O TOCO
O sol ardia. Uma dor conhecida, e que não devia ser ignorada, começava a subir-lhe pelas pernas rumo ao resto do corpo. A respiração também estava difícil, como se o ato de puxar novo ar não lhe trouxesse conforto condizente ao esforço.
Resolveu descansar um pouco naquela praça. Porém o único banco que havia, construído de alvenaria e revestido de cimento cinza liso, jazia sob o sol impiedoso. Nenhum descanso ou melhora podia ali ser obtido. Porém de outro lado da praça, uma árvore simpática produzia uma sombra ainda mais simpática.
E naquela mesma praça devia ter existido em algum dia passado outra árvore de mesmo tamanho e feitio. Não se sabe o motivo, mas esta teve seu tronco cortado a não mais que meio metro do chão. Restou assim apenas o toco ligado à raiz fincada na terra, que naquela hora do dia também gozava a sombra da árvore sobrevivente.
E nesse toco, resolveu sentar-se para tomar fôlego, fazendo-o de banco. E, sentando-se, não havia mais o que fazer que não observar. Viu muita gente passar. De todo tipo. Cães e cadelas também passavam. E, para não ser injusto, não posso deixar de citar um cavalo magricelo arrastando uma carroça entupida de quinquilharia que, para sorte do equino, possuía tamanho menor que a maioria das demais.
Uma criança grande ou um adulto pequeno, como preferirem, passou absorto e pretensioso, com fones enfiados nos ouvidos e um desses troços tecnológicos em uma das mãos, de onde saíam ruídos e fios que seguiam até os fones. Quase trombou com uma mulher de meia idade, com muitas sacolas e poucas mãos, que andava mais apressada ainda. A mulher parecia balbuciar alguma coisa, como se houvesse uma conexão indissolúvel entre sua mente e sua boca, única explicação possível para o fato de seus pensamentos inevitavelmente se converterem em palavras, ainda que inteligíveis.
De outro lado, seguia outra mulher, mais nova. Calça agarrada ao corpo, salto, decote, faziam ostentar seus atributos. Os cabelos eram longos e negros, lisos, não se sabe se naturais. Os olhos? Bem, não se podia vê-los, ocultos atrás de lentes negras grandes. Seguia orgulhosa, mas precisou diminuir o passo ao se deparar com uma senhora cheia de curvas, rugas e anos. As duas tentaram desviar uma da outra tomando o mesmo lado e com isso tiveram, mesmo que por um segundo, de se verem mutuamente. Então abruptamente, como que tomadas pelo susto, retomaram imediatamente seu caminho, a jovem mulher de forma bem mais competente, é claro. Não houve pedido de desculpas por nenhuma delas nem um olhar ou pensamento que se prolongasse mais.
E, sentando no toco, continuou a observar. Um pombo pousou-lhe no ombro, que foi espantado apenas por um arquear de ombro, que voltou depois para o seu lugar de antes. A mulher bonita passou em sua frente enquanto era observada por um rapaz, que torceu o pescoço para acompanhá-la. Ao baixar os olhos e tornar a olhar para frente, o rapaz encontrou um olhar reprovador de outra mulher, esta carente de beleza, que veio em sua direção e lhe tomou a mão puxando-o pelo caminho que queria. Ele pareceu retribuir a reprimenda da mulher com um olhar de constrangimento. Ou seria frustração?
O pombo insistia em pousar-lhe no ombro e era sempre espantado, antes que ali defecasse. Dessa última vez, preferiu espantá-lo com uma das mãos, que depois não voltou mais a repousar sobre a perna. Ela ficou pousada no peito, no rumo do coração. A dor não sumiu nem parou de aumentar, apenas se concentrou naquele lugar.
Agora quem passava era um homem vestido de preto, com gola bem colada no pescoço, enforcadamente. Devia ser padre. Também passou por ali uma prostituta, um assassino reincidente e um doente em seus últimos dias de vida. Mas nada em seus aspectos denunciava sua condição, que pudesse diferenciá-los de todo o resto.
O pombo voltou a pousar em seu ombro. Dessa vez, foi incompetente em espantá-lo e o animal conseguiu finalmente ali defecar, sendo espantado logo em seguida. Levou a mão para poder limpar o local, porém parou-a no caminho e trouxe-a de volta para o peito. Não conseguiria se limpar plenamente. Apenas dividiria o resíduo em diversos locais. Decidiu deixar como estava e conviver com aquilo até chegar em casa e poder vestir outra roupa.
Seus olhos se levantaram e viu a árvore que lhe fazia sombra. O pombo que lhe defecara havia ido pousar em um galho dela. Por um momento pensou quantas vezes aquela arvore deveria ter sido alvo do mesmo ataque. Porém ela não parecia apresentar o menor incômodo. Também não parecia sentir dor. E então sua expressão se modificou denotando inveja e súplica.
Pela praça, as pessoas seguiam seu rumo, apressadas e indiferentes. Gente de todo tipo e história. Uma delas era uma senhora de testa franzida e ar carregado. As mãos estavam juntas sobrepostas sobre a barriga, o que somado à expressão de seu rosto, lhe davam o ar solene e devoto de quem faz uma oração, o que de fato fazia. Rogava desesperadamente por um milagre que resolvesse seu problema e acalmasse seu espírito, mas pode seguir ininterruptamente seu caminho. Nenhuma folha se moveu a sua frente.
Do outro lado da praça, não havia mais ninguém sentado no toco, porque também não havia mais toco. Havia, no entanto, duas arvores que faziam sombra sobre grande parte da praça, inclusive sobre o banco de alvenaria, revestido de cimento cinza liso. A transformação ocorrida em fração de segundo não foi notada por ninguém.