Cólera e Caos
Minha singela homenagem ao velho Buk, que tanto aprecio:
É a terceira mulher da qual eu me separava. Ou melhor, é a terceira mulher que se separava de mim.
Nunca vivi sozinho. Primeiro tinha minha mãe. Depois reneguei o leito materno para viver com uma interiorana acanhada. Em seguida vieram as brigas e discussões, e ela, a prostituta. Viver com uma garota de programa não é tão diferente do que viver com qualquer outra mulher, a não ser pelo fato de que quando ela não quer trepar com você o sentimento de revolta é imensamente maior do que quando uma puritana não o quer. Quando o ritmo se tornou frenético demais apareceu a terceira, a mãezona. Eu a chamo assim porque dizem que você sempre volta para aquilo que conhece, e ela era assim pra mim: uma grande mãe. Todas cuidaram muito bem de mim e nunca me vi na posição de lavar uma louça sequer. Todas, eu disse todas, foram excelentes donas de casa.
Eu atraio o caos assim como o caos me atrai, e foi por esse e outros fatores que a mãezona me deixou com dois peixes, um gato e uma tartaruga, nessa antiga casa herdada, que fede naturalmente a mofo e enterro (e agora a coco de gato).
A bagunça simplesmente aumenta e aumenta. Não há nada que eu possa fazer, ou melhor, não há nada que eu esteja disposto a fazer. É realmente difícil e cansativo fazer as coisas permanecerem como dizem que devem estar. Como se não bastasse me prostituir pro uns trocados em uma merda de empresa, tenho que continuar pagando os meus pecados aspirando a casa toda semana? Não é mais simples aceitar a impermanência de tudo e deixar as futilidades para o acaso do destino? Não sei com os outros, mas pra mim as mulheres nunca pareceram fazer tanta diferença na minha vida como fazem agora, que não as tenho. Agora entendo a funcionalidade das mulheres. Cuidar da caverna. Enquanto o macho caça, a fêmea cuida do ninho. Simples assim. Mas não tão simples pra mim.
Enquanto ando pela casa com a ressaca matinal de uma sexta-feira póstuma, coço o saco e vejo o gato cagando dentro do pote de ração vazio. Não é culpa dele, o lugar já está cheio de mijo e merda, o que o pobre coitado quer é um lugar limpo para deixar sujo. Rubinho, a tartaruga, não aparece há três dias. Quem diabos consegue perder uma tartaruga de vista? Os pequenos peixes alaranjados boiam na superfície do aquário. Nunca fui muito empático com peixes, os acho sem propósito e extremamente entediantes. A cozinha fede a enxofre e carniça e enormes moscas de todas as cores imagináveis zunem pesadamente no ar. As malditas fazem seu banquete em meio à podridão, como pessoas miseráveis.
Abro a geladeira para pegar uma cerveja e uma barata do tamanho de um morcego se esconde atrás do molho de tomate vencido. Meche apenas suas antenas, enquanto procuro algo para comer. Está ali, bem ali! Um sanduiche natural que ainda parece estar saudável para comer. Creio que uma das únicas coisas que não estão podres dentro da geladeira. Está bem ali, atrás do molho de tomate. Debaixo da barata. Pego uma cenoura embolorada para espantar o bicho. Cutuco suas costas brilhantes como rubis. Como que de um salto, o monstro acobreado voa em minha direção. Ela tem ímpeto. Ela tem ódio. Eu tenho asco e medo. Debato-me freneticamente, dando saltos como um artista circense. Tenho a impressão que ela anda por todas as minhas costas e ombros, descendo até entrar nas minhas calças. Entro em pânico. Ela corre pelo chão da cozinha e some por detrás do fogão. A impressão que tenho é que ela ainda está em minhas calças.
Fecho a geladeira e removo o lacre da cerveja com um sonoro “tschii”. Mordo um pedaço do suculento sanduiche natural. Está podre. A merda do sanduiche também está podre. Vou em direção ao lixo sobrecarregado e tampo o nariz ao me aproximar. Jogo o sanduiche azedo lá dentro e percebo um movimento. Em meio às moscas vejo algo branco e brilhante, como um enorme arroz em movimento. É uma larva. Uma larva varejeira. Deve ter o tamanho do meu antebraço e se rasteja dentro da lata de lixo, comendo as sobras das últimas semanas. Repugnado me afasto e percebo-a. Sua irmã mais velha. Uma larva com cabeça de cupim, que espreita por detrás do fogão. Uma larva do tamanho de uma perna humana. Da sua boca saem duas antenas. Antenas da barata que ela mastiga, até engoli-la por completo. Ela rasteja em minha direção, com sua cor branco-amarelada. A cada movimento sua pele transparente me permite a visão do que parecem ser órgãos e intestinos que se mechem dentro dela, como outras pequenas larvas. De suas costas saem pelos da grossura de um dedo mínimo e do tamanho de antenas de antigas TVs de tubo. Afasto-me rapidamente, enquanto o monstro se aproxima e escorrego em alguma das porcarias jogadas no chão. Ela se aproxima. Tarde demais. Não se pode ser negligente com as coisas por muito tempo, no fim tudo retorna como um carma. A enorme larva começa a subir em minha perna direita enquanto me afasto e tento me levantar. Ela crava sua enorme pinça da cabeça de cupim bem acima da panturrilha, a dor é nauseante. Por um segundo acho que vou desmaiar. Ainda atordoado dou-lhe coices na cabeça com minha perna esquerda. A larva dá um silvo e se solta. O sangue escorre, enquanto levanto-me rapidamente, me apoiando na pia ao lado. Dou alguns passos para trás. A dor é intensa. Pego uma faca suja que repousa ao lado dos pratos engordurados e aguardo, como um gato acuado. O verme se aproxima sedento e inexpressível. Com um golpe único, cravo a faca entre os olhos da larva, que começa a se debater e defecar. Cambaleante, contorno o espasmódico monstro e vou em direção ao lixo. Abro a gaveta ao meu lado e pego um martelo de carne, fitando o verme que se alimenta do meu sanduiche podre. Enfio a mão no lixo e martelo com raiva. Com raiva da merda do emprego que não me dá paz. Com raiva das pessoas hipócritas que fingem estar preocupadas com você. Com raiva dos porcos capitalistas que vendem seu ar e suas árvores em troca de alguns xelins. Com raiva das malditas mulheres que viraram meu mundo de cabeça para baixo e depois simplesmente sumiram.
Estou com a gosma fétida do verme desde a mão até o antebraço. A larva que antes se alimentava no lixo agora não passa de uma pasta pútrida de desgosto. Solto o martelo e manco para o meu quarto, enquanto Bukowski, meu gato, brinca com a larva maior que ainda se retorce com a faca na cabeça. Limpo a gosma do meu braço na cortina e deito na cama. Alcanço um cigarro na cômoda e acendo, dando uma longa tragada. Estou sozinho e tudo parece um sonho. Onde está quando mais preciso de você mãe? Clotilde, Sofia, Carlete... Porque me abandonaram? Mulheres da minha vida, onde estão vocês agora?