Ela acordou no meio da noite, após ouvir, novamente, a voz. Há dias a mesma coisa acontecia: despertava, sempre às três da manhã, ouvindo uma voz que chamava seu nome. Mas logo após despertar, por mais que tentasse ouvi-la novamente, nada acontecia.

Não conseguindo retomar o sono, ela decidiu ir até a cozinha preparar um chá. Chá de alguma coisa. Alguma coisa que pudesse ajudá-la a dormir novamente. Mas quando chegou no topo das escadas, acendendo a luz e olhando para baixo, subitamente teve vontade de cantar. E cantou.

Soltou a voz em uma velha canção dos Beatles, e a voz foi descendo lentamente pelos degraus, ao mesmo tempo que subia pelas paredes, penetrava nas frestas das janelas e saía para o jardim, arrastando-se pelo gramado e finalmente, elevando-se com o vento, indo atingir as outras casas e os outros ouvidos que dormiam. 

As pessoas acordavam, escutando aquela canção dos Beatles, em uma voz maravilhosamente límpida e afinada, e nem ela mesma sabia de onde vinha aquela voz que cantava dentro dela. Só sabia que não tinha como fazê-la calar. Ela dominava-lhe a garganta, impedindo-lhe os movimentos do corpo. Quando parou de tentar lutar contra a voz, deixando que ela a tomasse completamente, a voz começou a fluir também através de seus poros. Cantava, através dos olhos, dos ouvidos e de todas as aberturas de seu corpo. Jamais alguém cantara daquela maneira, tão completamente.

Àquela altura, um grupo de vizinhos vestindo seus robes e pijamas já se enfileirava à porta de sua casa, impossibilitados de dormir e ao mesmo tempo, encantados pela música perfeita que estava sendo produzida. 

A canção terminou, mas logo uma outra começou, agora, uma linda ária. E ela deixou-se cantar, mesmo porque não tinha outra alternativa: a voz não era dela, parecia possuída por uma força arrebatadora que a dominava completamente. E cantava. E nem queria mais parar de cantar. Ela tornou-se a voz. A voz tornou-se ela.

Pela manhã, encontraram-na morta no topo das escadas, com um sorriso leve  e uma expressão tranquila. Morrera de tanto cantar. Morrera feliz.
Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 20/09/2012
Reeditado em 31/07/2015
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