Diário dos Desejos - Capítulo 1
CAPÍTULO 1
O herói da história começa mais um dia rotineiro em uma terça-feira tortuosa como muitas outras por ser tão distante do sábado. Ele sai de seu apartamento do quarto andar, cuja vista não é tão boa quanto dos andares acima, e a proximidade do térreo o torna alvo fácil de mosquitos. Ele destranca sua bicicleta enquanto coça as picadas da noite anterior de seus braços e pernas, agradecendo a Deus por sua bicicleta ainda possuir suas rodas após uma noite no escuro estacionamento subterrâneo. Quinze minutos para chegar à escola e vinte minutos faltando para a aula começar. O percurso, apesar de perigoso para ciclistas, nunca preocupou Kay. Para ele manter sua distância dos carros que passam a menos de três centímetros de sua esquerda é tão fácil quanto respirar. No entanto, por mais equilibrado e confiante que fosse, sempre tinha em mente que fazer sua parte em nome da própria segurança não bastava. Com apenas um deslize vindo de um motorista a sua vida poderia estar por um fio. O mesmo se aplicava com suas chances de ser assaltado, ou a possibilidade de um assassino o escolher como próximo alvo. São todas coisas preocupantes e complicadas de se prever ou evitar, também são coisas que acontecem todos os dias com poucos indivíduos. Por isso ele escolhe não se preocupar, e assim vive cada dia como se fosse o último, apesar de não fazer nada para que seu último dia tenha algum valor especial. Para ele é mais fácil lidar com problemas quando se aceita todas as possíveis consequências. Como por exemplo o que aconteceu nesta manhã rotineira ao chegar ao portão de sua escola.
- Por que não posso entrar?! – perguntou Kay ao porteiro que lia seu jornal contendo as últimas notícias dos times de futebol.
- Não pode entrar sem estar uniformizado.
A partir de então ele reflete enquanto o porteiro vira a página:
– Essa não, de novo não. - pensou - Acabei me esquecendo de trocar a camisa depois de acordar. Agora não posso entrar, pois essa camisa branca não possui uma estampa estúpida de uma escola particular. Ele me ignora lendo notícias estúpidas de esportes para satisfazer seu desprezo reprimido pelos filhos de pessoas mais ricas que ele. Seria inútil insistir contra alguém assim, melhor nem tentar reclamar. Não dá tempo de eu voltar para casa e pegar a camisa, então este dia de aula já era. A diretoria vai ligar para meus pais avisando que faltei aula. Hoje à noite, quando eles voltarem, vamos jantar enquanto eles me dão bronca por não ter ido à aula. Não posso voltar para casa agora, pois minha mãe só sai para trabalhar após as dez da manhã. São seis e meia da manhã agora, vou ter de perambular por três horas e meia.
E este é seu dia resumido numa rápida reflexão antes de se virar e marchar derrotado de volta para o bicicletário. Sua vida se resume com rápidas reflexões como esta desde que tomou consciência de seus atos, aproximadamente aos seis anos de idade, o que o tornou um ser melancólico cedo demais.
Sua mochila estava pesada com os cinco livros de matérias que teria aula naquele dia. O desconforto do peso nas costas o fez lembrar que poderia estar sentado e talvez até dormindo em uma sala de aula com ar-condicionado, mas agora sua melhor forma de passar o tempo era pedalar sem rumo por qualquer rua. Apenas andar de bicicleta não bastava para distraí-lo. Desde pequeno usava bicicleta para ir a qualquer lugar, por isso nem precisava se concentrar. Para se distrair, imaginava coisas, como por exemplo:
– Quais são as chances de eu ser envolvido num acidente agora? Se algo ocorresse provavelmente envolveria um carro. As chances de acontecer comigo são pequenas, pois envolvem tempo e local exatos. Além disso, normalmente são apenas quinze minutos de ida e quinze minutos de volta. Mas agora as chances, por menores que sejam, são maiores do que o normal. E se algo realmente acontecesse... Qual seria a reação dos meus pais? Eu poderia estar num quarto de hospital respirando através de aparelho enquanto um deles diz “Viu? Tudo por que faltou aula naquele dia”. Tenho nojo só de pensar.
Foram seus últimos pensamentos antes de cair num perigoso acidente envolvendo um espirro e alguma outra coisa que não pôde se lembrar. A vida de Kay chega ao seu fim, simples assim.
"Aqui há um fato interessante sobre espirros: Todas as funções corporais, incluindo o coração, param durante o ato do espirro. Este evento aleatório, que pode ser estimulado através de alergia, que neste caso foi uma corrente de ar que, infelizmente, fez uma travessia por um canteiro de flores, carregando uma pequena quantidade de pólen que acabou sendo inalado por um ciclista que, por acaso, é alérgico a pólen, exatamente quando ele mais precisava manter os olhos abertos, o que é impossível durante um espirro, levando-o ao seu fim iminente e ao que há após a morte."
- Venha criança, sua hora chegou.
Quando Kay voltou a si, essa foi a primeira coisa que ouviu. Uma voz profunda e assustadora, e ao levantar o rosto viu que aquela voz pertencia a uma caveira vestindo um roupão negro. Era um lugar escuro que lhe lembrava uma caverna, impossível de ver algo além de um raio de poucos metros. Sem tempo de reagir, sentiu a mão esquelética pousar sobre seu ombro, congelando qualquer movimento que tentasse fazer.
- Espera! Eu não morri... Eu morri? – perguntou Kay sentindo o calafrio mais longo de sua pós-vida onde o ser misterioso lhe tocava.
Mas a morte era o menor de seus problemas. Indiretamente já havia aceitado a morte independente de quando ela chegasse. Agora sua maior preocupação era a revelação diante de seus olhos, incluindo o fato de não fazer a menor ideia do que aconteceria em seguida.
– Espera, este é o momento mais assustador de minha vida! - disse desesperado e olhando para os lados freneticamente - Eu não faço a menor ideia do que vai acontecer agora! O que há após a vida? O que acontecerá comigo? Eu vou conhecer Deus? Tem inferno e céu? Se tiver, para qual dos dois eu vou? Espera... - Então fez uma pausa e reparou pela primeira vez com quem dividia suas palavras - A morte existe! Você é a encarnação daquilo que todo ser vivo teme! Você é o guia das almas penadas! Você... – E assim continuaria intrigado e fascinado observando aquele esqueleto encapuzado de dois metros e meio, até que o maxilar esquelético se abriu:
- Cale a boca fedelho! - disse impaciente e sem demonstrar expressão nenhuma com seu rosto esquelético - Não importa o que sabe ou o que quer saber. O que está feito está feito, e seu destino não será mudado. Agora você me acompanhará já que não tem para onde ir.
Naquele local sombrio e sem luz havia apenas Kay e a Morte, mas uma voz diferente ecoou como se estivessem definitivamente em uma caverna. Kay procurou com os olhos onde tudo não passava de sombras desconhecidas. De repente, como se surgisse do nada, um homem vestido de terno preto e gravata branca, chapéu e sapatos marrons, disse com voz alta enquanto apontava para a morte:
- Ele não morreu. - disse com vigor na voz acompanhado de um sorriso.
- Sim, ele morreu – reprimiu a morte com a mesma expressão esquelética de sempre.
- Permita-me provar o contrário – disse o estranho bem vestido. Desta vez seu indicador apontava para Kay, assustado e desorientado com tudo aquilo – Diga-me garoto, qual sua última memória?
- Minha última... – disse Kay suspirando quando lembrou de súbito – Eu espirrei enquanto andava de bicicleta e...
- Aí está! – disse o homem interrompendo-o – Não tens razão de estar aqui Morte, ele é responsabilidade minha.
- Veremos. – disse a Morte soltando o ombro de Kay.
Debaixo de suas mantas ele retirou um livro de capa negra e empoeirado. Folheando centenas de vezes finalmente parou em uma página onde começou a descer o dedo lentamente pelos nomes de pessoas condenadas, tudo enquanto amaldiçoava aquele momento tedioso:
– Nunca mexo nesta droga de livro. Como se fosse necessário verificar se uma pessoa morreu. Aqui está... Kaylin Ujirame Madalo, sexo masculino, tempo e causa de morte...
- Pare! – gritou o homem estendendo-lhe o braço quase desesperado – E você se diz um competente Deus da Morte? Se ele realmente não tiver morrido e você revelar essas informações, ele será obrigado a viver o resto da vida sabendo quando e como morrerá. Pergunte para ele a idade e veja se bate com o ano do seu caderno.
- Hum... – murmurou a Morte sem moral para não concordar – Façamos assim. Ei, você! - disse virando-se para Kay.
- Sim! – respondeu Kay prontamente e com muito medo de ouvir mais daquela voz – Tenho quinze anos!
- Droga. – Calmamente, a Morte fechou o livro com força, provocando uma pequena erupção de poeira. – Errei por tão pouco. Neste caso... – disse, virando-se e caminhando na direção oposta do estranho de terno e sumindo nas sombras – Eu voltarei em breve, não que você possa fazer algo em relação a isso.
Então ficaram apenas os dois lá, Kay aflito com as últimas palavras da Morte e o estranho que mantinha sua posição triunfante ao lado de Kay. Aos poucos os passos da Morte se distanciaram até não ser possível ouvi-los, o que aliviou Kay o suficiente para abrir a boca seca.
- O que ele quis dizer com “errei por tão pouco”? – perguntou para o estranho em busca de esperança por uma vida um pouco mais longa.
- Não dê ouvidos para ele. - respondeu despreocupado - Mesmo que você viva trezentos anos ainda vai ser pouco para a Morte. E encare os fatos, todos morrem um dia, a única coisa que muda é quando.
- Acho que tem razão.
Sem sequer conhecer aquele ser vestido como um nobre do século passado, teve a impressão de que simpatizaria pelo seu jeito de pensar rapidamente. Mas antes precisava esclarecer certas coisas.
- Por que a Morte não me levou por causa de um espirro?
- Eu meio que mexi uns pauzinhos para que as coisas acabassem assim. - disse, com um sorriso sempre estampado na cara - Você não morreu agora porque não chegou sua hora ainda. No entanto, você quase morreu por minha causa. Estou disposto a compensar por este infeliz incidente oferecendo-lhe o dom da felicidade.
- Dom da felicidade? Você pode tornar as pessoas felizes? - perguntou Kay curioso.
- Claro que sim! - disse sorridente como se fosse a pessoa presenteada - Na verdade é por minha causa que há pessoas felizes e infelizes, assim como é por causa da Morte que há pessoas vivas e mortas.
Novamente, Kay refletiu sobre o que havia ouvido, o que naquele caso demorou um pouco mais do que o normal.
- Espera! - pensou tenso - Tenho a impressão de que acabei de ouvir algo que vai mudar a forma que vejo o universo para sempre. O que é a morte? A morte é o fim da vida, mas a morte é manifestada por um ser desconhecido responsável pela morte de todos os seres vivos. Ele é o responsável pela morte, é um Deus da Morte. E se este cara clama ser responsável por algo na mesma proporção que o Deus da Morte é com a morte, isso quer dizer que... – parando de pensar sozinho expressou sua conclusão:
- Você é o Deus da Felicidade?
- Há, até parece! - disse rindo e sorrindo ainda mais com seus dentes branquíssimos e perfeitamente enfileirados - As pessoas não me conhecem muito. Elas preferem pensar mais em outras divindades como a Morte, os elementos e sentimentos como o amor. Mas sinta-se honrado por conhecer pessoalmente o Deus responsável pela felicidade. - Antes de terminar a sentença, fez uma reverência formal em homenagem a si mesmo - Eu sou o Deus da Improbabilidade.
- Improbabilidade? - disse Kay surpreso - Tipo números e tal?
- Exato. Se pensar bem faz sentido eu ser responsável pela felicidade e ao mesmo tempo me chamar de Improvável. Afinal, é bem improvável que alguém seja feliz se há uma escala de um para um milhão de pessoas que são felizes.
- Nossa! - exclamou espantado por reconhecer o presente que estava prestes a receber - E você vai me dar a felicidade sem querer nada em troca?
- Mas que tipo de Deus você acha que eu sou? - disse com um tom reprovador, sem nunca parar de sorrir - Você quase morreu por minha causa garoto! Aceite este presente como se fosse um direito seu. Cadê seu censo de egoísmo?
- Ah, me desculpe. Eu aceito este presente com todo prazer e perdoo-o por quase ter me matado.
- Mas que ótimo ouvir isto! Aceite mais este presente como prova de nossa amizade!
Dito e feito, o Deus da Improbabilidade pôs um braço atrás das costas e em um passe de mágica tirou um buquê de flores. Imediatamente ele estendeu o braço quase esfregando o buquê no rosto de Kay, que tentou repelir o buquê por instinto.
- Não! Espera... – disse Kay inutilmente tentando repelir a oferta. Era tarde demais para sua alergia e pôde sentir um espirro chegando.
Kay espirrou alto como sempre fazia. Quando abriu os olhos, após tê-los fechado incondicionalmente durante o espirro, acordou parado na rua sobre sua bicicleta e mochila nas costas. Tudo parecia normal como antes de espirrar e de repente estar de frente com a Morte.
- Hora essa? Foi apenas um sonho... – disse para si mesmo, poucos antes de ver um caminhão atravessar a oitenta quilômetros por hora à sua frente, quase levando a roda da frente de sua bicicleta.
O motorista havia atravessado no sinal vermelho e muitas buzinas se seguiram por causa de um delito tão perigoso. Ninguém havia se acidentado, mas se Kay estivesse um metro à sua frente sua morte teria sido iminente. Enquanto o tráfego de carros seguia normalmente após aquele susto, ele se encontrava numa mistura de paralisia e tremedeiras por todo corpo. Seu primeiro movimento foi levantar o pulso para ver as horas. Eram sete horas da manhã. Faltavam três horas para sua mãe deixar sua casa.
- Dane-se! Eu nunca mais ando de bicicleta sem rumo.