As duas mortes de Absirto Alfeu
 
Certamente a grande maioria das pessoas concorda que o cemitério não é um lugar agradável. Todavia há aqueles onde a paisagem pode ser até aprazível, com árvores, lagos e colinas cobertas por um belíssimo tapete verde, sobre o qual se veem postas as lajes tumulares em organizada disposição geométrica, e, nestas, singelos epitáfios, sem nem mesmo um elogio fúnebre. Também existem os mais verticais e arquitetônicos, com diversas catacumbas que são uma pista da situação pecuniária ou afetiva dos parentes dos falecidos que lá jazem. Ali podem ser vistas desde verdadeiras obras de arte, um museu lúgubre, místico e gótico ao ar livre, até sepulcros caiados, cujo simples ornamento é uma rústica cruz de cimento cru.

Absirto trabalhava em um daqueles horizontais, O BOSQUE DOS IPÊS, que, a não ser por um rápido olhar para o solo, não lembraria em nada um lugar soturno. Ninguém imaginaria que ele iria aceitar um emprego num local como aquele, pois sofria de tanatofobia: morria de medo de morrer. Contudo, como executivo desempregado há quase um ano, as contas já haviam exaurido suas economias.  Sem dinheiro, sentia-se mais zerado que seu saldo no Banco: um vazio no peito, como um fruto podre cada vez mais oco devorado por larvas ansiosas.

Não lhe restou outra alternativa a não ser aceitar aquele emprego de gerente de vendas de jazigos no novo empreendimento imobiliário que estava dando o que falar na cidade: o primeiro cemitério que teria um crematório e um funeral com apartamentos confortavelmente equipados, sem contar um lanche requintado de animar as almas de qualquer vivo, preparado por um nutricionista e um chef. Como se não bastasse, para o caso daqueles que não queriam ser cremados, havia a opção de oferecer uma espécie de mumificação contemporânea, por meio da qual se impediria a ação dos gusanos e a posterior putrefação e odores característicos. Enfim, O BOSQUE DOS IPÊS era uma necrópole de primeiríssimo mundo.

No início, Absirto ficou um pouco relutante, lutando contra seu pavor das lápides. Na verdade, a paisagem do local colaborou um pouco para que não ficasse tão temeroso. Mas o que amenizou ou, dizendo melhor, praticamente neutralizou mesmo sua fobia, foi a percepção de que o negócio era bom. Tinha sob seu comando dez operadores de telemarketing que ligavam para as pessoas oferecendo a oportunidade de comprar um jazigo e, verdade seja dita, Absirto treinou-os muito bem, ensinando-os uma técnica persuasiva através da qual convenciam os clientes sobre a importância de se preparar para o destino comum de toda a humanidade. Havia também seis vendedores que trabalhavam no próprio cemitério, confortando os parentes e amigos que apareciam para os velórios e aproveitando a ocasião de fragilidade racional para comprar o imóvel que serviria como sua morada eterna. O fato é que a capacidade profissional de Absirto fez com que ganhasse elogios frequentes do único hierarquicamente superior: o diretor. Não podemos deixar de ressaltar o ganho crescente de comissões sobre cada venda efetuada pelos seus subalternos, além do salário fixo que era bem significativo.

Tudo isso fez com que seu temor dos que já partiram dessa para um melhor virasse apenas um sussurro esporádico e, em pouco tempo, Absirto podia ser visto chegando para o trabalho assoviando uma canção no trajeto do estacionamento ao escritório. Na realidade, a morte foi perdendo aos poucos a cara de encapuzada com foice na mão e ganhado uma fisionomia de sócia com terno, gravata, coisa e tal. Podemos dizer que havia nele até uma sutil alegria inconsciente, quando aparecia algum tipo de epidemia na cidade, por meio da qual a morte mostrava sua cara e a importância de se comprar um jazigo ou utilizar os serviços VIP desse ritual de passagem, aliás, diga-se de passagem, passagem de primeira classe.

Suas contas já permitiam as mais variadas aplicações financeiras, um carro do ano importado, um guarda-roupa novo e acessórios tecnológicos atualizadíssimos. Enfim todo o aparato por meio do qual se sentia vivo diante dos conhecidos e poucos parentes.

Certo dia, Absirto chegou ao trabalho, estacionou o carro na sua vaga privativa, mas não foi assoviando para o escritório, pelo menos de forma audível, visto que todos os velórios estavam ocupados e o cemitério estava relativamente cheio: seus clientes mereciam respeito, principalmente aqueles que estavam sob as flores com as mãos cruzadas sobre o peito. Todavia, em seu íntimo, ressoava a melodia rotineira.

Entrou em sua sala, dependurou seu paletó no cambito, foi à sala do diretor, demonstrou a ele como as metas de vendas foram superadas, voltou a sua sala, sentou-se à mesa, preparou um esboço para a reunião que teria com seus funcionários. Depois foi ao quadro branco, atualizou o número de vendas no mês diante dos nomes dos operadores de telemarketing e colocou elogios ou palavras de incentivo, de acordo com o desempenho de cada um. Sentou-se novamente e folheava a agenda procurando o telefone do gerente do Banco, quando foi interrompido pela secretária:

- Sr. Absirto, tem um senhor aqui querendo falar com senhor. Ele quer comprar um jazigo, mas insiste que tem que ser diretamente com o senhor. Já lhe expliquei que pode conversar com um dos dois vendedores, porém ele não abre mão de que seja com o gerente de vendas...

- Comigo?! Ué, mande-o entrar.

O homem que surgiu à porta aparentava os seus noventa anos: cabelos extremamente brancos, as sobrancelhas fartas e esfiapadas tão alvas quanto a cabeça emolduravam os olhos azul-celeste, as rugas eram bem vincadas  e espalhadas por todo o rosto. O corpo era magro, vestia uma camisa branca de mangas compridas, uma calça azul-marinho, sapatos e cinto de couro da mesma cor; usava no pulso um relógio grande e dourado, possivelmente de ouro bom, de tamanho desproporcional ao do fino braço. Embora a fisionomia geriátrica, o idoso executava passos certos e possuía gestos vigorosos, uma antítese que chamava a atenção de quem o observava assim como acontecia ao se ver o pulso e o relógio.

- Pois não! Entre e assente-se, por favor! – disse Absirto, puxando a cadeira para o velho e fechando ligeiramente o olho com o reflexo do raio do sol que batera no relógio e foi de encontro aos seus olhos. – Qual o seu nome?

- Manuel.

- O meu é Absirto. Prazer, senhor Manuel! Então o senhor quer comprar um jazigo conosco... É uma atitude sábia, o senhor sabe... infelizmente todos nós partiremos algum dia, e podemos fazer essa partida ser o menos dolorosa possível. Nós estamos aqui para ajudar nesse processo. Deixe-me mostrá-lo o mapa do cemitério com a distribuição dos jazigos. Temos preços variados, dependendo da localização dos lotes.

- Não é necessário informar os preços, já decidi que vou comprar um.

- Ah, sim! – Mencionou Absirto surpreso com a convicção do cliente – Vou mostrá-lo então a localização para...

- Qual é o mais caro? – interpelou-o o senhor.

- O mais caro? – Aquele seria mesmo um dia de sorte. Embora não atendesse ao público, aquela exceção lhe renderia duas comissões... – Os mais caros se localizam perto do estacionamento. O senhor sabe... mais facilidade para visitar, encontrar a lápide...

- Quero o melhor deles.

- Bom, temos este aqui, veja! Praticamente ao lado do passeio do estacionamento, não é necessário fazer uma caminhada exaustiva. O senhor pode ver também que bem próximo se encontra alguns bancos, e um chafariz... é como se fosse uma pequena praça, entende? Os parentes podem se assentar, rezar, venerar a memória do falecido. – Disse Absirto apontando o local no mapa aberto sobre a mesa. – Se o senhor quiser, posso levá-lo até lá para ver de perto...

- Não precisa. O senhor acha que esse é o melhor?

- Sem dúvida alguma. O senhor não se arrependerá.

- Vou comprá-lo, então.

- Sim, qual a forma de pagamento?

- À vista, em dinheiro - Falou seco e convicto o nonagenário e depois retirou um maço com notas de 100 que talvez comprariam uma casa. Absirto admirou-se de como não notou o volume daquela imensa quantidade, quando o idoso estava em pé.      

O gerente de vendas não podia acreditar no que estava acontecendo. Quase podia se ver refletindo nos olhos a sinuosidade dos cifrões.

- Ok, realmente o senhor não se arrependerá senhor Manuel, ótimo negócio, ótimo negócio mesmo. Quero dizer, espero que o senhor não precise utilizá-lo tão cedo, mas o senhor sabe como é não é?  Deixe preencher o contrato para o senhor.

- Eu mesmo preencho. Enxergo muito bem, dê-me aqui.

- Ah, tudo bem. Qualquer dúvida é só me perguntar, alguns campos aí nós preenchemos, ok?

O velho pegou o contrato, tirou uma caneta do bolso, certamente de ouro branco, na qual havia gravadas quatro letras de algo parecido ao alfabeto semítico.

- Qual o seu endereço? – perguntou o idoso.

- Meu endereço?! Moro no Jardim Alvorada, conhece?

- Sim, qual rua?

- Rua Leopoldo Gomes, fica perto da faculdade...

- Número?

“Número!? Para que esse homem quer saber meu endereço tão detalhadamente?” Pensou consigo Absirto e, mesmo evitando contrariar um cliente teoricamente  muito rico, perguntou:

- O senhor me desculpe, mas por que quer saber o meu endereço, o meu número?

-  Para colocar no contrato.

- No contrato!?  Não, aí o senhor colocará o seu endereço, entende? " Será que ele está esclerosado?" pensou.

- Senhor Absirto, não estou comprando este jazigo para mim, mas para o senhor. A propósito, qual é o seu sobrenome?

- Meus sobrenome é Alfeu mas... Para mim???!!! Como assim para mim?

- Ora, estou comprando um jazigo para o senhor, não posso?

- Poder pode, mas... o senhor a de convir comigo que é algo, no mínimo esquisito. Qu... quem... quem é o senhor?

- Manuel, creio que já lhe disse o meu nome.


- Sim, mas quem é o senhor? Quero dizer, você não me conhece, ou eu pelo menos não o conheço... Por que compraria um jazigo para mim?

- Presente.

- Por que me presentearia? Nunca fiz nada para o senhor. Desculpe-me, mas nunca o vi mais gordo... Por acaso é alguma brincadeira do pessoal? Esse pessoal tem um senso de humor muito...

- Não é brincadeira, meu caro. É um presente meu. Quero dar-lhe e ponto final. Podemos concluir a venda?

- Desculpe, mas não posso aceitar.

- Por quê?

- Ora, não sei o motivo dessa sua atitude... sua família pode achar ruim... não sei a origem desse dinheiro...

- Você sabe, Absirto, que eu posso processá-lo por suas palavras?


- Me processar???

- Lógico, você está questionando a origem do meu dinheiro.

- Não, Senhor Manuel, não me entenda mal. Você sabe como andam as coisas hoje em dia...

- Meu caro, você questiona a origem de todo o dinheiro que é usado para adquirir os jazigos aqui?

- Não, não...


- Portanto, conclua a compra e aceite o presente. Depois, se quiser, faça com ele o que bem entender. Caso contrário vou ter que tomar as medias cabíveis.

Absirto não conseguiu formular um significado preciso para a expressão "medidas cabíveis" e justamente por causa dessa impossibilidade as duas palavras traziam a sombra de alguma ameaça inconsciente. O medo, então, o venceu e ele efetuou a venda do que seria seu próprio túmulo.

- Como o jazigo é seu, você mesmo acerta toda a papelada burocrática - disse o ancião misterioso.

O gerente de vendas do Cemitério PARQUE DOS IPÊS não acompanhou Manuel até a porta, tampouco o seguiu
com o olhar para obter alguma pista, uma placa de carro ou seja já o que fosse, pois ficou atônito, quase cataléptico diante daquele evento absurdo cujo principal protagonista era ele. Depois que voltou a si, sentiu o filete de suor frio brotando da fronte, escorrendo pelo pescoço até ser absorvido no colarinho. Enxugou as outras gotas com a gravata, pegou o paletó e foi embora sem despedir-se dos funcionários que, pasmados, o viram arrancando o carro cantando os pneus.

A caminho do apartamento, um pensamento o sobressaltou: "e se tudo aquilo fosse planejado, e se alguém quisesse assassiná-lo?". Nem mesmo se deu ao trabalho de pensar numa plausível causa para averiguar a lógica da sua suposição e já começou a ver carros suspeitos com vidros escuros por trás dos quais possíveis homens armados apontavam para seus miolos ou caminhonetes ameaçadoras que se aproximavam à distância milimétrica e depois afastavam como nos filmes americanos, intencionando empurrá-lo precipício abaixo... não seria absurdo dizer que chegou a ouvir um som esquisito semelhante ao cronômetro de uma bomba relógio que talvez fora colocada às escondidas em seu carro. E entre as dezenas de emboscadas que sua imaginação criava, ele, sem perceber, chegou ao apartamento.
 
1ª morte ou quando nossos assombrações nos assassinam
 
Absirto estacionou o carro e saiu por entre os outros veículos e pilastras quase engatinhando, escondendo-se de sombras duvidosas, vultos enigmáticos... enfim alcançou o elevador do qual saiu um pouco aliviado, pois tinha quase certeza que o os cabos que o sustentavam tinham sido sabotados para que ele despencasse fosso abaixo; entrou na sala e fechou a porta atrás de si, apavorado; arrastou móveis, abriu armários,  aguçou os ouvidos para perceber alguma respiração escondida; nada; deveria ligar para a polícia? lógico que não; imagine “Um velhinho comprou um túmulo para mim, quero que o prendam...” foi correndo ao banheiro, olhou-se no espelho; viu um homem em pânico; certamente, o espelho era uma entrada para um compartimento falso e o assassino de aluguel o encarava do outro lado do espelho;  esmurrou o espelho trincando-o; seu rosto parecia uma pintura de Picasso: um olho abaixo do outro, o nariz sinuoso e decentralizado, a boca quase saindo do queixo;  uma hemorragia no punho jorrava, formando um poça no chão;  ele, ofegante,  apunhalou  ainda mais o reflexo grotesco, borrando-o de vermelho; enquanto fitava assustado aquele vitral tétrico, levou a mão à nuca, um gesto inconsciente que fazia, nos momentos de introspecção; quando retornou com o braço, percebeu o sangramento - Sangue! – gritou – Atiraram-me na cabeça! – Agora ele tentava limpar a mão na camisa branca em movimentos desvairados; ao ver a mancha rubra no peito, berrou – Meu coração – e caiu desfalecido.

O corpo foi encontrado quatro dias depois, quando a vizinha sentiu o mau cheiro. Ninguém conseguiu imaginar uma causa para aquele suicídio tão estranho: cortar o pulso com um pedaço do espelho do banheiro?!  Foi enterrado na sepultura próximo ao chafariz que havia adquirido deixando a papelada burocrática parcialmente preenchida. Em cima da mesa do escritório, estavam ajuntadas em retângulo verde, a soma do dinheiro equivalente ao seu último empreendimento.
 
2ª morte ou quando a morte nos torna vivos
 
Quando entrou na sala, afrouxou a gravata, exausto, e deixou-se cair no sofá. Ergueu a cabeça e deu com olhos na sua imagem, no reflexo do espelho do bar. Transpirava. Levantou-se observando a reação idêntica da sua imitação perfeita na lucidez projetada. Pegou uma garrafa de vinho e abriu. Encheu totalmente uma taça e a virou num só gole. Depois outra e outra até a última que transbordou e ensopou o chão. Encarando-se no espelho, ele era um homem que se via pela primeira vez. Sorriu apaticamente e voltou cambaleante, dizendo apenas “Seu Merda” e depois se desmontou embriagado no tapete.

Sonhou.

Estava dentro de um caixão de madeira bruta sem nenhum ornamento. Vestido todo de preto, segurava um iPhone entre as mãos cruzadas no peito. Não havia coroa nem flores nem fita. As pálpebras, semiabertas, conseguiam entrever dezenas de pessoas ao redor da urna. Todas de uma pele pálida azulada e olhos abissais. Absirto, não tendo amigos nem parentes próximos, era velado pelos mortos-vivos, clientes da sua avareza e pretensão. Aos pés da sua esquife, um grupo de carpideiras zumbis choravam, enquanto começavam a enfeitar seu corpo com notas de 100.

Fechou-se o ataúde e no breu onírico, Absirto acordou.

Surpreendentemente, ele não estava com dor de cabeça como acontecia após um porre. Abriu as janelas e fechou os olhos. Uma lufada forte de ar acariciou-lhe o rosto e arejou-lhe os pulmões. Era como se alguém sussurrasse, com hálito de anis , palavras em latim, na ponta do seu nariz.

Ao abrir os olhos, ele nasceu. Deu nome para tudo o que via lá embaixo. Do Banco da Praça ao banco mercantil europeu. Tomou um banho e batizou-se de Absirto Alfeu, o nome que sempre tivera mas do qual se envergonhava.
Voltou a cemitério BOSQUE DOS IPÉS.

No, escritório apagou o nome dos funcionários do quadro de metas, deu-lhes o restante do dia de folga  falando enfaticamente:

- Por hoje, chega de vendas! Abram seus olhos para as outras coisas da vida!

Sentou-se na cadeira, deu um giro de 180º graus e se deparou com um imenso ipê amarelo. Interessante como nunca havia reparado nele antes. Parecia um presente de imenso buquê. Quando morresse, queria flores de Ipê amarelo sobre seu corpo. E que fosse num dia de verão bastante ensolarado. Queria partir dourado.

Mas ainda viveria muito.

Pulsaria.

E visitaria os parentes e os beijaria na testa. E faria amigos para enxergar com outros olhos. E andaria sob a chuva sorrindo de graça. E contaria piadas tolas. E seria politicamente incorreto, às vezes. E se arriscaria. E respeitaria os inimigos, se os tivesse. Mas também erraria, com o prazer de esse fato apontar para o fato de possuir carnes, músculos, tendões e nervos nos quais a incógnita da vida atua.
Foi visitar o seu túmulo. Ao lado da sepultura, ele pronunciava uma reza sibilante, talvez a cantata Ich Habe Genug de Bach.

Depois disse:

- É, eu morri tanto que nasci.
Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 28/11/2012
Código do texto: T4010154
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