O achado misterioso
Era um dia como qualquer um outro. Juvenal, um jovem catador de recicláveis, entoava uma melodia aos assobios quando avistou uma mala. Era uma linda mala. Olhou para os lados para tentar avistar se havia alguém que a reclamaria. Ninguém aparecia naquele beco, eram sete horas da manhã. Pensou em ficar esperando até que o dono aparecesse. Colocou a mala em seu carrinho, escondeu-a. Lembrou-se de ver quais eram os detalhes dela paraver se a pessoa que aparecesse reclamá-la saberia descrevê-la. Daí sim a devolveria. Juntou o reciclável do beco e nada. As janelas se abriam. As pessoas punham as roupas nos varais. As chaminés cuspiam fumaça, saíam pais para levarem suas crianças à escola. Uma senhora que saía muito cedo caminhar estava a voltar de sua matinal caminhada. Juvenal disfarçava e ficava a esperar... E nada... Nove horas da manhã. O pobre catador aguar-dava... Sua barriga roncava. Seu pensamento neste momento era de deixar a mala ali e seu dono que voltasse buscá-la. Mas, será que outra pessoa, que não seu dono, a encontraria. Enfim, deixá-la não. Resolveu aguardar.
65. Dona Jurubeba sai à janela e estranha a inusitada permanência do homem da reciclagem mais do que os quinze minutos habituais os quais demorava para fazer a coleta. Mas, mesmo assim ela se recolhe. Juvenal se incomoda e, ninguém... Pensa, ninguém mesmo vem buscá-la. Resolve ficar sentado na praça à frente do beco e aguardar o descuidado que deixara uma linda mala ali a esmo. Olho fixo e um senhor se aproxima. Distinta pes- soa, ao ver do Juvenal, muito bem vestida, com um impecável terno. Deve ser ele o proprietário, pensou o preocupado Juvenal. Bateu à porta da mulher do número 18 e conversou ligeiramente saindo com uma caixa pequena embaixo do braço, que após passar perto do nosso herói, descobriu uma caixa com xícaras pelo desenho que tinha na mesma. Cumprimentou o simpático senhor e este foi embora. Concluiu que não era o dono. Quem deixaria ali aquela maleta? Quem voltaria para reclamá-la? Será que alguém saberia dizer alguma coisa a respeito. Em quem confiar? Como perguntaria às pessoas? Faltavam ideias ao homem que cuidava tão bem do lixo. Até que chegasse a resposta, resolveu comer alguma coisa. Trazia em sua sacola um pedaço de pão e uma garrafa de refrigerante com
66. chá dentro. Comeu, a cada mordida se preocupava,quando iria sair dali. O lanche acabou e ainda nada. Ninguém aparecia para levar a mala. Pensou em jogar fora e fim do problema. “Mas que ideia a minha, que falta de consideração com as pessoas” refletiu nosso honesto homem. Faltava-lhe conhecimento. A quem entregar a mala? O medo passava-lhe pelos nervos como um choque a lhe arrepiar. “Por que medo?” Decidiu ver melhor a mala. Chacoalhou-a. Parecia haver algo lá dentro que pareciam papéis. Achou que podia ser dinheiro. Por um momento, sentiu-se feliz. Ajudar alguém.Talvez a pessoa que perdeu o dinheiro voltasse para buscá-lo. Certamente, o pagamento do mês. Pensou de pronto: as crianças em casa à espera do pai coma compra do mês, a esposa pronta para cumprir suas obrigações... “Que prazer ajudar alguém”, devaneava Juvenal. A tarde vem e a sombra já não conseguia impedir os ardentes raios solares que queimavam a pele escura do esforçado agente ecológico. Este a imaginar a chegada do homem que esquecera ou perdera o dinheiro. “Será mesmo que é dinheiro?” Interrogou-se.
67. Sentado quase o dia todo, poucas pessoas haviam notado nosso reflexivo homem. Os pássaros lhe faziam companhia. Ele ficava a indagar a eles, em pensamento, se sabiam de quem era aquela bendita mala. Decidiu. Em um lapso de pensamento decidiu pela libertação. Ver o que havia na mala. O coração quase lhe sai pela boca. Palpitava-lhe que seria con- fundido com um ladrão, um bandido. Mas precisava abrir e ver se havia ali alguma pista que levasse ao seu irresponsável dono. Agora o suor escorria-lhe ao rosto, lavava-lhe a alma, talvez fosse o momento... Nunca imaginou que partiria daquela forma. “Não, decididamente, não! Não vou morrer!” Mesmo que seu coração lhe falasse o contrário. Não tinha sentido tal sensação até aquele momento. Mas... a curiosidade era maior e pensou “Já que vou morrer quero saber o que vai me levar!” A mala olhava quase que sorridente àquele infeliz. Justiça seja feita, por que se preocupar tanto com um ser tão ignóbil? Uma pessoa que deixava uma ma- leta em qualquer lugar pode ter feito propositalmente, talvez um descuido ou até mesmo para se desfazer dela. Qual destas indagações seria a correta? Filosofava Juvenal. A emoção, a curiosidade, o medo, a sublimação... Nunca havia refletido tanto. Nunca pensara tanto para encontrar uma resposta. Seu coração nunca sentira tanta emoção. A preocupação era com outrem e, nem ao mesmo o conhecia. Um desconhecido nunca o influenciara desta forma. A preocupação com outra pessoa se fazia clara ao nosso paciente catador. Sempre gostou do que fazia. Não sabia bem definir o que o movia diariamente àquele ofício. Achava que era só a ânsia de viver e ter por que viver. Todavia,naquele momento sentia-se importante, não sabendo exatamente por quê. A angústia. A curiosidade. O peso na consciência que o fazia sentir culpado. Tudo isso o atormentava.As mãos suavam, a cabeça rodava, a falta da esposa neste momento se fazia grande - pois saberia ela o que fazer – mas ele... Em um relance helicoidal, a mala espiralava-se em um escuro buraco negro que lhe tolhera aos poucos sua consciência. A mala às mãos. Agora ao peito. Resolveu sentar-se recostado ao carrinho, quando... o mundo começou a fugir-lhe, levando consigo seus sentidos. Em um grande sonho surreal, ele abria a mala e de lá saíam mansões, carros dos mais variados tipos e marcas cada um mais belo e brilhante que o outro,comidas que não saberia descrever - pareciam-lhe deliciosas – mas distantes se faziam, assim doía-lhe ainda mais seu estômago.
69. Sua família – como se fosse espectadora desse sonho – apreciava atônita tamanho acontecimento. Tais coisas os distanciavam cada vez mais, até que Juvenal já ao longe dos seus, sente-se muito só. Muito só. Ele unicamente deseja transpor as barreiras impostas pelo que saía da maleta. A mesma é alvejada por uma inesperada pedra – vinda não sabe de onde. Ela se fecha. E o que dela saiu some. Assim, nosso herói se sente aliviado, pois se vê novamente próximo de seus familiares. Eles o abraçam e aliviado despede-se. Alguns minutos depois, retoma seus sentidos e, avista ao seu lado a maleta. Estava aberta. Atônito vê em seu interior um livro velho e um maço de papéis escritos. O homem que faz a coleta do reciclável não sabe ler. A curiosidade lhe corrói a alma. Por que não estudei? – indagou Juvenal. Os conselhos de sua mãe para que estudasse açoitava-lhe. No entanto... teria imediatamente saber o que estava escrito naqueles papéis e o que era aquele livro. Para a sua sorte vinha alegremente um meni- no que pela rua assoviava sem parar. Sem cerimônia ele foi parado. Perguntou-lhe se ele sabia ler. Respondeu – meio com receio - com a cabeça que sim. Deu-lhe os papéis – mesmo o menino achando
70. aquilo muito estranho - leu meio que silabicamente, mas leu. A primeira página dizia assim: “Quero desculpar-me da forma que achei para repartir do muito que colecionei em minha vida. Os anos se passaram e descobri nisto que deixei registrado nas folhas que se seguem um grande tesouro, que me fez um homem feliz, livre e, sobretudo solícito. Resolvi repartir com você, pois certamente saberá assimilar com sabedoria o que lhe deixo. Acredito que se mudou a minha vida, poderá mudar a sua.Deixo-lhe um exemplar desta preciosidade que para mim é uma bússola num mundo em que as pessoas andam sem saber para onde e por quê. Um grande abraço de um amigo” Inesperadamente, a ira nos olhos de Juvenal era visível. Os papéis foram lançados furiosamente em seu carrinho. “Quem me roubou? Levou o que havia nesta maleta me deixando só estas folhas sem valor.Talvez houvesse joias, dinheiro ou sei lá o que mais.Pobre de novo! Somente desejei ter uma casa digna.Comida...” Afirmou furiosamente. O menino lhe perguntou “Hei, o senhor vai que-rer este livro?” O homem disse que poderia ficar com ele. “Obrigado moço” disse o menino sorrindo – e levando consigo um exemplar usadíssimo da Bíblia Sagrada.
Marcio J. de Lima
do Livro Devaneios em Prosa (Editora Unicentro, 2011)