Habeas Corpus - parte I

HABEAS CORPUS

Parte I

Caralho! Tem um defunto no meu sofá!

Com o aparelho nas mãos, olhos fixos ao corpo decomposto em sua poltrona enquanto tenta se acalmar ao telefone, o coveiro observa, em pânico, o aspecto fétido, disforme e putrefato de um cadáver incógnito a sua frente. Ficou mudo! - “Provavelmente desligou ao deduzir uma brincadeira infantil e de extremo mau gosto” – pensou - até que a voz do outro lado da linha rasurou o breve silêncio:

- Quis dizer, senhor, que existe um cadáver de um desconhecido em sua residência? É isso?

A princípio não houve resposta. Pensou melhor. Mesmo assustado, preferiu desligar e refletir sobre o que ocorria. Intrigou-se com aquela situação. Precisava pensar numa possibilidade plausível:

Teria sido um assassinato? Alguém tentando incrimina-lo?

Não! Sua morte não é recente. Há terra no chão, próximo ao corpo e nos trapos que o vestem. Pelo seu estado morrera a uns dois meses, três no máximo. Alem disso, o exumador não possuía inimigos, nem mantinha muito contato com os vivos da cidade.

O que, então? Resolveram pregar uma peça no coveiro recluso? Nesse caso, este corpo pode ser de alguém, enterrado por ele, nesse mesmo período...

Foi então até o cemitério em busca de uma cova qualquer que pudesse estar aberta. Nada encontrou... Talvez a tivessem soterrado novamente! Ora! O cadáver de um homem não haveria de caminhar sozinho até o sofá de sua casa! Devia haver um sentido qualquer para toda aquela bagunça...

Sempre preferiu os mortos. Os vivos são caóticos. “A sociedade lá fora é um verdadeiro caos. Estes últimos, ao menos já estão em paz” - pensava - E agora isso? Um morto acabara de lhe fazer sentir, ao mesmo tempo, todas as marcas de um caos generalizado: medo, dúvida, insegurança, desespero, indiferênça, ambos, quase sempre oferecidos pela sociedade dos vivos...

Tomou a decisão mais lógica: Ligaria novamente, mas desta vez para o Instituto Médico Legal! Eles, ao menos, não reagiriam com tanto estranhamento e mesmo que duvidem de sua queixa, não poderão questionar sua legitimidade, em função do cargo o qual ocupam. Finalmente, após a conversa com o telefonista do IML e confirmada a busca do “inquilino” indesejado, olhou mais uma vez para aquele rosto fúnebre. Trabalhara a muito tempo com os mortos, mas nunca tão diretamente a ponto de vê-los nesse estado... Ao por o telefone no gancho, estava disposto a recolher todo o material de limpeza na cozinha e no banheiro. Provavelmente não sentaria mais naquele sofá, entretanto precisava devolver o aspecto limpo e cheiroso àquela casa. Seguiu primeiro até a cozinha, prestes a reunir o material necessário...

***

Já se foi?

Foi-se de vez ou apenas cambia de aposentos?

Importa-me questionar tais possibilidades, pois irão estas determinar o teor cronológico da minha história: se narrada na integra, sem interrupções, ou recortada em pedaços no tempo e no espaço.

Antes de mais nada, asseguro-lhe, caro leitor, de que não estou morto! Bem... Talvez eu esteja, mas isto pouco importa, pois a morte não implica em contágio e sinceramente, estar morto, exceto pelo aspecto físico, grotesco e fedorento, em que me encontro, não chega a ser ruim, a menos que também faleçam as memórias! Ah, as memórias... Estas sim não deveriam morrer nunca! As boas nos revigoram o espírito, as ruins nos alertam e nos fortalecem. O fato é que ambas transcendem a carne. Portanto leitor, Não é importante se faço-me vivo ou morto, se minha pele está podre ou como pura ceda. Mais valem as memórias vivas em mim, as histórias que estou prestes a lhes revelar... Estas sim interessam, meu amigo e confidente leitor, logo saberás por que...

Ouço barulho! Serão esses os passos incertos do coveiro?

Bem, preservemos por enquanto o nosso mórbido segredo e aguardemos momento oportuno, estimado amigo; o exumador de corpos se aproxima e por enquanto não creio ser bom revelar-me, agora, consciente. Deixo-lhe, contudo, uma prévia do que vivi, tomando emprestados, a voz e os olhos do pobre coveiro que o narrarão por mim - assim espero - mas advirto-lhe que ambos os sentidos, nele, encontram-se ainda regados a altas doses de pânico entre outros sentimentos do gênero. Isto talvez comprometa a veracidade do conteúdo narrado...

***

Ouviu uma voz levemente rouca vindo do aposento. Ao deixar a cozinha retornando à sala, emudeceu! Entrou em choque ao se deparar com o invasor olhando-o fixo e sorrindo, enquanto acompanhava seus movimentos, agora ébrios, por conta do medo, o qual, do pobre funcionário se apossara! Correu para fora, em pânico, respirou fundo, tentou se acalmar e voltou! “Só um delírio, é óbvio...” – Pensou, equivocado: ele continuava lá, sentado, e exceto pelo olhar cadavérico que antes o perseguia, acomodado estava, de pernas elegantemente cruzadas, exibindo gestos quase que diplomáticos... No chão, ao seu lado, um pequeno caderno de anotações velho e tão desgastado quanto o seu suposto dono, que há pouco sequer existia! Um diário, talvez... Quem sabe nele esteja a origem de tudo isso, ou ao menos parte dela... Com certa relutância, a certa distância, arrastou para si o bendito documento com a haste da vassoura que acabara de colher na cozinha e o abriu, disposto a ler o que quer que lá estivesse, desde a primeira página...

CONTINUA...

FCunha
Enviado por FCunha em 10/01/2013
Reeditado em 27/02/2013
Código do texto: T4076426
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