They love Lucy

 
"A medicina cria pessoas doentes, a matemática, pessoas tristes, e a teologia, pecadores."
(Martinho Lutero)

 
    O carro de luxo subiu a rampa do estacionamento do edifício Medical Tower, parou perto da guarita dos manobristas do G2. Dr. Silvio entregou a chave do veículo a um deles. 
     - Bom dia, doutor! 
  - Bom dia! – resmungou o médico enquanto caminhava ao elevador.  Como sempre, primeiro desceria ao térreo. Na galeria, tomaria o café com pão-de-queijo e depois faria a sua fezinha na loteria. Estava com sorte naquele dia: assim que chegou à frente do ascensor, a seta virada para baixo acendeu com um aviso sonoro de um plim e a voz metálica anunciou DESCE.  Era um elevador BestLift 5100, com modernos equipamentos de tração que o faziam movimentar silenciosamente sem que se percebesse o transitar pelos andares. Uma cabine de aço inoxidável com um dispositivo que, na falta de energia elétrica, levava o passageiro ao piso mais próximo de maneira eficiente e segura. Equipamento top de linha, resultado de grandes intelectos da engenharia mecânica e elétrica e, por que não dizer, da arte, se consideramos seu design aconchegante e inovador.  
     Ele entrou, tocou suavemente, com o dedo indicador, um círculo com a letra T e ficou olhando para os números que se iluminavam em azul cintilante à medida que se passavam os pavimentos: G1...P...T...-1...-2... Foi aí que ele se deu conta de que havia algum problema: como poderia o visor apresentar andares negativos? Certamente acontecia algum defeito. Ele apertou a indicação ALARME embora não houvesse necessidade alguma de fazê-lo. Como antes, bastaria tocá-lo levemente. Porém, naquele momento em que a possibilidade amedrontadora e a claustrofobia que habita o inconsciente coletivo o ameaçavam, ele pressionava com tanta força o botão, como se ele só funcionasse a base da pressão. Diante do silêncio do alarme, coube-lhe pular o dedo para o PARE, mas sem nenhuma reação do veículo vertical. Os números continuavam em contagem decrescente -82... -83... – 84...  Ele inspirou fundo, fechou os olhos e disse a si mesmo, mentalmente, “você é um homem racional e inteligente, um médico psiquiatra e neurologista, portanto não tem necessidade de entrar em desespero. Sabe que esta construção não possui uma quantidade absurda de andares subterrâneos. É claro que a melhor ação agora é tirar esse telefone do gancho e pedir ajuda.” Contudo o único meio de comunicação com os dizeres “Acesse em caso de emergência” estava mudo, tanto como ele ficou, depois que tentou também usar o celular e viu que não havia sinal. Segurando o aparelho na mão e olhando pasmo aquela queda no demonstrador digital, agora mais rápida, como o quadro de voos no aeroporto ...-125, ..-126, .-127 -128...Visto que as formas coerentes e protocolares não funcionavam, ele começou a gritar, até chegar ao ponto da histeria. 
     - Alguém ajude por faVOR!... estou PRESO AQUI... tem ALGUÉM AÍ... SOCORROOO!!! 
     -311-312-313...Atônito e afônico, Dr. Sílvio, agora, esperava que algo acontecesse, que sons de ajuda lá fora se tornassem audíveis, que -557...-558... Ele se assentou no piso, pôs a pasta ao lado, o estetoscópio escorregou e caiu no chão -599...-600...-601... Cabia-lhe somente esperar, olhar aqueles dígitos que mais pareciam um cronômetro de segundos estragado, mudando tão rápido,  até que os técnicos o tirassem dali. Verificou as horas. Estanho. Eram 8h45min, as mesmas de quando ele chegou ao prédio. O ponteiro dos segundos estava parado. O relógio não funcionava mais. Estaria acontecendo com ele uma daquelas coincidências inusitadas? Diversos objetos estragando-se ao mesmo tempo? -625...-658... Certamente estaria tendo um sonho daqueles que se confundem com a realidade. Acordaria daqui um tempo e refaria, na vida real, tudo o que já tinha ocorrido na virtualidade do sonho até chegar ao trabalho: levantar, tomar um banho, vestir-se, colocar o estetoscópio no pescoço... A velocidade dos números começou a diminuir -663-664-665-666! 
A porta do elevador se abriu.
     Do outro lado, havia um homem esperando. Alto, extremamente magro,  com gravata borboleta vermelha e um terno preto. Os cabelos pareciam milimetricamente penteados a fixador, curtos e negros. Um bigodinho pequeno a la Hitler sobre uma boca também miúda de lábios finos e descorados. O nariz aquilino dividia os olhos pequenos, fundos  e estreitos. A pele era de um pálido azulado.
     - Seja bem-vindo, Doutor Silvio Pontes Júnior! Meu nome é Caronte, mas pode se sentir à vontade para me chamar de Caro – disse o homem estendendo o braço e apresentado sua mão grande e ossuda. 
     - O quê? O que é isso? Que lugar é este aqui? – perguntou Sílvio desconsiderando o cumprimento. 
     O local parecia uma caverna em formado de abóbada.  Era iluminado por duas arandelas em lados opostos e um lustre de cristal no teto. O chão de rocha dura, lisa e fria estava coberto por um tapete com predominância de vermelho sangue, uma borda larga repleta de flores e um medalhão central que lembrava a cabeça de um leão. A mobília era composta de  uma cadeira antiga, de madeira brilhante ricamente adornada com motivos extremamente pequenos e perfeitamente talhados, porém indecifráveis à distância; o assento e o encosto eram de veludo vinho, este com um brasão de um dragão cuja língua saía da boca, envolvia o corpo e formava sua moldura; logo em frente, uma poltrona marrom escura, aparentemente de camurça, parecia um colo confortável. Dr. Sílvio saiu do elevador, mais para se livrar daquela sensação asfixiante do que pelo convite feito pelo magrelo cadavérico que apontava com as mãos a poltrona.
     - Por favor, sente-se! Brevemente o senhor será atendido.
     - Atendido? Atendido por quem? O eu está acontecendo? 
     O alto cadavérico ignorou a pergunta e saiu por uma sombra na caverna.
     Dr. Sílvio olhou para o lustre esplendoroso dependurado no teto, incrustado na rocha. As velas tinham chamas sem uma gota de cera derretida sequer. Seriam lâmpadas? Ele soprou mirando uma delas que flamejou e depois voltou à sua posição imóvel. Contou: 16 velas. Depois desceu os olhos para o chão e ficou observando o desenho no tapete. Peça de valor, isso ele poderia afirmar. Como colecionador de objetos antigos e raros, chegou a viajar para a  Vila iraniana Kirman, conhecida pelos seus tapetes de altíssima qualidade. Já ia analisar a cadeira quando se atinou para a cavidade que deveria existir ali, por onde certamente o tal Caronte  havia saído. Foi até lá e topou com o obstáculo do paredão rochoso. “Certamente estou tendo um sonho lúcido” pensou “melhor mesmo é me sentar e esperar que eu acorde.”
     Assim que se assentou, da mesma penumbra rochosa, surgiu outra pessoa. À primeira vista, parecia um boneco, um manequim de vitrine, talvez um androide. Com um andar lânguido, movia-se como um camaleão. Seus cerca de 1.90m vestiam tudo cinza: terno, gravata e sapatos. Um cinza cuja textura era peculiar, talvez a única que o Dr. Sílvio tinha visto. Todo o traje parecia realmente um agrupamento, uma condensação de cinza, o tecido lembrava uma tessitura de cinzas resultantes de uma cremação: feltro-fúnebre-cinza-claro. Os sapatos eram paradoxais, brilhavam uma luz fosca, os bicos finos semelhantes a espadas. A pessoa se aproximou e tomou assento na cadeira. Na mão direita, segurava uma piteira parecida feita de ônix. Levou-a à boca pálida quase carnuda quase nada pela palidez e puxou um trago. Soltou a fumaça que depois de brincar som os braços do lustre, se dissipou no breu. O nariz, finíssimo, parecia de porcelana, artificial. Dr. Sílvio procurou pelos olhos escondidos na franja de cabelos êneos, curtos e também com a mesma mistura impossível de um fulgor opaco. Porém o máximo que via era duas olheiras que se escureciam em buracos negros amendoados. Tentar fitá-los era como ser sugado de dentro para fora de si mesmo. Dr. Sílvio abaixou os olhos para o tórax daquela exótica pessoa discretamente. Havia seios ali? Sim. Não. A pessoa não era um androide. Definitivamente era um andrógeno. Outra tragada, agora expirada ferozmente para baixo, como um touro numa tourada fungando na poeira da arena. A voz que soou da boca da qual ainda saia filamentos sutis de fumaça, vestígio na arma depois dos tiros, era a de um contratenor:
     - E aí, Sílvio? Fazendo uma anamnese com os olhos?
     - N.. Nã... Não. Desculpe – respondeu acanhadamente, num tom respeitoso sem saber o porque de agir assim –, mas, mas quem é você?
     - Meu nome é Lúcifer, mas pode me chamar de Lucy.
     - Lu... Lu... Lúcifer??? O mesmo nome do Diabo?
     - Sim, meu caro, não só nome, sou o próprio ou a própria, como queira – falou levantando levemente o queixo e soprando mais uma golfada de fumaça para o lado esquerdo. A luz da arandela ameaçou apagar e as velas do candelabro pendente no teto dançaram sôfregas como um grupo de bailarinas anãs ao comando do coreógrafo.
     Seria realmente o demo? O próprio Satanás em pessoa na sua frente? Que besteira onírica era aquela? De onde seu inconsciente retirara aquilo? Ele nunca fora nem um pouco religioso...
     - Poupe-se de indagações, Sílvio! Teólogos e filósofos as têm feito há muito, e pouco descobriram sobre mim. Os que mais se aproximaram foram os sertanejos rústicos, os xamãs selvagens, as benzedeiras banguelas e analfabetas, mas eles não são nada mais do que objetos culturais, seres curiosos para exame da burguesia.  Estão presos dentro da arena tênue, porém impenetrável, do preconceito, portanto nunca vão ter crédito da fração critica urbana sobre o pouco que sabem a meu respeito. Indo direto ao assunto: chamei-o aqui para parabenizá-lo e premiá-lo.
     - Parabenizar-me? Premiar-me? Por quê?
     - Por sua dedicação à nossa causa, ora. Já mataste cinco com a arma mais fina e sutil, a preguiça, e tens torturado e aniquilado muitos com as conspirações com a indústria farmacêutica.
     - Matei? Eu? Mas que brincadeira é essa?
     - Brincadeira? Chama-se: vamos-fingir-que-não-fui-eu. Não se lembra do Sr. Francisco que teve um AVC devido ao tempo que levaste bocejando  no seu plantão? Por pouco não perdeu seu registro. Estive lá no seu julgamento. Dei-te uma ajudazinha. Coisa fácil, não preciso fazer gestão quase alguma do legislativo. São ótimos colaboradores.
     “Dr. Sílvio, Dr. Sílvio, acorde! tem um paciente lá embaixo que perdeu o jogo do lado esquerdo. idoso. os filhos estão chorando e gritando... Diga a eles para terem paciência. estou cansando. já vou, diga que estou indo... Dr. Sílvio, Dr. Sílvio, o homem desmaiou. as filhas estão ameaçando chamar a polícia. já fazem quarenta minutos que vim acordar o doutor. Já tem umas nove pessoas esperando neurologista lá embaixo, elas estão fotografando, gravando com o celular...” 
     - Eu... eu... eu sou ser humano, como qualquer um tenho sono. A culpa não foi minha. 
     - Sim, como qualquer um. Como, por exemplo, aquela imbecil da Dra. Cláudia que fica a tomar litros de café  para suprir sua ausência, tão presente no quarto dos plantonistas. A lucidez dela o condena. Todavia, fique tranquilo, Sílvio. Não te chamei aqui para culpá-lo, mas para parabenizá-lo. Tem que ser assim mesmo, é sucumbindo que te abres para minhas incumbências. Agora, meu companheiro, chegou a vez de seres premiado por mim. 
     - Certamente devo estar sonhando. Isso é um absurdo! 
     - Sabe que não está. É psiquiatra e neurologista. Tem em sua mente o régua rara que mede o cânone entre o sonho e a realidade. Continuemos: além dos infartos e derrames, tenho-o muito em estima, pelo podium  que atingiste como psiquiatra: primeiro lugar em conluio com os laboratórios farmacêuticos. Quantas receitas marcadas. Quantas premiações, viagens, jantares, dinheiro... 
     - Meu Deus! Eu não pedi nada. Eles me deram por que quiseram. 
     - kkkkkkkkkkkkkkkkkk Quanto mais você nega, mais o admiro, simplesmente porque está negando de coração. Não o faz como os psicopatas que não possuem escolha. Muitos transtornados serão perdoados, simplesmente pelo fato de serem como as pedras, não lhes cabem alternativas, mas você é como eu, sabia muito bem que, se esforçasse um  pouco mais, levantasse e jogasse uma água no rosto, estaria lá no pronto atendimento, impedindo que a veia estourasse na cabeça do velho. A pressão dele chegou a 21 por 17, nada que um bom diurético para eliminar sódio e outros fluidos não resolvesse. Mas cada um relaxa e se revela diante dos valores quem tem. Seu valor naquele dia se chamava cama e travesseiro. Cá entre nós, sabemos que no seu caso e no da grande maioria, o Juramento de Hipócrates deveria ser o Juramento de hipócritas. Kkkkkkkkkkkkkkkkkk 
     - Psicose. Isso! – Berrou Sílvio - Estou alucinando! Algum efeito colateral de algo que bebi no coquetel da Pharmacies and Related. Lembro-me de ter bebido muito e depois distraidamente tomei um antiinflamatório. Pronto. É isso. 
     - kkkkkkkkkkkkkkkkkk você é realmente hilário, meu doutor, acha que os mecanismos de defesa do ego só existem nos outros? – Disse Lucy, soltando mais um trago, agora descaradamente no rosto do médico e depois, cruzando as pernas, falou, num tom paradoxalmente solene e teatral: - Agora, meu companheiro, chegou a vez de ser premiado por mim. 
     - Acha mesmo que vou acreditar que você é Lúcifer? Posso estar sonhando, posso estar delirando sim, por que não? Sou psiquiatra. Não há como provar que isto tudo aqui é real. 
     - Ah, há sim. E eu vou lhe provar, para o seu prazer. Mas mesmo depois do incontestável testemunho, você arranjará um jeito de ludibriar-se. Essa é a sua destreza. E aquele que justifica sempre sua mentira é como irmãos xifópagos em  que um testemunha o roubo do outro mas não denuncia, pois o corpo é o mesmo. Seja como for, Sílvio, você tem razão: o fato de ver-me não significa que existo. A mente é a grande enganadora. Afinal os homens não têm orgasmos com criaturas oníricas? E só descobrem depois que acordam? Pois bem. Amanhã, contigo acontecerá o contrário, saberá que teve o privilégio de ser congratulado e recompensado por mim. Ganhará o prêmio recorde acumulado da loteria. No mais, vou-me. Já teve a fração de privilégio para um mero mortal. 

     Essas foram as últimas palavras de Lucy que, literalmente, dissolveu-se num amontoado piramidal de cinzas donde fluiu o último filete de vapor acinzentado.
         Dr. Sílvio viu então a porta do elevador se abrir novamente e a seta para cima acender-se e soar plim. A voz metálica do elevador avisou SOBE. Ele entrou boquiaberto. Os números agora ascendiam. -665, -664, -663... Dr. Sílvio estava quase catatônico como seus pacientes esquizofrênicos. Olhava para o nada sem medo, questionamento ou estranheza, como se fosse um anencéfalo. Despertou-se com a voz avisando TÉRREO.
        Saiu.
     Foi andando pela galeria até chegar ao Delícia de Minas. Pediu o café e o pão de queijo de sempre. Enquanto comia apoiado no balcão da parede, olhava-se no espelho. Pensava na complexidade do cérebro humano: como ele cria peripécias virtuais! Afinal por que tivera aquela alucinação tão nítida? Nunca fizera psicanálise, portanto recorria ao seu considerável conhecimento de semiótica para tentar fazer associações que pescassem algo do seu inconsciente. Não acreditava em nada sobrenatural. Sua atividade mística era parca. No máximo, evitava passar por debaixo de escadas, mais por medo de que lhe caísse algo na cabeça do que por superstição. Terminou o lanche concluído que o problema foi puramente neuroquímico. A mistura da bebida alcoólica com o antiinflamatório... talvez o cheiro forte de tinta devido à reforma no prédio... uma coisa singular, uma reação alérgica, enfim algo com o qual teve contato e que lhe fez ter um surto psicótico que lhe alterou a percepção de tempo, espaço e realidade. Pegou o resumo da sua justificativa, envelopou e deu o caso como encerrado, colocando-o no arquivo morto do seu inconsciente. Satisfeito com o café e com a o autodiagnostico da sua experiência tão insólita. Foi à lotérica e conferiu o jogo. Nada! Remarcou os números e fez a aposta novamente. Já de volta ao elevador, que agora funcionava normalmente, chegou a rir discretamente da experiência absurda que tivera. Quem sabe algum dia a utilizaria como material para algum estudo e assim não aumentasse a possibilidade de se destacar entre os infinitos trabalhos científicos com o reconhecimento dos pares?
   Cumprimentou a secretária e dois pacientes que já o aguardavam: a bipolar e o depressivo.
  Atendeu atrasado todos os 10 pacientes devido aos representantes farmacêuticos que, após fazerem uma exposição resumida dos benefícios comprovados pelo método científico, deixavam com ele um punhado de amostras grátis de remédios e de vantagens que os médicos teriam em prescrevê-los, saindo a puxar suas malas de rodinhas, compartimentos de fórmulas de curas, alívios e efeitos colaterais.
     No apartamento, deitado na cama, olhava o teto como a uma tela; refletia nele a conversa com Lucy e balançava a cabeça. Admirava o cérebro e sua capacidade de produzir realidades. Estaria ele sozinho e todo o restante do universo era uma gigantesca criação sua? Seria sua mente o único ente, o ovo que explodiu em ideias no big bang?
     Dormiu um sono bom, oco, inteiro e restaurador. Sem sonhos. Sua cota onírica já havia esgotado no elevador.
     No outro dia, iniciou a rotina matutina, pegou o estetoscópio, a maleta e foi à Garagem. O trânsito estava tranquilo. Chegou ao  Medical Tower, subiu a rampa do estacionamento, parou perto da guarita dos manobristas do G2. Dr. Silvio entregou a chave do veículo a um deles que o cumprimentou animadamente e recebeu em troca um monótono e quase inaudível “Dia”.  Pegou o elevador e foi ao Térreo tomar o café com pão de queijo, conferir o jogo e refazer sua fezinha.
***
     Seria verdade? Não estaria ele alucinando novamente?
     Dr. Sílvio conferia, com as mãos trêmulas, pela sexta vez, os números do bilhete.
     02 – 03 – 06 – 15 – 33 – 66.  Jogo nº 3111.
     Eram esses mesmo, não havia dúvida. Dr. Sílvio, médico neurologista e agora psiquiatra havia ganhado 51 milhões de reais! Mesmo explicando aos pacientes que a paranoia excessiva era uma doença, colocou rapidamente o bilhete na carteira e olhou de esguelha se alguém havia testemunhado a conferência do jogo. Chegou a notar olhares estranhos, insinuantes, cobiçosos. As pernas cambaleantes. Pensou no que poderia acontecer quando fosse à garagem pegar o carro para ir ao Banco apresentar-se como o mais novo milionário.                               Sequestrariam-no ali mesmo e roubariam-lhe o bilhet; pior: matariam-no e se   apropriariam da sua fortuna.
     Lembrou-se  do ponto de táxi na frente do prédio. Quase correndo, alcançou o que estava no meio numa fila de sete carros.
     - Tem que ser o primeiro, chefe – explicou o motorista.
     “Idiota”- pensou- “poderia pagar R$ 100,00 por essa corrida”.
Agora realmente correndo, chegou ao primeiro veículo.
     - Sede da Caixa Econômica, por favor.
     Não houve problemas. Por mais que ele duvidasse de tudo e de todos, até mesmo da gerente simpática que o atendeu e abriu a conta onde foram depositados os cinquenta e um milhões de reais (ele quase que soletrava o numeral, experimentando cada centavo oculto no valor, estalando os lábios mentais) tudo deu certo. Pegou outro táxi e foi para o apartamento. Ligou para a secretária e pediu que desmarcasse todas as consultas do dia, do dia não! Do mês, do  ano, do século! Aliás, ela estava demitida. Depois seria procurada pelo contador e receberia todos os direitos trabalhistas. Deixou-se cair no sofá. Tinha ainda que olhar como ficaria sua situação no Posto de Saúde da Vila Taiobeiras. Foda-se. Simplesmente deixaria pra lá. Finalmente, ver-se-ia livre daqueles pobres patológicos do posto de saúde. Quantas vezes teve que recorrer ao (já rotineiro hábito) de conseguir um atestado com outro médico para não enfrentar aqueles malucos? Narcisistas brigões, compulsivos acumuladores de lixo, histéricas descabeladas, depressivos patéticos e esquizotípicos religiosos... isso sem contar os casos mais graves de esquizofrenia e bipolaridade que chegavam ao ápice da psicose. O governo distribuía os medicamentos, portanto lá ele não ganhava nada além de sua ridícula remuneração como funcionário público. Por isso a maioria dos médicos desenvolveram a artimanha de trocar atestados para, na realidade, atenderem em seus consultórios particulares. Mas agora estava livre dos doentes. Veria somente gente sadia e bronzeada mas melhores praias do planeta.
     A possibilidade de um mundo amplo e praticamente ilimitado que os cifrões estavam lhe propiciando naquele momento fez com que uma taquicardia surgisse, salientando as veias do pescoço. Não tinha pressão alta, mas naquelas circunstâncias não deveria facilitar. Tomou um antiansiolítico e um remédio para pressão. Não poderia a morte lhe mostrar a foice quando a sorte lhe apresentava os dentes. Pegou o estetoscópio e auscultou a si mesmo.
    Não ouviu nada.
    - Estragou – resmungou, fez um giro com ele no ar como se fosse um vaqueiro e jogou-o pela janela - Foda-se! Não vou precisar mais disso mesmo.
    O aparelho caiu do 15º andar e foi parar num para-brisa de um carro. O vidro quebrou do centro para as extremidades, formando algum parecido com uma teia de aranha. O motorista tentou desviar mas acabou atropelando uma mulher e o marido e depois batendo numa BMW de luxo, onde estavam um homem e a filha.      Chamaram o SAMU e a polícia militar.
    A perícia não encontrou o objeto que causou a tragédia. Um motoboy afirmou que viu uma pessoa de terno cinza abaixando e pegando algo parecido com  um bodoque e colocando no bolso, deseparecendo logo depois entre os veículos, como vapor.
     Devido à demora no atendimento do serviço público de saúde, a mulher morreu. O marido teve um traumatismo craniano e corria o risco de ficar paraplégico. Aguardava nos corredores uma vaga no CTI.
     O primeiro carro possuia seguro e não teve despesas com os danos aos veículos; o dono tinha plano de sáude e aguardava impacientemente que a senha 42 fosse chamada para uma consulta com o ortopedista.
   A filha do dono da BMW ficou traumatizada. Indicaram o psiquiatra Dr. Sílvio Pontes, mas foram informados que o renomado médico psiquiatra não atendia mais.
Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 06/10/2012
Reeditado em 30/12/2012
Código do texto: T3919082
Classificação de conteúdo: seguro
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