Primeiro conto - Parte I

I

Eu nunca me incomodei com fato de não ter irmãos ou irmãs, muito menos de ter tido uma infância aparentemente solitária. Na verdade, a saudade que sinto desta época talvez seja o mais intenso dos sentimentos que vivo.

Era de costume eu passar parte das férias na casa dos meus avós. E assim como eu hoje considero a alvorada e o crepúsculo mágicos, naquela época julgava minha estadia de forma semelhante.

Meus avós sempre foram avós comuns, daqueles que mimam os netos. E eu, que sempre fui comum também, adorava esse tipo de atenção. Lembro claramente que na época que meus dentes formavam janelas, passei pela primeira vez as férias inteiras com eles. Foram 15 dias, tempo que nunca havia ficado longe de casa. Nos primeiros anos escolares, logo que aprendemos a contar e entender as relações numéricas, nos é informado que existe uma ordem crescente de números que começa do zero e vai até muito. Aprendemos que 20 é maior que 10 e que 10 é maior que 5 que por sua vez é menor que 15 mas, ninguém pode, a não ser nós mesmos, experimentar a dimensão que esses números podem representar em nosso cotidiano. Ninguém pode nos dar a sensação de como é comer 3 doces ou de como é esperar 23 minutos e 7 segundos por exemplo. Eu já havia passado 5 dias na casa dos meus avós, 6 dias e até 7, mas dessa vez seriam 15 e para mim esse número apenas representava “o suficiente para me intimidar”.

Meus pais me levaram até a casa. Antes de estacionar o carro, eu já via através do vidro embaçado pelo ar condicionado, os pais da minha digníssima mãe me esperando no hall de entrada e um nervosismo bom me invadia. Eles observavam o carro. Minha mãe estacionou próximo ao carvalho que parecia estar ali desde muito antes daquela casa ser construída, nele havia um balanço dançante à brisa de primavera e as folhas vermelhas da árvore combinavam com o pôr-do-sol. Assim que o veículo parou, os dois se aproximaram para ajudar a levar minhas bagagens e nos receber. Somos mamíferos e isto basta para justificar o zelo que temos entre nossos entes queridos.

Na hora de me despedir da minha mãe eu tinha uma dúvida particular que me causava certa insegurança, se depois daqueles 15 dias longe de mim ela voltaria. Sendo por ordem natural ou não, por vontade divina ou não, por culpa de terceiros ou não, eu queria que ela voltasse. Por cima de toda essa angústia, eu tinha certeza que iria vê-la novamente. Minha mãe e meu pai cuidaram de seus respectivos pais e mães depois que eles ficaram mais idosos, e eles depois que ficaram idosos tinham netos para mimar. Minha mãe não tinha netos, nem era idosa. Então uma voz dentro de mim me dizia que muita coisa ainda ia acontecer, muita coisa que levaria muito mais que 15 dias.

Em qualquer parte do mundo, entre as pessoas mais humanizadas, é normal a tristeza, indignação e a não aceitação diante a morte de entes queridos. E isso continua ocorrendo mesmo depois milhares de anos convivendo com essa atmosfera de idas e vindas. Eu concordo que é difícil colocar na cabeça que as pessoas que, talvez, mais amamos possam nos deixar a qualquer momento e mais difícil ainda é admitir que possamos deixá-las a qualquer momento também. Este ciclo é imutável, e talvez seja melhor se adaptar o mais rápido possível do que tentar lutar contra ele, o que é inútil.

"Existia uma zebra que queria correr em todos os vastos campos. Ela já havia corrido em muitos, mas ainda faltavam outros muitos para conhecer. Certo dia a zebra ouviu o mato baixo se balançando “Pode ser o vento talvez” ela pensou, mas mesmo assim sabia que algo estranho estava acontecendo, olhou atentamente ao redor...Tudo calmo. “Vou voltar a andar” ela pensou e então viu um conglomerado de músculos retesados agachado, olhando para ela com um par de olhos verdes e famintos, possuídos pela calma da caça. Ficou imóvel. E quando tomou coragem para fugir, foi tarde demais. E ela nunca mais visitou vastos campos."