POSSE

Seis da tarde. Penumbra soturna na sala de estar. Resquício de luz refletido na empoeirada tela abstrata de um artista desconhecido. Mal acomodada na cadeira, Lívia o mirava fixa, mas perdidamente, em silêncio sepulcral, como se estivesse em outros mundos.

Sentado diante dela, Cláudio falava em desequilibrada aflição:

– Meu amor, não me olhe assim, como se cansada do meu sentimento! Esmaga-me esse olhar cego, indiferente à minha veneração, ao encanto que sinto por ter seu cheiro no ar, o calor, sua presença. Devo confessar que me angustiava saber que sorria para os outros, falava com os outros, olhava para os outros! Era tomado por uma ira quase incontrolável quando brincava com Julinho, seu irmão caçula. Você se lembra de quando serviu o prato de seu primo antes do meu, no aniversário de Luciana? Quase morri de agonia e me senti um micróbio perdido naquele mundo de gente sem importância. Meus nervos se enrijeciam, passava a odiar com toda a força do mundo, tão-somente por inveja, o artista que dizia admirar, a música que dizia gostar, a fruta que dizia saborosa. Magoava-me seu adormecer, porque não podia entrar no que sonhava. Até o próprio tempo, seu passado sem mim! Ai! Quanto tormento! Como sofria! Mas ficava feliz com sua obediência, com sua compreensão, quando me pedia desculpas por despertar meus ciúmes e se mantinha quieta ao meu lado, recostada em meu peito, dominada entre meus braços, com os olhos fechados. E você repetindo que me amava inúmeras vezes seguidas! Lembra-se? Eu contava as repetições do seu “eu te amo” ao longo do dia. E protestava quando a contagem não superava uma centena. Ah, como eu me orgulhava de ser o dono do seu amor! Eu lhe entreguei minha vida inteira para que tomasse conta! Está e sempre esteve em tudo que me pertence, em tudo que me mantém vivo, mas preciso que também dedique sua vida a mim, somente a mim! Contudo, pouco a pouco, você foi se emudecendo, tornou-se apática, não sai de casa nem mesmo sob minhas proteção e vigilância, não procura a luz do dia, sequer sente fome e sede. Gosto de tê-la assim, de forma tão absoluta, não posso negar, mas converse comigo, Lívia! Converse comigo! Eu não suporto mais este silêncio torturante!

Arrebatado pelo desespero, suplicando, aos berros, que Lívia falasse com ele, Cláudio se levantou abrupto, aproximou-se, pegou-a pelos ombros e apertou-a tanto, tanto, que ela se quebrou. A mulher que seu possessivo amor tornara feita de vidro se despedaçou! Ele fitou as palmas das mãos ensaguentadas, levou-as às faces e caiu de joelhos. Em seguida, deitou-se sobre os cacos, chorando tenebrosamente.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 17/09/2012
Reeditado em 07/07/2018
Código do texto: T3886042
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