Ontem
Ainda ontem eu passei por aqui, olhando as ruas por trás de um pára-brisa embaçado. Vi pessoas desconhecidas de cabelos compridos sentadas no meio-fio, tomando chuva e cerveja. Outras corriam de um lado para o outro na calçada, gritando palavras incompreensíveis. Vultos espreitavam por trás das cortinas, mas as portas das casas estavam todas fechadas. Vi uma sereia rolando pela grama de um quintal bem zelado. E um velho, de braços cruzados, olhava tudo por baixo de uma capa preta.
Ainda ontem parei naquele bar onde íamos beber para confortar a dor. As pessoas me olharam com espanto, um garçom embriagado me ofereceu conhaque com salsicha, e a rodinha de samba acabou no ano passado porque o pandeirista morreu num acidente de trânsito. Percebi que eu não conhecia aquele bar.
Ainda ontem vi seu irmão por aí, enfrentando redemoinhos e maremotos. Vi também o zelador do colégio, sofrendo solidão numa cadeira de rodas. Vi as meninas que a gente paquerava nas tardes vazias de domingo, todas sentadas nas cadeiras molhadas da varanda. Estavam descalças, esperando o nada que vinha de lugar algum.
Uma pessoa passou por mim e me pediu um trago. Um vento forte me obrigou a procurar abrigo. E então eu percebi que muitos telhados haviam sido arrancados. Perguntei quanto ainda faltava para cair a noite, e alguém me respondeu que a noite jamais chegaria. Insisti e perguntei quanto ainda faltava para acabar o dia, e aquele mesmo alguém me disse que o dia jamais nasceria.
Ainda ontem eu andei por tudo, vagando pelos quarteirões, subindo as escadarias dos prédios, tentando encontrar o que eu perdi há muito tempo. Só que cansei.
Ainda ontem olhei a cidade inteira da sacada de um edifício. Tinha certeza que eu ainda poderia ver você. Mas as luzes estavam todas apagadas.
Voltei tarde.