Conto que não deve ser lido
ou
O superegocoletivo contra o jovem Herbert

 
A teoria da existência do Superegocoletivo ou, mais comumente conhecido pela sigla SPC, foi defendida, pela primeira vez, na Universidade de Cambridge. O SPC seria um ser de existência efêmera, formado através da atuação de processos elétricos e neuroquímicos dentro do cérebro, na região virtual a qual os psicólogos chamam de inconsciente. Quando duas ou mais pessoas desencadeassem o fenômeno, ocorreria uma atuação em partículas exteriores menores que os elétrons, agrupando-as num fluido coeso chegando mesmo a ter uma personalidade. Depois de surgir, o Superegocoletivo atuaria nos seres que o formaram, algo como a teoria da sociedade, do filósofo Durkhein ou como o fogo que o homem traz à existência e depois pode queimá-lo ou servir-lhe à gastronomia, desaparecendo tão logo sua atuação tivesse sido concluída, ou seja, primeiro os homens criam o SPC, depois o SPC cria os homens. Mais tarde, pesquisadores e parapsicólogos russos fizeram um estudo surpreendente demonstrando a presença do SPC por meio de diversos experimentos.

Já a existência de Herbert se deu no dia do seu nascimento, quando, o médico, juntamente com a enfermeira, estranhando o fato de o bebê rir ao invés de chorar, deu-lhe palmadas além do necessário, que avermelharam suas pequenas nádegas até fazê-lo prantear aos quatro ventos.

Aquele foi o primeiro embate entre Herbert e o Superegocoletivo.

A segunda vez que o pequeno enfrentou o SPC de forma significativa foi no jardim de infância: após a professora passar uma folha com um desenho mimeografado de um soldado e pedir que as crianças o colorissem, Herbert usou lápis de cor vermelho no uniforme do militar. A docente, quando viu a cor rubra cobrindo toda a roupa do combatente, parou atônita e, depois que se recompôs do espanto, disse:

- Você ficou louco, Herbert? – Num gesto rápido, tomou a folha do aluno e levantou para toda a turma, balançando-a como uma bandeira rival – Olhem aqui. Alguém já viu soldado vermelho??? - Os colegas de sala, assombrados, responderam alto quase em uníssono:

- Nãoooo!

- Quais são as cores da bandeira brasileira? – perguntou rancorosa dona Inês.

- Verde, amarelo, azul e branco – retornou o coro dos pupilos.

- E qual é a cor do uniforme dos soldados?

- Verrrde.

Herbert não entendeu o que estava acontecendo: ele assistia pela TV aos soldados da Inglaterra com aqueles imensos chapéus pretos felpudos e casaco vermelho. Além do mais, seus soldadinhos de chumbo não eram vermelhos? A Tia Inês nem havia orientado quanto às cores...

- Então – continuava a educadora – como é que você coloca essa cor... essa cor... essa cor de sangue no nosso soldado? Você é comunista? – Berrava a mulher sacudindo a folha no rosto do menino. Os pais do garoto foram convidados a ir à escola para uma conversa seriíssima com a direção. Além de um puxão de orelha, Herbert foi obrigado a presenciar, no quintal da sua casa, o enterro da massa informe em que se tornaram todos os soldadinhos.

No seu terceiro contato com o Superegocoletivo, aos 13 anos, a reação de Herbert foi mais contundente. Durante a aula de literatura, quando o professor concluiu a leitura do poema de Drummond “No meio do caminho”, o menino disse:

- Se eu estivesse lá, jogava a pedra nele.

O professor inspirou fundo e depois exalou com ares de peloamordedeos.

- Você ficou louco, garoto? Sabe quem foi Drummond?

- Sei sim.

- E tem a audácia de criticá-lo?

- Não estou criticando Drummond, estou criticando um poema dele...

- E quem é você para criticar um poema do Drummond?

- O senhor sabe quem eu sou.

- Pois é, você é um merdinha, um joão-ninguém, um... um...

- Posso ser quem for mas não gostei do poema e não será o senhor que vai decidir como dever seu meu gosto.

- Deu para desrespeitar a autoridade agora? Já para fora da sala.

- Com muito prazer – respondeu o garoto – já passei na sua matéria mesmo. Muito estranha a forma como o senhor lida com as pedras no seu caminho...

Poderíamos dizer que Herbert ia crescendo como a maioria dos seres humanos, mas não era o fato. Aos poucos, ele foi se impregnando de alguns adjetivos bem negativos como “chato”, “encrenqueiro”, “metido-à-besta” pois sempre apresentava um comportamento inusitado, diferente ou, como dizia seu avô, original. Conduta essa que evocaria a manifestação do ente nomeado de Superegocoletivo, o Frankstein anímico formado com fragmentos de personalidade, em diversos momentos da sua vida.

Foram vários os confrontos com o SPC. Herbert sem saber da teoria dos americanos e da pretensa comprovação dos russos, o enfrentava heroicamente. Mesmo quando apanhava, o que aconteceu aos 16 anos. Estava toda a família – os pais, a irmã mais nova e o irmão mais velho – assistindo às Olimpíadas. A comentarista esportiva então fez um elogio aos atributos físicos do velocista da Ucrânia Andrey Skvortsov dizendo “Que homem lindo” ao que Herbert, pensando alto, concordou, “Lindo mesmo”. Não demorou muito para que o Superegocoletivo manifestasse sua presença ali na sala: o genitor de Herbert, mastigando um palito de dentes, os olhos comprimidos, fixos na tela, resmungou:

- O que você disse, Herbert?

- Eu concordei com a repórter.

- Ele disse que O atleta é lindO, pai – Esclareceu o irmão mais velho frisando o gênero do artigo e do adjetivo.

A irmãzinha de 8 anos pôs as duas mãozinhas sobre a boca, segurando o riso que saia abafado por entre os dedos lembrando uma suave flatulência. A mãe, ruborizada e assustada, interveio:

- Não foi isso que ele quis dizer, não é querido? Diga, Herbert, que eles estão entendendo errado...

- Foi exatamente isso o que eu quis dizer, mãe, que o esportista é lindo. Qual o problema?

O pai foi se levantando desajeitadamente ao mesmo tempo em que procurava, de pé, encarar o filho.

- Nenhum homem na minha família pratica o pecado da pederastia!

- Eu? Pederasta? Por que achei um homem lindo? Ora pai, o senhor não acha o cavalo da fazenda maravilhoso? Não acha nosso Rottweiler bonito? Vai me dizer que sente tesão pelos dois...

- Vou te mostrar o que é tesão, garoto malcriado!

A agressão fez com que o jovem Herbert, aparentemente, se rendesse ao Superegocoletivo, aliando-se a ele: rindo com o grupo, concordando com a maioria, venerando com a multidão, votando com a maior parte, comportando-se como os normais, vestindo-se com a moda e até mesmo, embora muito raramente, reprimindo ou incentivando como um bom e obediente agente do Superegocoletivo. As cicatrizes estavam nas costas de rapaz quando ele fez o discurso de formatura na 20ª turma de medicina da Universidade Federal:

“Não vou agradecer a ninguém por este dia. Os professores porque cumpriram uma obrigação e não um favor. O mesmo vale para os meus pais, aos quais, além disso, sempre deixei claro que não tinha vocação para medicina. Meu objetivo era ser um pequeno agricultor no interior: três cômodos, uma horta, galinhas ciscando no quintal, pássaros cantando nos arbustos das árvores e um riachinho murmurando mais além. Porém cedi às ameaçadas e chantagens. Coloquei-me em coma durante seis anos. Esse diploma é um atestado do quanto fui fraco. Tenho que entregá-lo à minha vida, para que ela me abone os dias em que deixei de ser eu. Mas a licença para anular-me acaba hoje. Eis que abro meus olhos e ressuscito. Da minha latência, chego com a boca aberta e a língua repleta de mim – Herbert tirou o capelo e jogou-o ao chão. Apoiou-se com as mãos na tribuna, a cabeça inclinada, os olhos fixos na assistência e continuou - O cifrão parece com o símbolo da medicina não é à toa. Para mim, médicos, políticos e religiosos deveriam ser trabalhos voluntários, subsidiados com contribuições espontâneas, mas a nossa medicina está doente, sofre de neurocisticercose, os vermes famintos de fortuna, mastigaram o bom senso com suas ventosas gananciosas e o alimento deles se chama doença, infecção, fratura e loucura.”

 Os país de Herbert assistiam ao discurso pasmados. Não conseguiam nem mesmo chegar a um julgamento, atribuindo ao filho alguma característica que definisse o “aquilo” que ele fazia. Enquanto isso, um silêncio cavernoso se apoderou de todas as arestas do auditório, quando a primeira vaia cortou como uma lança:

“Sai daí, imbecil! Huuuuuuuuuuu”

Não houve tempo de alguém socorrer Herbert resistindo à força invisível que os invadia. A turba subiu ao palco como uma alcateia de hienas babando dilaceração. Homens e mulheres à passeio completo atacaram Herbert; gravatas virando chicotes; saltos altos, facas. Socos, pontapés, tapas, unhadas e até mesmo uma mordida na jugular, cravada pelo empresário da Indústria Farmacêutica Odiva Eugnas, deixaram o corpo moribundo e a beca, vermelha de hemorragia. O bando parou subitamente; os urros diminuíram, transformando-se em respiração ofegante; muitos com mãos e roupas manchadas de sangue; observavam, estarrecidos, a cena como se não fosse resultado da sua insanidade. Herbert ainda teve forças para erguer o tórax e dizer: “Alis volat propriis”, depois deixou-se e saiu voando pelas grandes janelas do auditório enquanto o Superegocoletivo crescia e estourava qual imensa bolha de sabão, mas não lavou a cara de ninguém que lá estava..
Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 23/01/2013
Reeditado em 23/01/2013
Código do texto: T4099506
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