O SUSPEITOSO CONTO SOBRE UM CERTO JOGO DE SINUCA
CAPÍTULO UM
ONDE O NARRADOR TENTA NOS CONVENCER QUE O CASO REALMENTE ACONTECEU E, PARA TANTO, COMO SE FOSSEMOS TOLOS NOS MANDA CONSULTAR UM MORTO. CAPÍTULO ONDE SÃO MOSTRADOS OS PRINCIPAIS PERSONAGENS, DE PASSAGEM É LEMBRADA UMA NOVELA DE SUCESSO E ENCERRA COM DIÁLOGOS POUCO INSPIRADOS.
Meu compromisso é somente com a verdade. Os fatos realmente aconteceram como estão aqui descritos embora saiba que existem aqueles que torcem o nariz quando ouvem histórias que a eles parecem absurdas. São os céticos, incrédulos, descrentes que só acreditam no que vêem, alguns até ateus, mas que felizmente pertencem a uma minoria. À eles o meu desprezo. E tem mais! Se a minha palavra não basta então perguntem ao falecido Davi Lapeano, assim chamado por ser oriundo da cidade da Lapa, no Paraná, que poderá confirmar tudo. Homem íntegro, descendente de índios Kaingangs, forte e resoluto embora polêmico, figura lendária, um herói da revolução de 30, com tendência anarquista nunca foi empregado de alguém, jamais usou um par de calçados mas nem por isso deixou de ser merecedor de fé, embora alguns achem que a sua vida esteve longe de servir como exemplo para qualquer vivente com um mínimo de bom senso. Só porque vez ou outra abandonava a família por dias, as vezes até semanas, deixando mulher e filhos ao deus-dará embrenhando-se mata a dentro em busca de uma tal panela de dinheiro que até hoje não se sabe se encontrou, só por isso, repito, é criticado por alguns moralistas de plantão. Mas vamos ao que interessa. Como todos sabem e isto ninguém há de negar, houve um tempo em que os bichos falavam comunicando-se com os humanos usando a mesma linguagem do homem. Alguns até gostavam de jogo. Foi nessa época que aconteceu o que se segue:
Final de tarde de um dia quente, estava um certo Capitão da Aeronáutica no quintal de sua casa em Palmeira, Paraná, em pleno gozo de férias com um copo de conhaque na mão a conversar amenidades com seu cachorro Urso que distraído folheava o exemplar de uma revista semanal. Vale ressaltar que hoje o Capitão é abstêmio mas naquela época era um bebedor inveterado, chegando em algumas ocasiões a consumir um litro de conhaque por dia dando sua respeitável contribuição para o enriquecimento do fabricante e o conseqüente empobrecimento do seu fígado. No interior da casa Dona Leonor, sua mãe, com os ouvidos pregados no rádio e olhos lacrimejantes, ouvia com grande sentimento um capítulo da radionovela “O Direito de Nascer”. Tomada de grande emoção, entre chiados, gemidos, soluços e outros sons não identificados, as lágrimas escorriam-lhe pelas bochechas.
Quanto ao cachorro Urso, além de ser um bom papo gostava de ler jornais e revistas mantendo-se atualizado com as notícias do Brasil e do mundo. Quem vez ou outra passava por ali para um dedo de prosa com ele era um primo do Capitão, que morava nas proximidades.
- Capitão!- falou o cachorro Urso – Me preocupa sobremaneira o modo como as autoridades que governam o mundo agem. Alguns são ditadores e mesmo os democratas não são inteiramente confiáveis. Acho que estamos caminhando para o caos. Concorda?
- Exagero – disse o Capitão – quase todos foram eleitos pelo povo e você sabe, “vox populi vox Dei”.
- Não sei, acho que não concordo com você. O povo seguidamente vota em pessoas erradas. Veja o caso daquele político que desviou uma grande soma da SUDENE, um órgão federal, para construir um ranário para sua mulher. Depois de comprovada a falcatrua para não ser cassado renunciou ao mandato, em seguida candidatou-se novamente e foi eleito senador da República. O que se pode esperar de um político desta espécie e também de quem o elegeu?
- Sou militar, meu compromisso é com a Aeronáutica e não gosto de política nem dos políticos.
- Pois devia gostar, a sua vida está nas mãos da política e dos políticos. São eles que decidem o nosso futuro e o da Nação.
- Você pode ter alguma razão mas este é um assunto pelo qual não tenho interesse.
- Então vamos mudar de assunto. Sobre o que gostaria de falar? – Perguntou o cachorro.
- Sobre nada. O que eu gostaria mesmo era de estar jogando sinuca numa mesa grande, lisa e macia.
- É mesmo? Então vamos jogar?
- Com você? Não! Vocês cachorros não tem habilidade suficiente para enfrentar a nós, humanos.
Ora! Ninguém tem sangue de barata e certas observações acabam se tornando provocações, verdadeiros desacatos difíceis de assimilar, até mesmo para um cão.
- Pois eu te desafio para um jogo – disse Urso – Aposto um saco de ração para mim contra um litro de conhaque para você. Quem perder paga tudo. Aceita?
- Aceito!!!
CAPÍTULO DOIS
ONDE SÃO CITADAS AGREMIAÇÕES ESPORTIVAS E ESTABELECIMENTOS DE ENSINO DA CIDADE, UMA GRANDE APOSTA ACEITA POR UM DOS JOGADORES, INDAS E VINDAS DA POPULAÇÃO SEMPRE ORDEIRA MAS DESTA VEZ MUITO AGITADA, AUTORIDADES, ATLETAS, MULHERES BONITAS, UM PERSONAGEM MAL CHEIROSO E O POVÃO.
Não se sabe como nem porque, a notícia do desafio cruzou a cidade de Norte a Sul, de Leste a Oeste, em todos os lugares só se falava no tal jogo de sinuca e os comentários eram os mais variados. Enquanto alguns achavam que o cachorro não tinha a menor chance, outros não davam um tostão furado pela sorte do Capitão. Devido a grande comoção que o jogo despertou junto a população foi definido que o mesmo se realizaria em local de grande espaço e que tivesse acomodação para muitas pessoas. Para tanto foi designado o Estádio Municipal onde eram realizados os clássicos do futebol local. De comum acordo foi acertado que o jogo seria em melhor de sete partidas, ou seja, quem ganhasse quatro seria o vencedor. Para arbitrar o jogo veio da capital um juiz contratado junto a Federação Paranaense de Sinuca e Bilhar e definiu-se também que não haveria cobrança de ingressos para que todos pudessem assistir ao grande evento. Finalmente o jogo foi marcado para o feriado de primeiro de maio que seria na semana seguinte. Os comentários corriam soltos pela cidade. Alguns faziam pequenas apostas como um pacote de cigarros ou um frango assado mas eis que da zona do rocio chegou um polaco que apostava com quem quisesse, a enorme quantia de quatro Contos de Réis no cachorro Urso. Ninguém se atreveu a aceitar a aposta porém a notícia chegou até os ouvidos do Capitão que aceitou, pois, se não o fizesse não estaria pondo fé no próprio taco.
Chegado o grande dia a multidão se acotovelou na porta do estádio dando grande trabalho à Polícia Militar responsável pela segurança do local. Além do polaco estavam presentes também o prefeito, o presidente do CANO (Clube Atlético Nacional Olímpico) com seu grande capitão Tiburcio, atleta dos mais respeitados, verdadeiro xerife dentro da área onde impunha respeito e não tinha medo de cara feia. Presentes também o presidente da JAP (Juventude Atlética Palmeirense) com seus atletas símbolos Zeca Preto e Careca, os diretores do Grupo Escolar Gesuíno Marcondes e Ginásio Estadual D. Alberto Gonçalves, autoridades civis e militares, muitas mulheres bonitas, entre elas Tereza, Marina, Rosa, Brasileira e Rute, tão atraentes que ao entrarem no estádio despertaram assobios e suspiros apaixonados do público masculino. Entrou também um bode que com seu cheiro pouco agradável incomodou muita gente.
CAPÍTULO TRES
CAPÍTULO FINAL ONDE O NARRADOR, ESTE INCONSEQÜENTE, DESCREVE À SUA MANEIRA O DESENROLAR DAS PARTIDAS, ENVEREDA PELOS CAMINHOS DA ZONA E JÁ SEM TEMPO ENCERRA O RELATO. FELIZMENTE.
A partida iniciou com o Capitão dando a primeira tacada e terminou com Urso dando a última e assegurando a vitória. Para surpresa do Capitão, Urso jogou com segurança e tranqüilidade. Os cachorros ovacionaram o seu representante enquanto a outra parte do Estádio vaiava. Veio a segunda partida e o resultado foi o mesmo da anterior, vitória do cachorro Urso. O Capitão visivelmente nervoso já quase dava por perdidos seus quatro Contos de Réis, mas ainda faltavam cinco partidas das quais teria que vencer quatro a qualquer custo se quisesse ganhar o jogo. Surpreendentemente na terceira e quarta partidas Urso jogou muito mal e as vitórias foram do Capitão. O jogo era bom, estava empatado e a torcida dividida fazia festa. Na seqüência a quinta partida foi do cachorro e a sexta do Capitão. Estranhamente quando Urso vencia o fazia com competência e facilidade mas, quando perdia era devido a erros infantis. Veio a sétima e decisiva partida. O jogo desenvolveu-se equilibrado até o final quando restou somente a bola sete, quem a matasse seria o vencedor. Era a vez do Capitão jogar mas como a posição das bolas não ofereciam boas condições para a desenvoltura do jogo, este tentou uma defesa mas se deu mal com a bola parando de forma fácil para o cachorro efetuar a tacada, matar a bola e conseqüentemente ganhar o jogo. Aparentando calma o cachorro deu volta em torno da mesa, analisou a posição das bolas, lentamente passou giz no taco, para irritação do Capitão parou pensativo com a mão no queixo, depois calmamente preparou-se para a tacada. Curvou-se sobre a mesa e sem que ninguém percebesse deu uma estranha piscadela para o Capitão. Em seguida deu a tacada fazendo a bola branca tocar na preta que mansamente deslizou sobre o feltro verde em direção a uma das caçapas de canto. O Capitão suando frio sentiu o esfíncter trancar-lhe o ânus ao mesmo tempo em que dava adeus aos seus quatro contos de Réis, apostados com o polaco. Como num filme em câmera lenta a bola preta dirigiu-se para a caçapa, mas, quando se encontrava a poucos milímetros da mesma, como que obedecendo a uma ordem superior, parou recusando-se a cair e se ofereceu ao Capitão. Este, mesmo tremendo acertou a tacada e colocou a bola na caçapa ganhando o jogo. Espoucaram foguetes e em meio a hurras e vivas o Capitão foi carregado em triunfo por seus admiradores.
Naquela noite os bares e restaurantes familiares ficaram lotados de pessoas que comentavam e comemoravam a vitória do Capitão, mas, este preferiu se dirigir à zona do meretrício onde era freqüentador assíduo e tinha muito prestígio junto às raparigas, especialmente com uma catarinense de nome Brandi, mais conhecida como BBB, iniciais que significavam Brandi Boa Bunda. A festa corria solta no puteiro e, enquanto as quengas cantavam e bebiam, um primo do Capitão, aquele que gostava de conversar com Urso, longe de olhares curiosos como deve ser sempre as práticas dessa natureza, entregava-se à especialidade de uma mineira de nome Juvenil, mas que por motivos óbvios era conhecida como Juju Boca de Ouro. Já o Capitão, com um copo de conhaque na mão e tendo ao colo BBB, entre um gole e outro, explorava-lhe partes do corpo onde o sol não bate.
No outro dia o Capitão descansava no quintal da sua casa à sombra de um pessegueiro quando lépido e saltitante chegou o cachorro Urso.
- Boa tarde Capitão, vim buscar a minha parte da aposta que ganhamos do polaco.
- Aposta que ganhamos do polaco? Como assim? Perguntou o Capitão.
- Ora Capitão!!! Não me diga que não entendeu! Não percebe que deixei você ganhar para dividirmos o dinheiro que você ganhou dele? Não percebe que deixei aquela bola sete na boca da caçapa de propósito pra você ganhar? Lembra da piscadela que lhe dei antes da jogada? Foi um sinal para que soubesse que ia deixar a bola pra você matar.
Diante de tais argumentos o Capitão passou a refletir sobre o assunto e chegou a conclusão de que o cachorro falava a verdade. Lembrou que ao longo das partidas ele deixou de matar bolas fáceis para que para que o Capitão ganhasse o jogo. Mas mesmo assim, com todas essas evidências ainda argumentou:
- A verdade é que eu ganhei o jogo. Com você entregando ou não, eu fui o vencedor.
- Entenda Capitão. Você só venceu porquê eu o deixei vencer. Em condições normais eu teria ganho em quatro partidas diretas pois você não tem jogo pra ganhar de mim, essa é a verdade.
O Capitão em cujas veias corria sangue de guerreiros kaingags, neto de Davi Lapeano, aquele, bastante irritado falou: Tá bom, eu te dou nova chance mas sob algumas condições. “Que condições?” Perguntou o cachorro.
- Seguinte, falou o Capitão. Faremos uma nova partida em local secreto, sem que ninguém saiba e sem público presente. Se você ganhar dou à você dois contos de Réis, metade da aposta que ganhei do polaco. OK?
- OK! Respondeu o cachorro.
E assim, sem que ninguém soubesse, em local desconhecido eles foram para uma nova partida onde o Capitão foi simplesmente massacrado. Com efeitos, cortadas e puxadas o cachorro Urso derrotou o Capitão em quatro partidas seguidas, não lhe dando a menor chance de reação. O Capitão que normalmente não aceitava as derrotas com a mesma esportividade com que aceitava as vitórias desta vez reconhecendo a superioridade do adversário estendeu-lhe a mão e cumprimentou-o. E assim foi encerrado aquele embate com ambos os contendores satisfeitos. O Capitão porque continuava com prestigio junto as quengas da zona, especialmente com BBB e o cachorro porque levava no bolso os dois Contos de Réis que tanto desejava. Na volta pararam num bar, beberam cerveja e voltaram para casa contentes e sorridentes.
FIM