O Manuscrito Viajante
O califa Abdul Geressim, um dos majoritários da Pérsia no terceiro século da era cristã, possuía um segredo, mas que nem a pena de morte faria com que fosse revelado. Isto poderia por fim à vida de quase todos os membros de sua família. Para evitar que tragédia sem igual acontecesse ele preferiu se entregar e submeter-se a julgamento. Dada à gravidade do crime e o rigor implacável da dinastia de Ermenedeu II, não poderia ser outro o veredito; foi condenado à forca. No último minuto, entretanto e pela proteção de Alah, segundo suas próprias palavras mais tarde, foi aceita a apelação da corte Síria para comutação de sua pena em prisão perpétua com extradição para aquele país. O jovem Abdul Geressim foi então levado a Síria; passou ali os próximos cinco anos de sua vida. Todavia, de extradição em extradição, à medida que iam se alterando as relações entre os países, Abdul Geressim rodou o mundo. Os anos seguintes de sua vida tumultuada viveu-os na Mesopotâmia. E é de lá que veio essa história intrigante.
As três filhas de Abdul Geressim possuíam extraordinária beleza e eram por isso admiradas e invejadas. Nem o próprio Ermenedeu II, com sua poderosa influência e sua potente riqueza conseguiu conquistá-las. Usou por isso de estratégias abomináveis para satisfazer seus desejos carnais com as puras e formosas meninas. Uma delas foi colocá-las a seu serviço dentro da corte. A necessidade de sobrevivência numa época difícil para a população em geral fez com que o pai, Abdul Geressim permitisse essa alteração na vida de suas pequenas. Em troca de favores especiais, moedas de ouro e muitas promessas, Ermenedeu II recebia hora uma, hora outra em seus aposentos tendo como intermediária uma de suas mais íntimas e fieis concubinas. Ninguém mais tinha conhecimento do que se passava na corte de Ermenedeu II; nem mesmo as irmãs entre si compartilhavam deste segredo, pois foi esta a imposição feita por Ermenedeu II para que nada de mal sobreviesse a elas ou à família. Sendo assim, sofrendo e cheias de insegurança, permaneceram caladas como se tudo estivesse normal e rotineiro nos domínios da corte persa.
Mas não é normal manter-se infinitamente um clima estranho dentro da intimidade de uma família. E para complicar a situação, Quênia, a filha do meio, viu-se grávida de Ermenedeu II. A mãe, amiga e confidente, ficou sendo a primeira a saber da verdade. Não foi fácil tirar de Quênia a revelação. Alegou um namorado, passando por homens de confiança de Ermenedeu II que dela teriam abusado até, por insistência, chegar ao que acontecera de fato. A mãe, atordoada, jamais pensaria em esconder aquilo de Abdul Geressim e, numa noite, revelou ao marido o que se passava na corte de Ermenedeu II.
- Não podemos ficar indiferentes a essa imundície – disse a mulher revoltada.
- Também sou de sua opinião, mas veja: o que podemos fazer sem que uma tragédia se abata sobre nossa família? Você conhece a fama e o sangue frio de Ermenedeu II. Vamos dar tempo ao tempo; certamente encontraremos uma solução sem que coloquemos em risco a segurança de nossa menina.
Alegando doença, Quênia afastou-se da corte, o que fez Ermenedeu II desconfiar e já passar a armar o seu plano caso fossem descobertas as suas atitudes e sua tara. Ao se passarem os meses e se tornar evidente a gravidez de Quênia, as duas irmãs, vendo aquilo e não mais suportando a farsa, levaram aos pais toda a verdade e tudo ficou esclarecido. A revolta de Abdul Geressim não tinha tamanho e ele foi ter com Ermenedeu II que o ameaçou de forma terrível e odiosa.
- A escolha é sua – disse Ermenedeu II. – Ou mantém tudo como está para o bem e a preservação de todos os seus ou todos perecerão.
Sem poder controlar a revolta e corroído pelo ódio, Abdul Geressim ergueu da cintura a espada para atingir Ermenedeu II, mas este foi mais rápido e conseguiu se safar enquanto um dos guardas, que a tudo presenciava, aproximou-se para defender o monarca. Abdul Geressim, fora de si, atracou-se com o defensor, conseguindo levar a melhor, assassinando-o com um golpe fatal de sua espada. Foi em seguida cercado e dominado e só então caiu em si do ato que havia cometido. Preso, recebeu no dia seguinte a visita de Ermenedeu II que o preveniu:
- Só eu posso livrá-lo da pena de morte. Prometa que manterá o segredo e eu o libertarei.
- Não conte com isto. Prefiro a morte a permitir que arruíne as vidas de minhas filhas.
- Há, além de mim e de sua família, alguém mais que conheça essa história?
- Eu as proibi de comentar com quem quer que fosse. Não somos loucos; sabemos muito bem do que é capaz um demente como você.
- Livrá-lo-ei da pena de morte se aceitar a deportação. Será o melhor para o bem de todos.
Os anos se passaram e tudo caiu no esquecimento, mas não para Abdul Geressim e os seus entes queridos. Ele preferiu que assim fosse, durante anos a fio, para que nenhuma tragédia os atingisse. Mas a saudade o torturava. De país em país, enfrentando masmorras e porões de navios ele encontraria uma solução. Até que uma simples ideia, que não lhe garantiria o sucesso, mas que não lhe custaria a tentativa, aflorou-lhe à mente irrequieta e saudosa. No porão do imenso Atlantis, ganhando as águas do Mar Egeu, em meio à madrugada e vivo de esperanças Abdul Geressim começou a escrever a sua história. Cada detalhe o enchia de ódio e não menos de tristeza e muitas saudades. Muitas folhas de pergaminho, sobrepostas e enroladas, presas por fios de nylon. Em uma das garrafas que lhe serviam bebidas, depois de muito secas e limpas, ele enfiou o manuscrito e com rolha lacrou o recipiente. De uma das escotilhas, sem antes dirigir a Alah sua fervorosa prece, lançou, na escuridão do mar Egeu sua preciosa carga.
Quem diria que um ato tão simples pudesse resultar na transformação de um reinado e na solução de um grave problema? Mas foi o que ocorreu, não sem antes passarem-se meses e o manuscrito de Abdul Geressim, tendo enfrentado tormentas, mares bravios, golfos e atravessado continentes, alcançasse a costa do mar Egeu e fosse avistado por uma embarcação egípcia, boiando nas águas, fazendo cintilar, sob um sol forte, a cor esverdeada da garrafa que o continha. Resgatado o documento e conduzido até o faraó, inimigo número um da Pérsia naquele período histórico, culminou com a pena que bem merecia Ermenedeu II por todo o mau que havia praticado. Já afastado de suas funções foi, mesmo assim, julgado e condenado, sendo enforcado semanas mais tarde. A liberdade, a paz e a felicidade voltaram à família de Abdul Geressim. Tudo como antes. Nunca mais houve na Pérsia um rei tão insano e impiedoso para o bem e felicidade de toda a sua gente.