O Mundo Sem o Dinheiro
Ao lançar mão da pena e iniciar esta história que trago dentro de mim, impulsiva e efervescente, fico a imaginar uma melhor maneira de transmitir, aos que irão travar contato com ela, como seria o mundo em que vivemos, transformado pela visão que me apossa nesse momento. Inconcebível para certos tipos de mente e, ao mesmo tempo, perfeitamente factível a outros que, por isso, tornam-se o seu oposto, tal transformação traria como benefício muito mais prazer, muito maior felicidade. E o sofrimento seria coisa do passado.
O contato com a realidade atual causa perplexidade a quem, como eu, espera com avidez e otimismo um mundo assim. A era de contendas, em que alcançar cinquenta anos de vida era considerado fato extraordinário, ficou há muito para trás, é verdade. Perecer pela espada, em um contato corpo a corpo, ou assolado pela peste endêmica eram exemplos tão comuns de morte como é hoje deixar esta vida acamado em um leito de hospital, embora exceções existam aos montes, indiscutivelmente. Por outro lado, ao vivenciar o panorama, vergonhoso e alarmante que desfila diante dos meus olhos incrédulos, a revolta interior e a indignação só não são maiores do que a ânsia de registrar no papel o que sinto e acredito.
O que o homem não faz pelo dinheiro! Ficam para trás, em segundo plano, o respeito ao próximo e a si mesmo. No momento em que me dedico a escrever estas linhas, chegam ao meu conhecimento, através da imprensa, que nunca deixa escapar a chance para um bom e lucrativo destaque, notícias de acontecimentos de arrepiar os cabelos dos nossos antepassados. São denúncias de um roubo aqui, um desvio de verbas ali e outro acolá.
As somas relatadas são incalculáveis e os nomes dos envolvidos predominam com tal evidência na mídia, que eles se tornam, da noite para o dia, as figuras mais faladas nos quatro cantos do país. Se já eram conhecidos, tornam-se, daí em diante, famosos e, não é de se estranhar, respeitados. A forma como conseguiram o seu intento, sutil e infamante, dificilmente vem ao claro conhecimento da sociedade. Por serem pessoas de influência e ocuparem cargos de confiança e decisivos para a nação, são, digamos, poupados de uma investigação severa e exemplar, fruto da própria legislação, cheia de falhas.
A disparidade entre o mundo dos ricos e o mundo dos pobres chega a ser assustadora em muitas partes do planeta. Habitado por seres humanos. Feitos da mesma matéria. Vivendo sob o mesmo sol. É certo que diferenças vão sempre existir no terreno da inteligência e da criatividade, somadas às condições naturais de cada povo e local. Se não levássemos isto em consideração e situássemos o ser humano numa escala única, o dinheiro, como simples meio de troca – e ele, na verdade, não passa disto – perderia totalmente o seu valor intrínsico, pois não haveria nada a ser trocado. O homem já teria tudo, o que na verdade já ocorre, como sempre ocorreu.
Não sei se seria fácil ao caro leitor imaginar alguém nesta situação. Tentemos supor, então, uma pessoa no outro extremo do caso. Alcançou tal estado em sua existência que o dinheiro passou a não ser mais problema para ele. A fase de sua vida que mais interessa a esta narrativa ele a viveu na primeira metade do século vinte. Conheci os detalhes que me impressionaram sobremaneira, lendo sua auto biografia.
O mundo que Jack Richards – era este o seu nome – tentou idealizar com sua magistral inteligência foge inteiramente aos padrões comuns de uma sociedade tal como a conhecemos. Numa bela manhã de domingo, no auge da primavera de 1936, Jack decidiu pensar no que tinha sido sua existência até aquele dia. Despertou mais cedo que de costume, sentindo-se cheio de energia e bem estar. Às vésperas de completar meio século de vida viu-se extremamente rico e totalmente despreocupado em relação a pro blemas de ordem financeira. Era, na verdade, um privilegiado.
Sua fortuna, inimaginável e estupenda, encostara, naquele ano, na casa dos onze dígitos. Ou seja, de acordo com o último balanço, possuía, em bens, ações imobiliárias, participações nas 28 empresas do grupo a que pertencia, entre outros investimentos milionários, a cifra de 11 bilhões de dólares, os quais cresciam e se multiplicavam a cada movimento dos pulmões que fazia para respirar ou dos pés para caminhar.
Não saltou imediatamente da cama como sempre fazia, mas saboreou os minutos seguintes bafejado pelas primeiras investidas da brisa primaveril que, sem pedir permissão, invadia o aposento e fazia tremular o cortinado branco da janela. Nancy, a esposa, ainda dormia. De costas para ele. Com o rosto enfiado por baixo do travesseiro azul de espuma. Algumas mechas de sua comprida cabeleira loura descansavam sobre uma das mãos de Jack que gozava a textura de sua maciez. Ela despertou, como era de se esperar e, ao vê-lo e sentir suas carícias, retribuiu com um sorriso. Ante a surpresa de notá-lo ainda na cama, disse:
– Não me lembro da última vez que o vi ao meu lado ao acordar. Será que estou sonhando ou hoje é mesmo segunda-feira? – Sentou-se e olhou o relógio dourado que tinha no pulso.
– Hoje é mesmo segunda-feira, querida – disse Jack, beijando-lhe a testa. – Porém, diferente de todas as outras.
Levantou-se, pondo-se de pé com um movimento ligeiro e repentino.
– Pegue as crianças e arrume as malas, vamos viajar.
A mulher, entre surpresa e alegre, ao esboçar o gesto de que ia falar, foi interrompida pelo telefone que soou naquele momento. Ainda encarando Jack com seus grandes olhos verdes e sem levantar da cama, esticou o braço para alcançar o aparelho cinza sobre o criado mudo. Do outro lado da linha, Gregory, o presidente da GWC Mineradora, e um dos maiores fornecedores de algumas empresas de Jack. Ao passar ao marido o fone, a surpresa de Nancy foi ainda maior.
– Diga que estou ocupado, invente qualquer desculpa. Não quero falar com ninguém durante todo o dia de hoje.
Assim seria no decorrer das próximas horas. A cada ligação recebida, a criatividade de Nancy fazia-se atuante, rechaçando todas as tentativas de um contato com o esposo. Foi uma manhã singular. Barbeou-se e tomou banho com indizível pachorra, trocando a rotina do noticiário sagaz e preocupante pelo prazer de ouvir no rádio suas canções favoritas. Brincou com Bill, o filho caçula e, abraçado à mulher, foi com ela à venda, de onde trouxe pão e algumas fatias de queijo para o café. Na volta, atravessou a rua, distanciando-se do jornaleiro e da tentação imposta pelas manchetes inalteráveis.
Às quatorze horas, ele, a esposa e o casal de filhos encontravam-se entre as pessoas que se alinhavam na fila em frente ao guichê de número doze do aeroporto internacional de Yellow Rock. Dirigiam-se ao pequeno povoado de Mount Ceasar. Jack possui nesta região enorme fazenda, adquirida mais para lazer do que para investimento, já que carregava ali toda a energia gasta em sua dinâmica vida de empresário. Duas vezes por ano ou mais, se dependesse das insistências de Nancy, reunia a família, fugindo de suas responsabilidades rotineiras. Sentia-se, assim, rejuvenescido. Investira alguns milhões de dólares no empreendimento.
Possuía no local cento e dez empregados. O lugarejo oferecia tudo de que necessita a alma humana quando se vê cansada das tribulações do mundo. Jack era ali outro homem. O que perdia em lucros, se é que ainda se importava com isto, conquistava em anos acrescidos a sua vida. Era cercado pelo belo em suas formas, naturais e matizadas. As árvores eram abundantes, assim como o rio que passava no meio da propriedade.
Chegaram ao final da tarde. O Porsch prateado cruzou o enorme portão de madeira quando os últimos raios do sol, distanciando-se, ao enfraquecer-se na despedida de mais um dia, emprestavam ainda suas derradeiras marcas de luz e sombra sobre a vegetação e o rio. Jack suspirou fundo enquanto desacelerava, ao aguardar a abertura total para sua passagem. Virou rapidamente o rosto e constatou, na fisionomia de Nancy e das crianças, que não usufruía sozinho a mudança e o bem estar. Seguindo a alameda principal, não escondeu o assombro de ver quão crescidos e carregados encontravam-se os coqueiros que margeavam a estrada. Plantara-os há poucos anos, organizando, ele mesmo, quase todo o trabalho.
Uma ponta de nostalgia assaltou-lhe o peito ao reconhecer o descaso que imperdoavelmente submetera o seu pedaço de chão favorito, tantas eram as obrigações e os compromissos do seu inefável estilo de vida. Mas, logo em seguida, alegrou-se pela decisão tomada e pela convicção da mudança que faria ocorrer. Ao longo do caminho, ia testemunhando, enquanto tudo apreciava, a presença imponente do vigor que provinha da vegetação, dos inúmeros sons de pássaros e do arfar das águas. Acelerou, ávido da chegada e da recepção dos que há muito não via.
A enorme casa era em estilo rústico, em três pavimentos. A varanda, avantajada, guarnecia muito bem os seus espaços com sábia decoração. Tapetes luxuosos combinavam perfeitamente com a posição dos arranjos e com a disposição dos vasos. Dois deles, à entrada principal, exibiam abrunheiros que lançavam, quase ao teto, sua vegetação rosácea. O pórtico, maior ainda, sustentado por pilastras de pedra, arrogava-se o direito de comandar a visão, roubando-a a quem tentasse apreciar de longe a varanda. Os telhados sobrepostos, a sacada magnífica, exibindo o belo cortinado de um dos quartos, mais o sótão, sombreado por algumas palmeiras que se insinuavam por detrás da morada, tudo isto visto conjuntamente e a uma distância considerável, tocava o espírito e descansava o coração. Jack acabara de contornar a curva que colocou a sua frente todo o esplendor da mansão.
Contemplar o espetáculo fez despertar em si toda saudade que vinha tentando sufocar. Gastou o resto do dia em visitas a todas as dependências que permeavam as milhas daquele paraíso particular. Foi para cama convicto de que possuía as condições ideais para colocar em prática as suas idéias.
Uma delas seria reunir, no salão principal, e de uma só vez, todos os funcionários, a fim de colocá-los cientes de suas novas funções a partir daquele dia. Gastou quase toda a manhã em seu discurso e obteve apoio esmagador e veemente. À tarde, logo após o almoço, já estava de portas fechadas com os sete homens que seriam seus assessores diretos. Designou um para cada cidade escolhida. Oakland, a primeira delas, recebeu, dois dias depois, e na pessoa do prefeito Terry Altman, o próprio Jack, acompanhado de Nancy e Dennis, seu mais fiel assistente. Foi Jack quem começou falando.
– O que tenho em mente vai surpreendê-lo por certo, mas asseguro que com o tempo, irá compreender e apoiar. Preciso desta cidade, Terry.
– Não sei o que um homem tão rico como o senhor pode esperar dum lugar humilde como este.
– É por isso mesmo que estou interessado em transformá-la no local mais impressionante de que já teve conhecimento. Quantos habitantes possui?
– Nosso último censo acusou pouco mais de 190 mil pessoas. Que ainda estão longe de se sentirem satisfeitas. Temos muitos problemas, a começar pela escassez de mão de obra. As indústrias, embora poucas, carecem de gente qualificada porque faltam boas escolas…
Então, o problema é a falta de investimento, não é isso?
– Parece que sim. E gente com vontade de trabalhar também é o que precisamos.
Jack disfarçou um sorriso de satisfação e falou com firmeza.
– Terry, ouça o que vou dizer, e que fique entre nós quatro aqui nesta sala e mais ninguém. Pelo menos por enquanto. Eu vou comprar a sua cidade. – Sem se importar com a expressão de espanto já estampada nas feições do prefeito, prosseguiu. – É claro que não vou entregar-lhe nas mãos os milhões de dólares em troca da sua mercadoria. Tudo vai acontecer bem devagar e no tempo certo. E quando perceberem, o sucesso já veio para Oakland. E você será peça importantíssima nesta mudança. Pode crer no que estou falando.
E para provar que não estava brincando, negociou com o governo a compra da Real Alumínio, a mais importante indústria da região, renovando toda sua estrutura e mantendo no quadro de funcionários apenas aqueles que se adaptassem às mudanças pré-estabelecidas. E deu certo. Superando as expectativas de Jack. Tanto que, três anos mais tarde, a tal indústria monopolizava todos os negócios do estado de Yellow Rock, tendo ampliado o seu campo de atuação para a produção de ferro e, ao fim de cinco anos, transformou-se em usina de aço. Cada funcionário – que Jack preferia chamar de “meu cooperador” – podia gabar-se de um estilo de vida almejado por qualquer cidadão. Eram respeitados na sociedade e mereciam, assim como seus parentes e indicados, todo crédito e confiança. Isto fez do nome de Jack Richards sinônimo de admiração e, – por que não dizer? – de inveja.
Era, então, o momento de por em prática o que acalentava. Candidatou-se e elegeu-se prefeito e, em seguida, governador do seu estado. A expressão seu possui aí, no caso de Jack Richards, conotação realmente dupla, visto que já era dono de quase 70% de Yellow Rock. Metade dos seus habitantes vivia mais do que satisfeita com tudo o que possuía, e que não era pouco. Não precisavam de praticamente nada para viver. Habitavam com extremo conforto. As iguarias, variadas e abundantes, eram entregues em suas casas quinzenalmente.
As universidades, quase todas públicas, ofereciam o melhor ensino e as fábricas de roupas enviavam às lojas todas as peças convencionais e recebia somente pelos modelos luxuosos ou extravagantes. Os beneficiários de todas essas dádivas só precisavam, em troca, oferecer, com satisfação e vontade, o melhor de si no trabalho que a cada um competia e não havia, tampouco, preocupações com a saú de, pois eram, também, propriedades de Jack os melhores e mais equipados hospitais de Yellow Rock.
Quanto ao restante do estado que, a esta altura, não ultrapassava 30%, Jack aguardava com ansiedade o dia em que também se adaptasse às mudanças que, comprovadamente, eram, para todos, a grande solução e, a depender do seu talento e inconfundível toque de Midas, este dia não estava longe. Vieram as eleições. Embora a constituição não permitisse que se reelegesse, estava tranqüilo, pois sabia que qualquer um que ocupasse o seu cargo, daria continuidade à obra, porquanto, graças a ela, haviam chegado até ali. Não foi, porém, o que ocorreu.
Clark Taylor entraria no caminho de Jack. Prefeito de Lancaster pela quarta vez, conquistara aquela cidade e exercia sobre todos os seus habitantes um respeito imposto pelo medo e pelas ameaças que fazia e que cumpria invariavelmente. Usando de astúcia e ampliando sua fama de mau, influenciou meio mundo, acabando por se eleger, o que para Jack foi um golpe duro e inesperado. Alguns anos se passaram. Houve transformações em Yellow Rock. Com Clark no governo, crimes de suborno, desvios de verbas e outros fatos vergonhosos passaram a manchar o nome do estado.
Todavia, a gratidão pelo inigualável legado de Jack continuava em alta e por isso houve confrontos de todos os tipos, como greves e dissidências, acarretando inúmeras prisões, assassinatos e fugas. Os partidários de Clark Taylor tumultuavam os órgãos de imprensa, influenciando os trabalhos, o que resultava muitas vezes em manchetes truncadas e noticiários falsos e oportuni stas. Numa delas, noticiou-se a aproximação de um enorme abalo sísmico, uma das maiores preocupações da população. Obviamente, não ocorreu, mas, foi traumática a reviravolta que isto causou. Fez com que muitas das cidades, as mais atingidas em anos anteriores, tivessem suas residências evacuadas, numa desordem e precipitação alarmantes. Quando a verdade tomou o lugar da falcatrua, a revolta não teve precedentes e o caos fora implantado.
Como a força do bem supera a malignidade, não foi diferente nesta história. Utilizando o poder do dinheiro para fazer o bem, porque era esta a sua índole, Jack recuperou-se do trauma da derrota ao aplicar em outro estado a sua bem sucedida idéia. Conrad, antes da sua chegada, era uma cidade inexpressiva. Sequer jazia nos planos econômicos de Longriver, estado este fronteiriço ao de Yellow Rock. Jack, porém, fez a diferença em Conrad. Houve reforma geral em todos os setores. Os investimentos superavam as expectativas mais otimistas e deixavam na cidade as marcas das intenções e dos sentimentos de Jack.
A enormidade das cifras e o conseqüente retorno em forma de benefício de todas as espécies, como não podia deixar de ser, trouxe a atenção e o apoio estadual, projetando-o mais uma vez. Longriver tornou-se foco de imigração e cresceu ainda mais. De norte a sul do país o nome de Jack tornou-se sinônimo de progresso e hum anidade. Seus métodos faziam a diferença. A forma como conseguiu era inédita e admirável. Era fácil seguir o caminho. Havendo boa intenção, vontade e amor, acima de tudo. Os que o não apoiavam, viam-no como um socialista visionário e aproveitador. E Clark Taylor era um deles.
Durante a assembléia governamental onde ambos se encontraram como representantes de seus devidos estados, os ânimos se exaltaram, como prova da dura rivalidade entre os dois.
– Está evidente que seus métodos não passam de um punhado de ofertas de coisas materiais compradas com o poder do dinheiro que, para você não é problema – disse Clark em um dos discursos mais acalorados da assembléia. Jack, por sua vez, não deixou sem resposta as provocações do adversário.
– É muito fácil e cômodo simplesmente julgar e acusar quando não se tem talento ou altruísmo à altura. O senhor dever ter notado que minhas intenções não visam outro objetivo a não ser o bem comum. Faça, quando quiser, uma investigação profunda em todas as camadas atingidas pelo meu projeto e verá a satisfação em cem por cento dos casos. Eu poderia, se quisesse, gastar o resto de minha vida no usufruto de tudo que ganhei até hoje. Porém, não teria paz em minha consciência como testemunha impassível dos erros que vem destruindo as nossas sociedades, tanto de sistemas como de certos governantes.
Após este dia, o ódio e a inveja que já existiam no coração de Clark aumentaram de intensidade, menos pelo efeito das palavras do outro do que pelo óbvio da situação. A partir de então, começou a aplicar seu poder, envolto em ódio e improbidade, para aliciar os 70% de Yellow Rock, partidários ferrenhos de Jack. Surgiram grupos criminosos em várias cidades. Eram agora freqüentes não apenas seqüestros, mas, também, incêndios, acidentes inesperados e até explosões repentinas e aterrorizantes. Ao alcançar o ápice da tolerância, como não podia deixar de ser, estourou a revolução; esta foi cruenta e prolongada. O resultado foi a prisão de Clark Taylor. Julgado, foi condenado a um regime fechado de 15 anos, reduzidos a cinco em virtude de sua imunidade parlamentar.
Contudo, o tempo em que passou encarcerado não serviu para que, ao menos, meditasse em suas ações pregressas, causadoras de tantos danos e sofrimentos. Conseguiu, usando de influências que logrou fomentar ainda mais enquanto prisioneiro, aliar-se a partidos políticos adversários de Jack. Pelo fato de não conseguir reverter uma situação enquanto teve chances para isso – a principal, o afastamento de Clark do seu caminho – e entrevendo novos choques causados pelo seu retorno, Jack quis abrir mão desta fatia de Yellow Rock. Propôs ao congresso a secessão e esta veio e, para satisfação de todos, deu-se em paz e harmonia.
Começou então um grande e duradouro período para a alegria e felicidade de Jack Richards. Se houve um paraíso sobre a face da terra, este se situava em Longriver. Sentia-se, ali, a total inutilidade daquilo a que denominam dinheiro. Como símbolo de troca, paga por prestação de serviço ou qualquer outra forma de recompensa, não era ele que entrava em cena, mas a própria força do ato ou da palavra que o acompanhava. Trabalhava-se com alegria, a união era a palavra de ordem. 50% do estado vivia das transações advindas do turismo estrangeiro.
Quem chegasse a qualquer uma de suas cidades com a intenção primária de se divertir e gozar a vida acabava gozando-a muito mais ao vivenciar o verdadeiro espírito do povo. Chegava-se como turista e voltava-se como voluntário. Isto quando não se decidisse ficar de vez, impregnado pela atmosfera magnética da população e pelo ineditismo do comportamento que era generalizado.
A primeira impressão para o turista desavisado ele a sentia ao preparar-se para pagar a sua primeira despesa. O dinheiro que investira para as reservas de passagens e acomodação, tendo sido redirecionado para instituições beneficentes, retornava, bem acima de sua totalidade, em forma de prestação de serviços. E que serviços! Ali estavam os agraciados com a ajuda recebida, ofertando tudo de si para o deleite dos visitantes.
Outra maravilha impressionante eram as belezas naturais das cidades. Muitos milhões de dólares foram decididamente investidos visando este pormenor importantíssimo. Aumentou-se a largura e a capacidade de rios para que abrigassem quedas d’água de estonteante beleza. Desviou-se o rumo de estradas, levando-as a desembocarem nestes locais que viviam apinhados de gentes. Havia, pelo menos, três em cada cidade. Aí, tudo o que pode conceber a imaginação humana estava presente. Desde reservas para a vida selvagem, lagos em profusão, hotéis e parques para todos os gostos, até montes e vales arquitetados e bosquejados para a visitação, repletos de magia.
Apreciava-se, então os jardins que uniam o natural à inteligência do homem. Muitos destes jardins magníficos não possuíam acesso físico, senão aos olhos encantados dos que os apreciavam. A visitação dava-se por teleférico, permitindo uma aproximação razoável, porém m ais do que suficiente para boquiabrir de pasmo e admiração.
Marcante e decisiva foi a adaptação de todos os habitantes de Longriver a um estilo de vida onde não se utilizava dinheiro de espécie alguma. Algo nunca antes implementado, talvez nunca imaginado, tornou-se realidade evidente. De longe, o maior feito na carreira de Jack Richards que, por isso, tornou-se o mais cotado para assumir a presidência dos Estados Unidos. Mas, para surpresa geral, ele não se candidatou. Grande homem de visão que era anteviu as barreiras que encontraria, ao colocar em âmbito nacional, o seu fantástico projeto.
Difícil, senão, impossível, é prever o futuro. Quem poderá nos garantir, caso ele aceitasse a presidência, que não teríamos hoje um mundo totalmente outro? Reconhecendo ser o dinheiro o símbolo da matéria e quase todos os interesses mundanos girarem em torno de sua posse, como a maior parte dos males e dos conflitos surgirem por culpa deste vilão, quão imensa não seria a nossa felicidade se os quatro cantos do planeta se espelhassem em Longriver. Jack provou que isso é possível, mas, infelizmente, não foi muito longe depois de sua morte. Eis como tudo acabou.
Houve grande maremoto no Estado de Yellow Rock, liderado por Clark Taylor. Foi uma catástrofe sem precedentes. O mar invadiu com fúria quilômetros além da costa, levando o terror a várias cidades e, praticamente, riscando do mapa algumas delas. O saldo: milhares de vítimas fatais e outro tanto de feridos. Sem estrutura adequada para dar conta da assistência que se fez urgente, todo o país mobilizou-se, unindo-se na dor e na tristeza. Clark perdeu mulher e dois filhos na tragédia e só sobreviveu por encontrar-se fora em apoio à campanha política de sua filha mais velha. Helen, a filha, encheu-se de admiração e curiosidade por Oakland ao testemunhar a impressionante ajuda e espírito abnegado das pessoas de lá que compareceram em massa a Yelow Rock e, dias e noites ininterruptas, dedicaram socorro às vítimas.
Ao conhecer Jack pessoalmente, por ele se apaixonou. Nem seria preciso dizer que, para Clark, este foi um duro golp e que o afetou profundamente. Ver a única filha que lhe restara unir-se a um dos seus maiores adversários políticos, um homem com quase o dobro da idade dela era-lhe, no mínimo, humilhante. Jack, já viúvo, contava, a esta época, 68 anos e Helen 35. Apesar de tudo, eles se uniram em um feliz casamento que durou por onze anos, até a morte de Jack. Dois filhos ainda vieram para completar a felicidade deles.
Mas, como um grande remédio para quase todos os males, o amor acabou por cumprir, e muito bem, o seu papel também nesta história. Morto Jack, por maior que tenha sido o seu legado, os que ficaram em seu lugar, não suportaram por muito tempo, a velha imposição de um costume já arraigado na alma do homem. Helen, por alguns anos, ainda conseguiu a adesão daqueles que lutaram ao lado do marido e com eles venceram.
Porém, os poucos que ainda viviam, como o prefeito Terry Altman, não suportaram a pressão e desistiram. Mas, foi na pessoa do velho pai, transformado pelas lições que a vida lhe ensinara, que Yellow Rock sustentou por mais sete anos o sonho de Jack Richards. Este homem soube, como ninguém, enfrentar e vencer todos os obstáculos. Mudara completamente, transformado pelo amor. De político tacanho e egoísta num patriota renascido. De um pai vingativo num avô amigo e apaixonado.
Prometeu, ao agora aliado Jack, em seu l eito de morte, que tudo faria para manter viva a missão da qual ele fora pioneiro. A despeito de todos os inimigos que angariou, não desistiu. Ousou mesmo fazer do resto de Yelow Rock, onde fora líder, mas abandonara, um espelho vivo da realidade que conheceu a fundo, levado pelas mãos do destino. As mesmas mãos que, materializadas, atrás de um palanque de campanha política, empunharam a arma de fogo que acabou por assassiná-lo.