O DILEMA DA PRIMEIRA-MINISTRA

(Este conto é uma proposta de uma oficina que junta personagens inusitados como o papa João Paulo I e a primeira-ministra Indira Gandhi)

Indira Gandhi atravessou o corredor iluminado, observando o jardim. Estremeceu, tinha consigo que alguma coisa fatídica estava por acontecer. Mas ultimamente, sua vida estava recheada de eventos surpreendentes. Examinou-se no espelho, próximo à porta, ajeitou com as mãos, a ghaghara, saia longa e menos pretensiosa do que o sári e acolheu o véu à cabeça, o significativo odhini, que produzia uma expressão mais resoluta e misteriosa. O véu salientava seus olhos negros e grandes, e seu nariz alongado causava um ar de sapiência estudada. De todo modo, talvez a situação exigisse tais doses de vaidade.

Quando chegou à sala e avistou as duas figuras na penumbra, teve um sobressalto. Um dos homens levantou-se e se acercou dela, apertando-lhe a mão, amistoso. Era o emissário da Mossad, chamado Hersch. Ela, entretanto, não conseguia desviar os olhos do outro homem, cuja fisionomia quase se escondia na penumbra.

Hersch adiantou-se para cumprimentá-la, intrigado por deparar-se com uma mulher assustada. Passou a mão imensa pelos cabelos ralos, apertou os olhos azuis que pareciam disparar das órbitas e perguntou: - Conhece-o, não?

_Sim, evidentemente. Mas como é possível isto?

Neste momento, o outro se aproxima lentamente. O cabelo grisalho alinhado para a direita, os olhos apequenando-se atrás dos óculos, ante a fisionomia alegre, o sorriso denso. Vestia um terno preto e o colarinho da camisa fechado.

Indira puxou o véu um pouco para trás e estendeu-lhe a mão.

_Não posso acreditar, não consigo entender como o senhor está aqui.

_Quando Irmã Vincenza veio trazer-me o café da manhã, com o seu afável “Buongiorno, Santo Padre” e eu não respondi, muitos também não acreditaram. Meus asseclas, ao contrário pensavam que sabiam tudo. Quanto à V. Exª., é preciso crer além do que vê, fundamentada nos sentimentos – e sorriu aconchegando-lhes as mãos nas suas. Indira se recompôs e por um momento, esqueceu toda a dúvida e temor.

_Por favor, V. Santidade, me chame de Indira. Se tenho um milagre em minha casa, em meu País, deixemos de formalidade – e se voltando-se para Hersch – O emissário também deve ter uma revelação importante, para chegar a este extremo!

_Senhora, o Santo Padre tem muito mais a dizer do que eu! Como mensageiro da Mossad, a minha missão é salvaguardar as comunidades judaicas na Índia, o único país onde não sofremos discriminações. E a senhora sabe, a religião mulçumana está crescendo muito na Índia. E pela paz, fui convencido a vir aqui!

_Mas ele não está...?

_E quem não está, não é mesmo, nos dias de hoje, onde há tantas traições.

Ele os interrompeu: _Alguns dias atrás, o 17 de outubro seria meu aniversário. Atualmente tenho outra data a comemorar. É a impermanência da vida, como refletem os hindus.

Silenciaram. A Primeira-ministra até tentou ser razoável, mas aquela situação surrealista produzia uma euforia que a deixava com a mente agitada. Não sabia se oferecia um chá, se chamava a criada ou se os ouvia com fascinação. O que achou mais fácil foi pedir o chá.

João Paulo I serviu-se com absoluta calma, gestos pausados, delicados. Seu olhar pousava nos objetos, nas luzes que ora sustentavam o leve rubor das faces de Indira, nos gestos ansiosos de Hersch, como se pretendesse ajustar neles o olhar que os vislumbrava. Um olhar apaixonado, vibrante, que não se coadunava com a insensatez dos tempos. Indira tomava alguns goles, sôfrega, ouvindo a declaração do emissário, que iniciara a conversa.

_Não se preocupe, que meu amigo Luciani, ele permite que o chame assim, me induziu da maneira mais segura. Surgiu como um frágil foco de luz, quase a chama de um vela, que foi se fortalecendo, até se tornar uma luz densa e arrebatadora – o papa sorri, dizendo que o emissário tem a capacidade de acomodar tudo numa caixa padrão e sempre o conteúdo é maior do que o invólucro – na verdade, V. Santidade sabe do que estou falando. Quando me apareceu, eu não tinha o sentimento do que realmente deveria fazer.

_Mas essa expectativa se refere ao meu país? – perguntou Indira, com a voz enérgica, ainda respingada pela emoção. O emissário foi conciso:_Podemos afirmar que é de uma abrangência mundial.

_Então encaminhemo-nos ao meu gabinete. Na verdade, devia tê-los convidado desde que chegaram.

_Se não se importa, Senhora, ficamos por aqui. Ao menos, que haja a impossibilidade do sigilo – asseverou o emissário, abandonando, cauteloso, a xícara sobre a mesa.

_Meus guarda-costas da etnia Sikh cuidam de meus negócios e de minha vida. Eles tem a disciplina como eixo principal de sua crença e de sua profissão. Tenho absoluta confiança neles. Acho porém, que no escritório ficaríamos melhor acomodados.

Hersch suspirou, angustiado. _O que tem a dizer, meu amigo Luciani?

_Que a oportunidade se aporta. O que temos de fazer não deve esperar.

_Nós viemos, naturalmente por um motivo especial, mas deixarei que meu amigo mesmo a convença – aponta para o papa que fisgava um doce com a ponta do garfo.

_Está bem. Estou ansiosa em ouvi-lo.

_Talvez o que tenho a dizer-lhe não mude o curso dos acontecimentos, pelo menos, não a curto prazo. O essencial, no entanto é saber a verdade e a verdade está acima de nosso conhecimento. A verdade é única. Não existem duas verdades. Por isso, a verdade, vem do alto e a mentira é dos homens.

Indira ocupava seus pensamentos e coração naquele encontro e no resultado que produziria em sua vida.

_Há duas maneiras de encontrarmos a verdade: a primeira é abrir o coração e deixar que ela flua do alto, sem a nossa participação física. Na adoração, na entrega do espírito, na meditação, no deixar-se envolver nas mãos de Deus. A segunda, é agir de acordo com a lei, com as condutas de moral, de honestidade, bondade, de piedade, de integração com as conchas, com os animais, com a natureza. Deus não está apenas no sacrário, ou na comunhão, ou no sacrifício da missa, mas na natureza, nos pobres, nos que vivem à revelia da sociedade, até nas pedras.

_V. Santidade acredita nisso... meu Deus, fala como um hindu!

_Sou a favor da vida, da verdade.

_Mas V. Santidade me deixa confusa. Não veio aqui para discutir religião?

_Para ser sincero, não falei de religião.

_E o emissário, o que tem a dizer? – alonga o tronco na direção de Hercher, apoiando os cotovelos na mesa.

_Não queremos que V. Exª. perca o poder para os conservadores. Os mulçumanos ratificam o ódio pelos judeus, além disso, os conservadores de ultra-direita entregarão a Índia à Inglaterra, através da dependência econômica. O governo se submeterá aos interesses das classes superiores, dos donos de terras. Os poderosos terão preferência aos partidos organizados.

_Um me fala de política e o outro de religião!

_Não, do encontro com a verdade, que vem de Deus.

_Mas então?

_Vim aqui para que o movimento que apóia os miseráveis não pereça. Que o slogan de 1974 garibi hatao seja reativado. Que a Índia dispense o apoio internacional e execute o seu próprio desenvolvimento social. Que não haja ódio entre doutrinas, mas a união entre os filhos de Deus. _E como resolver esta questão, Santo Padre? O senhor tem uma solução?

_A solução depende do seu pedido de perdão para os representantes da religião Sikh.

Indira chacoalhou a colherinha entre os dedos. A observação era absurda. Esquivando-se de qualquer agressividade, porém, perguntou com absoluta paciência. _Por que V. Santidade me pede isso?

_Porque é a única maneira de evitar o derramamento de sangue que está por vir. Tal como Irmã Vicenza em meu leito de morte, V. Exª. desconhece o destino do homem, as tramas que o envolvem.

_ Para que o destino da desavença e da destruição não se cumpra, a senhora deve estender a mão aos sikhs, pedindo que a perdoem pela invasão ao seu templo sagrado – e antes que ela tentasse argumentar ao seu favor, ele prosseguiu, enfático – sabemos que foi uma tentativa desesperada de trazer a paz à Índia, impedindo que o líder dos separatistas desestruturasse a nação, mas a que preço, não?

Indira replicou, desolada: _É uma humilhação! – seus olhos estavam marejados e desiludidos. João Paulo I, esboçava um sorriso afável, enquanto falava, identificando uma aura de santidade que transtornava ainda mais o coração perturbado de Indira. Assim, ele completou o tema, com afável delicadeza.

_Talvez a missão seja inóspita aos sentimentos humanos, mas elevada perante os desígnios divinos. Trata-se de uma demonstração de humanidade, de que a filha principal da Índia não é somente a Primeira-ministra, mas uma cidadã solidária, que respeita todos os seus conterrâneos, sem ver-lhes a casta ou a inclinação política ou religiosa. Sabe, Irmã Indira, a vida não tem sido fácil para eles também. Para todos que lutam pela liberdade ou o que considerem liberdade. Se V. Exª luta pelos pobres, pela socialização dos benefícios da terra, das riquezas, deve lutar também pelas liberdades individuais.

Num esforço extremo, a estadista supera a mulher: _A mando de quem vierem aqui? Querem que eu me aproxime dos sihks e peça perdão? Mas nossas relações são de paz, vejam os meus agentes que pertencem esta seita!

O emissário e o papa se entreolham, acenando coisas que talvez os seus corações trouxessem na bagagem. Ela observa o Santo Pontificie e de repente, seus olhos se transformam, como se a revelação lhe saltasse pelas órbitas. Seu coração abalado a faz recuar, levantando-se rápida em direção ao corredor envidraçado. Lá fora, do outro lado da residência, o jardim tão bem guardado pelos agentes.

Volta-se para os dois que já não estão juntos. O papa folheia algumas páginas da Bíblia, que o emissário lhe entregara. Ela aproxima-se e pousa a mão sobre a bíblia, reluzindo a ametista no anular. _V. Santidade pretende indicar-me um caminho! Agora, sinto que as coisas estão aqui, na minha mente, no meu coração. São eles... eles me trairão. Assim, como o senhor previu a sua morte ...

_Minha filha, quando nos afastamos da verdade, buscamos a vingança.

Volta-se para o emissário. _ A revelação era esta? – ele abre os braços, mostrando que não há nada a esconder.

_E como sabe?

_A senhora mesma afirmou. Veio dele, do amigo Luciani.

_Mas então, que devo fazer? Se pedir perdão, apenas para me livrar da vingança e fugir da morte, não serei digna para a vida. Estarei apenas abreviando a minha ida, mas faltarei com a verdade que o senhor propaga.

_Mas por outro lado, evitará o derramamento de sangue. Evitará que a Nação se abaixe ao colonizador imperialista, que o povo seja esmagado na miséria, que o capitalismo irracional destrua os benefícios alcançados, impeça que os judeus sejam mais uma vez expulsos de seus nichos.

Neste momento, Indira se encaminha até a mesa, juntando-se aos dois. Abaixou a cabeça, melancólica. Suspirou. Perguntou ao emissário.

_Quando será?

_ V. Exª tem de se apressar.

_Tão pouco tempo assim?

O velho papa ouvia o diálogo, alisando suavemente a página de um salmo. Quando Hersch perguntou o dia, Indira retirou um pequeno calendário da gaveta da mesa. Ele releu a data por duas vezes. E na segunda vez, completou: _30 de outubro. Deve ser amanhã. O ator inglês já chegou?

_Peter?

_Sim Peter Ustinov. Você não deve ir ao jardim sob hipótese alguma, amanhâ. Esqueça a entrevista.

João Paulo I levantou-se, deixando a Bíblia aberta sobre a mesa e se aproximou de Indira. Abraçou-a e a abençou ante o olhar emocionado do emissário. Sabia em seu coração que ela estava convicta. Indira ratificou a certeza do sumo pontífice. Sim, pediria o perdão reconciliador.

Neste momento, o emissário foi até a porta principal e pediu que um dos agente entrasse na sala. Indira o olhou petrificada. Seria ele, o homem que a mataria? Perguntou ao papa, o que significava aquilo? Teria chegado a sua hora?

Ele sorriu sem acrescentar nada. O homem aproximou-se e estendeu a mão à Primeira-ministra. Ela recuou alguns passos, mas deteve-se, paralisada. Seria o seu fim, a previsão se antecipara? Estaria ali, encomendada a sua morte? O que queria aquele homem e o outro guarda-costas que acabava de entrar?

_Nós queremos a paz, antes que peça perdão, nós também pedimos, pelo derramamento de sangue que também causamos. Queremos partilhar da mesma paz que V. Exª pleiteia.

Indira Gandhi estremeceu. Voltou-se para o jardim e sorriu. Na noite seguinte, proferiu o discurso mais lindo e emocionado, que lhe valeu por presságio, em toda a sua história: “Não me importa se perco a vida ao serviço da nação. Se morrer hoje, cada gota de meu sangue revigorará a nação.”

Somente Hercher sabia que ela descobrira o dia de sua morte e por isso, fizera um vaticínio tão preciso. Entretanto, a esperança de que não se concretizasse fora inabalavelmente destruída pela vingança do homem. O papa convencera Indira, mas o coração emperdenido do antagonista não soubera compartilhar do mesmo ato conciliador. Somente o emissário Herscher sabia o quanto ela fora enganada, não por ele, nem pelo papa, mas pela bestialidade humana. A verdade está no alto, não no homem.

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 29/12/2012
Reeditado em 06/01/2013
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