Diário dos Desejos - Capítulo 2

CAPÍTULO 2

Dez minutos mais tarde estava de volta para a segurança do condomínio de prédios onde morava. Quando levou sua bicicleta para o estacionamento viu que o carro de sua mãe não estava lá, o que o deixou feliz por adiar a bronca inevitável que levaria dos pais. ao abrir a porta disse – Cheguei! – para ser recebido pelo conforto da solidão. A única coisa que queria no momento era ficar sozinho para refletir sobre os últimos eventos.

Quase morrera esta manhã, por pouco, por uma improbabilidade absurda tramada pelo Deus das improbabilidades. Mas recebera um presente único, o dom da felicidade. Não sabia o que significava ou como poderia usar este dom. Mas mais importante do que isso, um pensamento não saía de sua cabeça.

- Por que ele se interessou por mim? Eu sou especial? Provavelmente sim. Não conheço ninguém como eu. Mas ninguém é igual, logo isso não me ajuda em nada. Não sei como chegar a qualquer conclusão e não há ninguém que eu conheço com quem eu possa discutir sobre isso... - disse com uma pequena pausa para lembrar-se que não tinha um único amigo que poderia confiar aquele segredo - Nossa, eu preciso de amigos. Mas deixando isso de lado, e quanto a esse dom? Como eu uso isto?

Nada em seu corpo parecia diferente, sentia-se o mesmo de sempre. Se realmente possuísse o dom da felicidade sua utilidade provavelmente deveria ser para torná-lo feliz. Logo sua mente se infernizou com mais outro dilema.

- O que me deixa feliz? O que eu quero na vida? Qual é meu sonho? Normalmente um sonho se refere a uma profissão futura e distante, eu teria que me esforçar para alcançar o trabalho que quero. Quem sabe eu poderia alcançar esta profissão sem um esforço sequer, em um piscar de olhos? Mas não sei qual é a minha vocação ainda... Família! - pensou rápido - Eu poderia ser feliz com uma família. Uma esposa linda e filhos perfeitos. Mas me casar com alguém que nem conheço? Não há nenhuma garota que eu goste no momento. Se eu desejasse uma família será que eu seria presenteado com uma mulher criada do nada apenas para satisfazer meus desejos? Eu não quero uma família de bonecos ou robôs, quero conhecer alguém que eu realmente goste e ame. Neste caso só me resta dinheiro... Até que isso não parece uma ideia ruim... - Assim pensou, até chegar a triste conclusão de que o mais próximo que pôde chegar da felicidade foi dinheiro – De repente a vida não parece tão promissora, mesmo com o dom da felicidade, ou seja lá o que isto for.

Deprimido com os próprios pensamentos, deitou-se sobre o sofá da sala e ligou a televisão. A primeira imagem que viu foi uma propaganda de refrigerante, aquele que mais gostava.

- Nossa, eu adoraria beber um pouco disso agora.

Sua boca salivou apenas imaginando como seria tomar um gole daquela bebida açucarada. Poderia até acreditar estar segurando naquele exato momento uma garrafa de vidro gelada contendo aquele mesmo refrigerante que viu na televisão. Antes de a propaganda terminar ele conferiu por curiosidade sua mão descansando num dos braços do sofá, vendo que a garrafa imaginária estava materializada e segurada pela sua mão sem a menor pista de como ela chegou ali. Seus olhos esbugalharam ao encarar a garrafa, era real e gelada assim como imaginou poucos instantes atrás. Primeiro pensou em jogá-la para longe aterrorizado, mas depois de passar por uma experiência de quase morte e conhecer dois Deuses naquela mesma manhã, uma garrafa de refrigerante fantasma o assustou por apenas um mísero segundo. Kay desenroscou a tampa e sentiu o cheiro, confirmando se tratar daquele refrigerante que sempre pede na cantina da escola. Deu um gole hesitante, nada parecia fora do normal, era apenas um refrigerante comum que surgiu do vácuo entre os dedos de sua mão.

- Isso é estranho - pensou casualmente - Imagino se eu poderia fazer isso de novo.

Uma nova propaganda surgiu na tela mostrando uma boneca bebê para garotas que gostam de brincar de mãe e filha. O brinquedo jamais lhe despertaria interesse, mas precisava testar novamente.

- Nossa... – disse envergonhado, pensando que se arrependeria de um desejo ridículo como aquele – Eu adoraria uma boneca agora. – No entanto, nada aconteceu. Com a garrafa ainda em uma das mãos, Kay olhou fixamente para sua mão livre e disse – Nossa, eu adoraria mais um refrigerante agora. – Novamente, nada aconteceu.

Talvez os desejos só se realizem quando é algo que realmente quer, pensou. Não sabia como fez aquilo antes com o refrigerante, mas não pôde repetir com a boneca nem com o próprio refrigerante. Kay permaneceu sentado no sofá e passou o resto da tarde bebendo o refrigerante de origem misteriosa enquanto assistia televisão. Até seus pais voltarem, viu mais de vinte produtos enquanto desejava obtê-los, sem sucesso de repetir aquele truque de mágica.

Como já esperava e previra, seus pais descobriram sobre sua falta na escola, estavam decepcionados, e o jantar começou como um ritual onde todos se reúnem para que o sermão possa ter início.

- Por que faltou aula hoje Kaylin? – perguntou o pai durante o jantar em família.

- Eu esqueci de pôr a camisa da escola, fui barrado na entrada e não me deixaram entrar - respondeu sem levantar os olhos, sabendo o que viria em seguida e já com a próxima resposta pronta.

- Tem que ficar mais atento, não pode continuar faltando aulas deste jeito. O único prejudicado será você.

- Eu sei, vou levar uma muda de roupa na mochila para evitar que isso aconteça novamente.

- E o que fez com todo este tempo livre? – perguntou a mãe.

- Bom... Muitas coisas aconteceram. Nem sei por onde começar – disse Kay sem saber como explicar sem revelar a verdade. Pelo olhar dos pais e de seu irmão mais novo eles exigiam que continuasse. Infelizmente não havia pensado sobre a desculpa que daria para acobertar seu encontro com dois Deuses. – Nada de interessante, meditei sobre a vida para me entender melhor. Acho que aprendi mais sobre mim do que poderia aprender na escola.

- Que estranho – disse o pai – Normalmente crianças da sua idade são mais agitadas. Onde aprendeu a meditar?

- Em um mosteiro, durante uma viagem escolar. Lá me disseram que qualquer um pode meditar, basta esvaziar a mente. - disse, notando apenas depois de terminar a frase o deslize de combinar as palavras "esvaziar" e "mente" na presença do pai.

- Bem, ao invés de esvaziar a mente você deveria estar enriquecendo-a com conhecimento. Pegue um livro e trabalhe seu intelecto. Conhecer a si mesmo é bom, mas só quando se aproveita deste conhecimento para saber o que quer da vida. Se você souber o que é bom para você então não vai mais faltar aulas.

Sem discutir com a autoridade da casa, Kay apenas terminou sua refeição e foi para o quarto. Sem sono, se deitou e ficou olhando para o teto pensando no que seu pai disse. Eram oito da noite e as luzes estavam apagadas.

- Eu poderia fazer o que meu pai disse e pegar um livro, ler e dormir quando o sono vier. Ou posso ficar aqui olhando para o teto pensando na vida durante horas... – Optando pela segunda opção, começou – Conhecer a mim mesmo não vale a pena se este conhecimento não põe comida na mesa. É claro que sei disso, mas ainda assim odeio a ideia de seguir os passos do meu pai, ou melhor, seguir os passos de todos ao meu redor. Até hoje fiz isso e nunca me senti satisfeito com a vida, por isso acho que vou tentar me destacar de alguma maneira. Onde está esse dom idiota? Eu quero ser o único capaz de conseguir o que mais ninguém consegue. Por que eu não consigo aquela droga de boneca? Eu nunca quis tanto uma boneca na minha vida! Eu quero uma boneca! – pensava gritando em sua mente.

As horas se passaram sem que o sono viesse. Quase quatro horas se passaram e aqueles pensamentos gritantes não cessavam. Sua insatisfação com a vida era tão grande quando se imaginava crescendo e se tornando alguém como seu pai, queria se tornar qualquer coisa, desde que fosse o mais diferente do homem que o sustenta. No badalar da meia noite o espírito de Kay ainda borbulhava com ódio repetindo dentro de si:

- Eu quero aquela boneca!

Foi quando o ponto cego onde fixava os olhos no teto por bastante tempo sofreu uma alteração repentina e, quando menos esperava, um objeto não identificado do tamanho e formato de um bebê caiu sobre seu rosto soltando um gemido que soou como um chamado pela mãe. Por muito pouco não soltou um grito de susto, estava com o coração saltitante quase saindo pela boca. Em compensação seu desejo se concretizou, de alguma forma, e finalmente pôde dormir para pensar no dia seguinte como aquilo foi possível.

Quatro dias se passaram após o incidente da boneca. Era sábado, dia de folga tão esperado, infelizmente reservado para realizar um favor para sua mãe. Kay teria de pegar um ônibus e viajar por uma hora para o centro da cidade para comprar um vaso de flores que sua mãe viu na internet, para então pegar outro ônibus de uma hora de volta. Seu dia já estava praticamente arruinado, restava-lhe apenas o conforto de observar a paisagem urbana enquanto pensava na vida.

- Ainda bem que tenho bastante coisa em que pensar. Para começar, o dom da felicidade. Descobri nos últimos dias como isto funciona. Terça-feira não consegui desejar a boneca logo depois do refrigerante, e misteriosamente ela surge no meu quarto na virada da meia noite. Provavelmente só posso desejar uma coisa por dia. Quinta-feira de manhã eu fiz um teste durante a aula de artes. Eu tinha esquecido meu pincel, então desejei um pincel dentro do meu estojo e magicamente lá está ele. Sexta-feira eu esperei até 23:55 para desejar um despertador que nunca deixe de funcionar como o meu às vezes faz. Hoje é sábado, e se meus cálculos estiverem corretos eu ainda posso desejar algo hoje. Eu não sei o que vou pedir, mas não quero me apressar. Se for possível eu não quero pedir nada hoje, há um último teste que quero fazer. Talvez eu possa acumular desejos se eu não pedir nada por um dia, mas só vou poder saber com certeza amanhã.

Sem saber a razão, seu nariz começou a coçar. Espirrou, mas não havia nada por perto que pudesse provocar alergia.

– Será que estou pegando uma gripe? – perguntou para si mesmo. Em seguida ouviu uma voz familiar no assento vazio ao lado.

- É uma probabilidade.

Kay se virou para conferir, tinha certeza de que ninguém estava sentado ali até então. Mas em um piscar de olhos lá estava o Deus da Improbabilidade, vestido exatamente como na primeira vez que o viu, e ele estava felicíssimo aparentemente.

- É você?! – disse Kay no susto e levantando os braços por instinto de defesa – Quer me matar do coração?!

Calmo e sorridente, o Deus da Improbabilidade disse:

– Isso é improvável. Você é jovem demais, não é gordo, ninguém da sua família morreu do coração, dificilmente teria problemas cardíacos.

- Você me deu um susto.

- Desculpe, faz parte de minha natureza fazer entradas onde menos me esperam. Então, Kay, como vai a vida após o dom que lhe dei? - disse aproximando-se com intimidade que Kay não era acostumado.

- Ah, o dom. – disse Kay pensativo e contraindo-se contra a janela – Ele é bem interessante. Andei testando ele para entender como funciona, mas ainda preciso de uns dias para ter certeza do que ele é capaz.

- Hum! - murmurou aprovando - Passos de bebê, gosto do seu jeito garoto! Segurança em primeiro lugar.

Kay ainda não entendia bem como interpretar seu relacionamento com aquele Deus. Ele parecia bem extrovertido e animado aos seus olhos, mas ter tanta intimidade com um ser tão grandioso não parecia adequado. Pensando nisso, decidiu ser um pouco mais formal.

- É uma honra ser elogiado pelo senhor, Deus da Improbabilidade.

- Hora, para que isso? Chame-me do que quiser, sem formalidades. Trate-me como um amigo. Afinal, eu te chamo de Kay, não de Kaylin Ujirame Madalo.

- Certo – disse sem jeito – Que tal senhor Improvável?

- É um bom começo. Deixando isso de lado, o que acha do meu presente.

- Bem... - disse pensativo - É difícil dizer. Para falar a verdade não sei por que se chama dom da felicidade. Tudo que posso fazer é desejar uma coisa por dia. Como isso me tornará feliz?

O senhor Improvável deu uma risadinha que soou muito desconfortável para os ouvidos de Kay.

– A felicidade é um assunto questionável. Varia de pessoa para pessoa, bicho para bicho. Pegue um lobo por exemplo. Sua vida se resume a caçar e cuidar de sua alcateia. Ele se satisfaz com a carne que caça e recebe afeto de seus familiares. Este lobo é feliz, pois não precisa de mais nada para deixá-lo confortável. Já as pessoas elas possuem um consciente, algo que lhes permite serem diferentes de todas as outras. Elas podem pensar diferente, agir diferente e desejar coisas diferentes. A diferença entre uma pessoa e um lobo é que o lobo não precisa ser diferente para ser feliz, a pessoa precisa. Basta o lobo ser igual a todos os outros que terá uma vida longa, feliz e confortável. Você teve a infelicidade de nascer como uma pessoa, onde todos são diferentes uns dos outros e não há ponto de referência de como você deve agir para ser feliz, apenas pistas. Ninguém pode te dizer o que fazer para ser feliz. Somente você pode descobrir isso.

- Mas eu ainda não sei o que me deixa feliz.

- Você é jovem, tem tempo, e o mais importante, um dom. Use-o para chegar ao que busca. Com tempo descobrirá o que quer.

- Certo. Muito obrigado senhor Improvável.

Com aquele assunto encerrado, o senhor Improvável sentiu-se generoso a ponto de explicar-lhe mais coisas.

- Posso esclarecer suas dúvidas sobre como usar o seu dom se quiser.

- Sério?! – disse Kay com um sorriso estampado na cara – Eu posso acumular desejos se eu passar um dia sem pedir nada?

- Sim, há um limite, porém.

- Que limite é esse? - disse pronto para guardar cada e qualquer informação possível sobre o dom.

- É por isso que se chama dom da felicidade. Quanto maior for a felicidade gerada ao seu redor, mais desejos poderá armazenar. O mesmo vale para o desejo em si. Quanto mais feliz você ou a pessoa para quem fizer o pedido for, maior e mais forte pode ser seu pedido.

- Interessante. Como eu posso saber quantos desejo eu tenho?

- Pelas suas unhas.

Kay enfileirou seus dedos contraídos e prestou atenção em cada uma das unhas. A única unha que apresentava uma anomalia era o indicador direito. Ela possuía uma mancha branca pequena e circular de aproximadamente um centímetro de diâmetro.

- Tem uma mancha branca.

- Sim – continuou o senhor Improvável – Quando fizer um desejo essa mancha encolherá e restará um minúsculo ponto. Você terá que esperar um dia para que a mancha cresça e possa ser usada novamente.

- Mas há algo de errado, - disse Kay desconfiado - há apenas uma unha com mancha aqui.

- Isso quer dizer que para um garoto de quinze anos você é bem infeliz! - Disse rindo alto da cara deprimida de Kay.

- Que injustiça! – disse sentindo pena de si mesmo - Eu só posso guardar um desejo por vez!

- É melhor do que nada. Ah! Antes que me esqueça, preciso alertá-lo sobre algo urgente!

Vendo que o senhor Improvável ficou mais sério do que o normal, ou seja, por acaso sua boca não se encontrava sorridente, Kay perguntou:

– Algo de errado?

- Sim. - Então ele passou a brincar com os dedos como alguém entediado dizendo - Sabe, eu estava lá, fazendo minhas responsabilidades, entende? De repente noto que você está se deslocando por grandes distâncias.

- Só estou indo comprar algo que minha mãe pediu.

- Mesmo assim, isso é uma alteração do seu cotidiano. Uma coisa que você deve entender a partir do momento que me conheceu é que a improbabilidade estará muito mais frequente em sua vida do que nunca antes. Ou seja, coisas que nunca aconteceram contigo terão muito mais chances de acontecer com você a partir de agora. Por exemplo, psicopatas e serial killers te perseguindo, balas perdidas te acertando, coisas assim, sabe?

Antes de conhecer o Deus da Improbabilidade, Kay já pensava assim. Qualquer dia poderia ser o dia em que um acidente infeliz ocorreria envolvendo a si mesmo e qualquer outro infortúnio. Um acidente de carro, um assassino, um desabamento, terremoto, tropeço, qualquer coisa. Mas ter essas chances aumentadas, por essa nunca esperou. Seu coração bateu mais rápido para cada novidade que ouvia do senhor Improvável.

- Quer dizer que... – disse, dando uma pausa para engolir seco – Um assassino poderia estar neste ônibus agora planejando me matar?

- No momento não. – Por um instante Kay pôde suspirar sossegado, até ouvir o restante – Mas tudo pode mudar em breve.

- Então devo retornar para a segurança da minha casa o mais rápido possível?

- Aconselho que sim.

Assim dito, o senhor Improvável provocou um espirro em Kay de maneira que ele não entenderia como ocorreu, sumindo enquanto seus olhos estavam fechados durante o espirro. Sem pensar duas vezes, saltou no ponto de ônibus mais próximo e esperou por um ônibus de volta para casa.

- Eu não me importo de usar um desejo para conseguir o estúpido vaso de minha mãe, eu só quero voltar para casa o mais rápido possível e evitar um acidente improvável.

Lwades
Enviado por Lwades em 04/02/2013
Código do texto: T4122028
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