PÉTALAS FÚNEBRES

 
     Com semblantes pálidos, sem palavras ou sorrisos, surgiam de toda parte vultos nus, não fosse pela cobertura natural de si mesmos. No alvo residuante de seus rastros apagados se podiam sentir odores de asas que ruflaram em magníficas revoadas, trazendo consigo os restos de cinzas molhadas por tantas chuvas, caídas naqueles espaços infinitos onde caminharam como pedras de mármore, permitindo-se toques, cores e aromas tantos que, nas cerimônias escabrosas do amor e nos vazios sem protestos, encheram-se de frias dores. 

     Os mortos sempre renasciam ressurretos naquele mundo que cambaleava por entre uma névoa invisível. Ou mais provavelmente, embriagado e translucinado, indignamente me cambaleava eu, atingido por feixes de luz e por suaves melodias, estranhíssimos, vindos de todas as direções, que me atravessavam para, após, se desfazerem ligeiros em breves sonhos mortos. Do indefinível de mim, a visão entorpecida não mais distinguia, na réstia serena, aquelas figuras que quanto mais se aproximavam, mais se iam decompondo em cacos de tantos encantos que nunca se apaziguaram, deixando confundida a incompreendida lesma humana.

     Inconsciências e escárnios dos cadáveres que já não conseguiam emitir sons quaisquer que pudessem ainda inspirar amor às imagens que outrora criaram traziam assombro aos andantes do reino de pálida luz, que assim teimavam em se embebedarem de vômitos e arrotos passados, dissipados por entre os anseios tresloucados da véspera.

     Naquele pedaço de tempo perdido não havia constelações senão os projetados nas mentes doentes que observavam toda a cena e se glorificavam em extremos de falsos deuses projetados de idos que se fizeram segundo seus próprios tempos, violando e vilipendiando todo entendimento razoável e possível. Havia um desordenamento entre os balançares dos galhos murchos das estranhas árvores e os pomares com suas flores indecifráveis que, sob as copas, ousavam ofertar cores invisivelmente enegrecidas.

     Num leito próximo, e em infinitos leitos distantes, sob a terra árida se ajoelhavam  os insipientes, ainda que enganadamente caminhando em ritmos diversos,  envergados pelo peso de tantas lendas e dores. Todos eles com visão confundida, ofuscada pelos caminhos bizarros de estradas tantas de seus pares teimosos com sopros de vida, e de seus defuntos agora ressurgindo fortemente. 

     Alguns olhos encharcados sorriam de frustração no trem que seguia viagem por  avenidas, e ruas, e oceanos, e céus com destino, em viagem sem volta,  exatamente no mesmo ponto de onde agora renasciam os deuses caídos e amortalhados. Os corres-corres de brincadeiras onde se colecionavam suas imagens em magníficos álbuns estavam prestes se findarem em perda silenciosa e pálida. Mesmo que se enganassem ainda, ou se entristecessem ainda, ou ainda que se tentassem o alívio do maior desejo em se abrigarem em seus deuses já mortos em suas próprias configurações, distanciavam-se, cada vez mais, do soberano poder da palavra, que emitiam como contornos de belas obras de arte.
 

     Lembrou-me, por breve, quando olhei pela janela, sentado às fileiras da frente da serpente que nos conduzia, os olhos negros e límpidos naquele coxo corpo de mulher, que continha uma alma escandalizada. A bela face, os cabelos negros e o invólucro que convidava ao prazer momentâneo não eram suficientes para omitir a mente doentia que se negava cúmplice de seus demais quedados. Num caminho perdido de maldição, em que pensei achar um cálice com doce vinho aliviador da tormenta, senti um eclipse fatal no primeiro gole do veneno misterioso, tão docilmente ofertado.  Do levantar de olhos é que pude perceber, então, a mortandade divina sob o eclipse em todo o redor, e também em mim.

     Enquanto luzes falsas me eram plantadas no íntimo, violando minhas entranhas, convulsionei-me em dor de palavras cegas, contendo injúrias e calúnias, sem perceber como, antes mesmo de chegar ao fatal destino de onde, um dia, seria visto incapaz de me sonorizar ou de me dar algum tom qualquer, exatamente como os mortos que agora se apresentam apodrecidos. E da convulsão, percebi que nem um, nem outro, nem nenhuma das formigas que se seguiam em multidões cegas puderam compreender o grande mistério da vida ou da morte, nem perceber o fluido negro que corria em suas próprias veias. Antes, para alívio, compunham estranhos dissabores em seus semelhantes, neles apontando antíteses e paradoxos bizarros de atuações em palcos secretos. 

     Os mortos, cada vez mais próximos, são incapazes de falar algo qualquer. Eu mesmo enforquei Zaratrusta em praça pública, e assassinei Friedrich Nietzche tantas vezes de acordo com minha conveniência. Eu mesmo apontei os esconderijos falsos de Jean Paul Sartre, de onde imaginava conseguir forças para os debates do mundo. Eu mesmo ouvi tantas vezes as belas sinfonias de Mozart ou Bethoven, como que as deixassem adentrar minha pequena alma em afagos sedutores. Eu mesmo me os tornei muitas vezes, e a tantos outros, em busca de mais de que simplesmente os entender e os sentir, mas também para lougros próprios em favor de meu ego. Assim é que já conquistei, como todos eles, e já me caí, como todos eles.  Mas por que iriam me crer, se eu mesmo não me acredito mais, nem quando me julgo a mim mesmo sincero?
 
     Os mortos. Podemos os ser e os dizer. Podemos os devorar até que nada sobre deles e os beber em perjúrio. Podemos os amar e com eles fazer amor puramente ou com delírios de orgasmos intensos, em enlaces com seus corpos presos em nossas mentes. Silenciosamente, em pleno ar ou numa imensidade vazia qualquer de nossa insanidade.  Os mortos estão por toda parte. Sempre se ressuscitando magnificamente. Vêm cada vez mais segmentados por tantos que os comem e bebem todos os dias. Os mortos nunca se foram de nós, formigas incompreensíveis,  que ainda andamos enganados pela crença numa eternidade perdida.  

     Estou faminto a caminho da morte. Antes que o trem, do qual sou também condutor, termine a viagem, quando então eu também serei servido como cadáver inerte, vou me lembrar ainda, de me banquetear e de me empanturrar em delírios. Quero Platão, Sócrates, Gustav Jung, Albert Einstein, Da Vinci, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos. Quero Clarice Lispector, Raquel de Queiroz, Marta Medeiros, Agatha Cristhie, Simone de Beauvoir. Quero suas criações vivas e mortas. Quero Zaratrustra, Sherlock Holmes, Superman. E quero a Mulher Maravilha, A fênix, A tempestade e as vampiras sensuais.  

     Que assombro e estranheza causa a formigas andantes como eu o que escrevo, se também todas conduzem seu próprio trem? Por outro lado, tende coragem. Saí de vossos abrigos, pois também comeis e bebeis dos magníficos cadáveres mortos que ressurgem todos os dias. E  também os usais todos os dias para plantar na seara fértil de vossas mentes, em construções de imagens a serem ofertadas a vossos semelhantes, com invocações dos que nada mais podem dizer.  

     E não vos preocupeis. Nem atenteis contra um vivo como vós, a caminho do esquecimento de mim mesmo. Sabei que eu me banqueteio com mortos e com todas as suas construções mortas. E vos presenteio com elas, amando-vos, devorando-vos e vos bebendo ainda mais intensamente.

     Péricles Alves de Oliveira

 
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 30/01/2013
Reeditado em 15/07/2013
Código do texto: T4114314
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