Primeiro conto - Parte II
II
A entrada da casa não se diferenciava muito de um portal para outra dimensão. Era uma casa normal, por dentro e por fora, mas parecia um lugar separado do resto do mundo. Costumo dizer que era uma casa “parada no tempo”, todas as vezes que retornava ela continuava a mesma, em todas as suas peculiaridades e particularidades. Os móveis antigos, as fotos da família, o cuco na parede que cantava às 6 horas todo dia, o garfo torto que sempre acabava sendo usado por mim, o leite quente de manhã, a jarra de porcelana que comportava os variados sucos que vovó fazia com as frutas que comprava no mercado, as ferramentas empoeiradas, bolinhas de gude, selos de coleção, livros e livros espalhados pelas estantes, os quadros distribuídos pela parede que acompanhava a escada que levava até o segundo andar, o carpete, o piso de madeira, as cortinas escuras que não deixava os longos raios de sol entrarem nos cômodos revelando a poeira na alvorada, a lareira, a mesa de madeira onde fazíamos as refeições e todas as outras coisas que aquela construção nos oferecia. Naquela época para mim, ela era apenas uma casa velha, recheada de coisas velhas, aconchegante o suficiente para me fazer dormir durante a noite e várias outras vezes durante o dia, principalmente depois do almoço.
Crianças acham tudo maior do que realmente são. Eu sempre escutava “a casa é sua meu neto” e parecia que eu tinha um castelo inteiro a minha disposição. Realmente a casa era minha e a sensação de poder me deixava mais confiante do que nunca. Por várias e várias vezes ela se tornava palco dos mais diferenciados cenários, todos que a minha imaginação permitia. Já estive no comando de navios piratas, já cavalguei cavalos e matei dragões, já fui para o espaço lutar contra alienígenas, investiguei pirâmides, nadei com tubarões e fugi de fantasmas que arrastavam correntes durante à noite. Na realidade desfrutada por todos nós, eu nunca tinha feito nada disso, mas me divertia acreditando que havia feito. Se um louco acredita que um poste conversa com ele, então para o louco o poste realmente conversa com ele. Por conclusão, será que eu era semelhante quando criança? A insanidade teve como cura o tempo? Seriam, então, todas as crianças normais loucas? Ou será que ficamos realmente perturbados quando amadurecemos? A humanidade se alimenta de superstições em muitas situações, sempre se alimentou e sempre se alimentará. O Louco mora em todos nós, e aguça nossa imaginação. E por fim, chegou um dia, depois de 8 dias, que o coringa havia se escondido no baralho, aquele meu Eu Louco sumiu .
Ele não voltava de jeito nenhum. Eu esperei ansiosamente, mas todos os surtos de felicidade eram contidos pela solidão e saudade. Os dias se tornaram cinzas e sombrios, a comida foi perdendo seu gosto, e por dois dias eu vi o sol nascer iluminando os céus e morrer banhando o mesmo em cor de sangue, sem que nada de interessante acontecesse, sem que nenhum grito nem eco, nem um movimento ou presença, anunciasse a vinda insana daquela minha outra face.
Na madrugada do décimo dia, quando uma estranha insônia se manifestou em mim, eu parei próximo a uma janela e contemplei o céu. Ele estava limpo, sem nuvens. Todas as estrelas haviam perdido sua timidez e estavam atuando em um espetáculo cintilante, cada uma com seu brilho próprio, vaidosas, do seu jeito único. Eu tentei contá-las. Seriam milhares? Milhões? Bilhões? Era inútil. Pareciam se multiplicar, ou simplesmente trocar de lugar, para que seu mistério fosse mantido, guardando aquele segredo. Tudo isso era uma grande produção digna de manchete de cinema e eu estava assistindo tudo de camarote. Imaginei como seria ser um estudioso do espaço, e achei tudo no mínimo interessante, cogitando hipótese de observá-lo mais de “perto” um dia. Subitamente, a mais bela de todas as estrelas que estavam lá, furou a cortina negra da noite e sobrevoou o céu deixando o rastro de sua cauda para trás. Ela era magnífica e encheu meus olhos de luz. Foi a atração principal naquela noite e que saudades eu tenho dela. É claro que estrelas cadentes não realizam desejos e provavelmente estão muito mais longe do lugar em que supostamente a vemos, devido o tempo que a luz leva para percorrer os cosmos e chegar aos nossos olhos. Mas a cultura popular de filmes e histórias religiosas me fizeram respeitá-la, de modo a me sentir lisonjeado pela confiança que aquele astro havia depositado em mim. Com os mais ingênuos sentimentos e os mais inocentes pensamentos fiz um pedido a estrela, seguindo-a com meus iluminados olhos, eternizando e profetizando as palavras que soaram baixinho naquela noite. Poucos sabem que fiz um pedido e só eu e a estrela sabemos o que desejei. Felizmente ou não, acredito que o silêncio é uma virtude.
Neste momento meus olhos pesaram. Morfeu ameaçou um abraço. Os fechei por dois segundos e depois retomei minha visão, olhei pela janela novamente, mas dessa vez em direção ao horizonte, e pude ver o velho carvalho no lado de fora. O balanço não dançava mais. Nele, a silhueta de um homem sentado chamou minha atenção, ele estava olhando para baixo com os braços apoiados nos joelhos, iluminado pelas estrelas, segurando um livro aberto com ambas as mãos. Eu poderia simplesmente ter ignorado o fato, mas preferi observá-lo por mais tempo. Ansiando por alguma novidade e mesmo tendo medo, a curiosidade não me deixava ir embora “Quem é esse homem?”. Eu ainda não sabia que a curiosidade havia matado o gato. Subitamente ele levantou o rosto e fechou o livro deixando para trás um olhar perdido para mirar dois círculos negros no fundo dos meus olhos. Meu corpo paralisou, a figura sombria retirava qualquer sentimento bom que habitava meu peito e o único som que quebrava o silêncio era o do meu coração, pausadamente, bombeando sangue para o resto dos meus membros totalmente imóveis. Eu pisquei e em uma fração de segundos o balanço estava só novamente, a não ser pelo livro que continuava lá. Não preciso comentar que não demorou muito para que o pertence estivesse em minhas furtivas mãos.
Voltei para casa e mais do que depressa me sentei no sofá da sala. Ao meu lado, acendi o abajur de porcelana, que estava em cima de um móvel de madeira ornamentado com bronze muito bem trabalhado. Puxei o livro para o meu colo e examinei o objeto. A capa de couro escuro espessa era totalmente lisa e nela estava escrito com letras douradas garrafais “O cidadão de Atenas: Sócrates”. Naquela época eu sabia tanto de Sócrates e Atenas quanto um analfabeto sabe como se escreve uma carta, portanto abri o livro na esperança de encontrar explicações para o que seriam ambos. Era possível perceber que as páginas já haviam sido tocadas pelo tempo, eram velhas e amareladas. Certamente manuseá-las sem danificar o material, exigia uma destreza que eu duvidava ter. Mesmo assim, virei as folhas e para minha surpresa o livro estava escrito em uma língua no mínimo estranha, em grego, para ser mais exato. Sobrou-me apenas procurar por ilustrações que pudessem esclarecer do que se tratava o antigo livro. Pude encontrar várias delas, pinturas de homens velhos barbudos se cobrindo com panos, de cidades, de prédios com altas colunas, esculturas perfeitas quais eu nunca havia imaginado, fontes, ruas de pedra, navios e uma infinidade de outras coisas que existiam naquela civilização antiga. Todas eram muito bem feitas e eu me deliciava com toda aquela arte até que em um momento, perto do fim do livro, eu quase deixei passar uma página onde a imagem de homem com barbas brancas encaracoladas e um olhar sábio, chamou minha atenção. A foto era suficientemente grande para eu considerar que este seria uma personagem importante, só não sabia se iria chamá-lo de Atenas ou de Sócrates. Enquanto eu raciocinava, a luz do abajur piscou algumas vezes até me deixar na completa escuridão.
Uma voz grave declamou das sombras:
- E Apolo subiu o horizonte em sua magnífica carruagem, liderando dois cavalos banhados em chamas, trazendo consigo o amanhecer e presenteou o cidadão com a missão mais importante: Defender a idéia “Conhece-te a ti mesmo”. E continuou sua viagem até o outro horizonte. – A escuridão me deixava ver apenas o branco dos olhos, o sorriso amarelado e a ponta incandescente de um cigarro da fonte que emitiu essa frase que para mim não fazia sentido nenhum.
Após duas palmas a luz voltou. O homem que estava sentado na poltrona a minha frente era o mesmo que a pouco estava no velho carvalho. Incrivelmente ele sorria pra mim de um jeito tão confiante, me olhando amigavelmente como um cachorro que eu não me senti de forma alguma intimidado pela estranha figura. Ele tinha a pele escura e estava usando um paletó acinzentado com sapatos muito bem engraxados. Ele desviou o olhar para o livro.
- Acho que este livro é seu – E com um gesto gentil levantei o objeto em sua direção. Ele sorriu mais uma vez, agora mostrando vários dentes.
- Este livro não pertence a ninguém, mas é de todos – Ele o pegou e o acariciou. Meu rosto cheio de dúvidas foi a deixa para o homem falar mais. – Este amontoado de páginas são apenas relatos de um, entre muitos dos homens, que tentou entender o mundo. Não sei se ele estava certo em tudo que disse, muito menos se ele realmente existiu. Sei apenas que ele plantou uma semente muito importante aqui.
- E qual seria?
- Bom, ele questionava tudo. Você é feliz? Ele perguntava e a pessoa respondia positivamente, então ele seguia com outra pergunta, Me diga o que é felicidade, e assim por diante. Para frustração dessa personagem acho que posso afirmar que praticamente ninguém sabia responder as simples perguntas. Sabiamente o homem admitia saber muito pouco e por isso buscava respostas para este aglomerado de dúvidas. Aí a máxima que ele deixou de herança: Só sei que nada sei.
Meu pensamento crítico diz que essa informação veio muito cedo, eu era um garoto apenas, mas bem melhor do que se ela tivesse chegado tarde demais.
Naquele momento alguém bateu a porta da minha mente e eu a destranquei, para quem quiser que fosse, pudesse entrar. A maçaneta girou e a porta se abriu, mas continuou encostada. Uma gargalhada sarcástica soou lá longe e a porta balançou uma ou duas vezes carregada por uma leve brisa. De uma hora pra outra a porta se abriu totalmente e o som daquela gargalhada tomou conta da minha cabeça. O coringa, lunático, Jack of all trades, palhaço, o meu Eu Louco, motivo de todas as insanidades ou seja lá como você prefere chamá-lo, havia voltado. Após o anúncio de sua ilustríssima presença, Ele se aquietou e ficou a observar.
A luz apagou novamente, e a ponta incandescente do cigarro, que já estava no cinzeiro, foi perdendo força até apagar. A claridade voltou e nem o homem nem o livro estavam lá. Adormeci no sofá, enquanto um vórtex de idéias estava na minha mente.
"Giovane tinha em seu quarto duas gatas de porcelana, uma branco e preta outra preta e branca. Ele gostava da gata preta e branca, mas quando a gata branca e preta se quebrou ele viu o quanto a mesma era útil, pois agora ele não gostava mais tanto... Da gata preta e branca."