo, incapaz de sequer tremer. Caso se esbarrasse em algo, fizesse barulho ou fosse visto seria seu fim. Não saber onde o estranho estava era muito mais assustador. Para sua sorte, uma luz se acendeu onde o estranho se localizava. Ele usava um celular como fonte de luz. Assim, pôde vê-lo se mover pela biblioteca. O estranho deveria estar procurando-o, pensou Kay, mas seu trajeto não fazia sentido. Ele dirigiu-se para uma mesa no canto da biblioteca onde se sentou em uma cadeira. Com o estranho de lado ainda era possível ver perfeitamente seu olho esquerdo das estantes, tão aberto e imóvel encarando a escuridão à sua frente. A aparência de seus olhos era desumana, completamente rachados e sem nunca piscarem desde que entrou na biblioteca. A luz de seu celular se apagou. A única coisa observável em toda biblioteca naquele escuro era o olho esquerdo do estranho. Falta 1 minuto.

Kay contava os segundos. O último minuto poderia fazer a diferença entre vida e morte. O olho esquerdo que era seu único ponto de referencia se movia em um padrão de movimento insano. Um instante ele ia à diagonal, cima e baixo, de repente ele treme incessantemente, sempre em movimentos lentos e sem nunca piscar. Não poderia ser uma pessoa normal, pensava tenso.

- Este cara poderia ser um monstro vestindo pele de humano. - pensou Kay - Aqueles olhos não são normais. Quanto mais eu os fito, mais desamparado e perturbado fico.

Quando menos esperava, ouviu sons vindo de onde o estranho estava. Não era possível ver sua boca se mover, mas ele falava com voz melancólica:

- Eu não consigo dormir. Faz mais do que quatro dias, não aguento mais. Tudo que eu quero é dormir, preciso dormir. Não há mais nada que eu queira neste mundo. Por favor, me faça lembrar o que é ter sono. Estou tão cansado.

Suas palavras melancólicas impressionaram Kay. Não sabia mais se sentia medo ou pena, mas ainda sentia-se muito desconfiado enquanto refletia sobre aquelas palavras.

- Mais do que quatro dias sem dormir, e sem sono? - pensou sem nunca perder aquele olho de vista - Ele deveria estar morto de exaustão. O que ele está fazendo aqui a final de contas? Então não veio me matar?

Então abaixou lentamente a cabeça e observou seu indicador direito. A mancha branca estava lá, pronta para ser usada.

- Seria seguro sair com aquele ser vigilante tão próximo? Mesmo que ele fizesse algo contra mim, nas condições que se encontra até mesmo uma criança de 8 anos poderia repeli-lo sem problemas. Mas não há mais para onde ir, minha única opção era passar a noite na biblioteca. Terei problemas sérios se for pego pelo segurança. Cedo ou tarde vou ter de dormir, mas ele poderia facilmente passar a noite em claro. Minha única opção é usar este desejo para dar um jeito nele. Eu não queria usar este desejo até esperar o máximo possível, mas acho que esta é outra emergência.

Kay observou-o uma última vez antes de fazer o pedido enquanto seus olhos rachados encaravam a parede. Pela primeira vez eles se fecharam por vários segundos. Abriram-se novamente como se levassem um susto, mas eles se afiavam vagarosamente até piscar mais uma vez. A cena se repetiu diversas vezes, até que se pôde ouvir o som de braços se esparramando sobre a mesa, seguido de um gemido aconchegante e respirações leves e altas. O estranho finalmente conseguiu dormir.

Na manhã seguinte, Kay acordou com um susto. Seu celular o acordou tremendo em seu bolso com o alarme silencioso marcado para despertar vinte minutos antes de a biblioteca abrir. Não apenas o medo de ser pego pela bibliotecária, mas tinha o problema do estranho com quem dividiu a biblioteca noite passada. Kay se levantou entre as estantes de livros e observou cautelosamente a região das mesas. O estranho não estava mais lá, restava apenas uma mancha de sangue onde ele dormira. O local estava deserto.

- Seja lá o que aconteceu com ele, preciso sair urgentemente para me esconder até o início da primeira aula.

Lwades
Enviado por Lwades em 04/02/2013
Código do texto: T4122066
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