A casa da praia
Dar aula de história era sua paixão. Adorava mergulhar nas páginas do passado, entender o porquê e as motivações dos seres humanos ao longo das épocas, penetrar nos segredos e mistérios dos fatos. Como todo professor, às vezes se frustrava com a falta de interesse de alguns de seus alunos, mas isso não diminuía seu entusiasmo.Viera para Botucatu há dez anos atrás e há nove lecionava em uma escola estadual. Era solteira e morava com sua irmã viúva com a qual dividia o aluguel de uma pequena casa. As duas se davam muito bem e estavam sempre presentes quando uma precisava da outra.
Maria Clara havia pedido ajuda apara sua irmã para o que estava acontecendo. Ela estava tendo uma espécie de alucinação.Via-se numa casa de praia, sentada na varanda olhando para o mar. Podia sentir a brisa roçando seu rosto e podia sentir o cheiro gostoso que ela trazia. Via pessoas andando na areia, conversando.Começava de repente, sem nenhuma causa aparente e poderia durar minutos ou horas. O que havia de diferente, porém, era o incrível realismo da situação. Não havia como ela distinguir entre a realidade que estava vivendo e as tais “alucinações”. Para ela, ambas eram absoluta e absurdamente reais. Quando ela “voltava”, nenhum segundo havia se passado. Lá estava ela retomando sua primeira realidade como se nada tivesse acontecido. Quem quer que estivesse com ela não notava nada. Se estivesse prestando muita atenção talvez, por uma fração de segundo, conseguisse notar uma pequena hesitação em seu rosto.
Fernanda não sabia o que fazer para ajudar a irmã. Ela mesma ainda estava tentando se recuperar da dor que sofrera pela morte do marido. Arrumou dois psiquiatras, tentou marcar consulta para a “Clarinha”como ela a chamava carinhosamente. Maria Clara se recusava veementemente a ver um médico. Em primeiro lugar tinha medo de ser tratada como “louca” e com um monte de remédios fortíssimos. Ela tinha ouvido muitas histórias a respeito. Em segundo lugar, ela tinha certeza de que não era problema médico. Ela desconfiava de algo no plano espiritual ou até mesmo no plano da ciência, algo que ainda não tivesse explicação.
Fernanda não se conformava com a teimosia da irmã. Esta, por sua vez, continuava a ter suas “fugas” para a outra realidade. A sua segunda vida tinha evoluído. Agora sua irmã Fernanda participava também. Estava lá para ajudá-la. Maria Clara estava se recuperando de algum acidente, agora ela sabia disso. Tinha saído de Botucatu e estava numa praia de Maceió. Os detalhes dessa segunda vida eram extremamente vívidos. Ela podia descrever cada milímetro da toalha da mesa, do tecido que cobria a cadeira da varanda, as falhas na parede da sala, tudo.Quando a cena “terminava”, ela se via repentinamente na exata mesma posição em que havia parado na sua “primeira realidade”. Era, como ela mesma dizia, uma experiência surrealista.
Pela primeira vez em meses, Maria Clara tinha passado uma semana inteira sem as tais alucinações. As férias escolares estavam se aproximando e ela começava a se animar com a possibilidade de estar “curada”. Era uma linda tarde de quarta-feira. Clara havia dado algumas aulas de manhã e como tinha a tarde livre, pegou seu carro para fazer umas compras. Acelerou um pouco na avenida pois percebeu que estava rodando muita lentamente e já havia gente buzinando. Assim que aumentou a velocidade, percebeu que logo adiante, na pista contrária, um carro começava a ficar desgovernado. Logo a seguir, atravessou a pista e foi em direção a seu carro. A última coisa que ela viu foi o azul escuro do teto do veículo que estava capotando em cima dela. Ambulância, hospital.
Já fazia quase um mês que Maria Clara estava em coma. Fernanda ia vê-la todos os dias. Naquela manhã, quando entrava no hospital, passou pela sua mente a ideia de que talvez nunca mais pudesse conversar novamente com sua irmã. Por isso foi uma total surpresa quando, um pouco antes de chegar ao seu quarto, uma enfermeira veio sorridente encontrá-la, dizendo:
-Ela acordou, ela acordou! Hoje de manhã, às seis e trinta!
Fernanda teve de esperar quase duas horas até que pudesse entrar. Os médicos estavam fazendo exames, testes. Três dias depois voltou para casa. Tudo estaria perfeito se não fosse pelo fato de que sua memória não era a mesma. Havia muita coisa de que ela não se lembrava. O médico do hospital acreditava que ela voltaria ao normal. Era necessária muita paciência. Clara era tudo que restara de família para Fernanda e paciência era o que não iria faltar. Não havia muito a fazer senão esperar, tomar remédios todos os dias e fazer exames a cada 15.
Um amigo de Fernanda um dia sugeriu a ela que talvez fosse bom para as duas mudar um pouco de paisagem, respirar novos ares. Afinal as duas haviam passado por tempos difíceis. Ofereceu sua casa, que não estava usando, numa praia do Nordeste. Fernanda falou com o médico, que não se opôs, comprou as passagens e lá se foram as duas para suas “férias”. A casa era linda e confortável. Instalaram-se, saíram para fazer umas compras e dormiram lá a primeira noite. Na manhã seguinte, tomaram um belo de um café e sentaram-se na varanda.
De repente Maria Clara começou a falar para a irmã:
-Fernanda, agora eu entendo tudo. Esta é a mesma casa das minhas “alucinações”. Detalhe por detalhe. Posso dizer para você tudo que está no quintal lá atrás. Você pode ir lá e conferir.
Fernanda sentiu um calafrio. Era verdade, ela também começou a se lembrar das descrições que Clara fazia antes do acidente.
-Você está vendo aquele senhor de camisa amarela passeando na praia? Eu conversei com ele diversas vezes. Ele é aposentado agora mas vivia no Rio de Janeiro. Tem dois filhos casados e três netos. Sua esposa morreu no ano passado. Seu nome é Alfredo. Alfredo Martins.
Fernanda estava chorando. Ela também se lembrava do senhor Alfredo. Maria Clara falara dele inúmeras vezes.
Embora de uma maneira misteriosa e inexplicável, as coisas ficavam claras agora. As duas “realidades” de Maria Clara por fim se encontraram.