Onironauta (ou a Outra História Paulistana)

Multidão mobilizada. Será São Paulo isso aqui mesmo? As pessoas saíram da hipnose dos smartphones, iPhones, notebooks e resolveram lutar por algo? Ah, eu devo estar sonhando, dormindo, cadê o interruptor? Aquele filme disse que não tem mudança de iluminação em sonhos, eu preciso de um interruptor, preciso dar um on/off naquela merda e ter certeza da minha lucidez.

Tá todo mundo gritando “justiça, justiça, justiça”. Aleluia, vamos, gritemos! Puta merda, não consigo nem me mexer aqui direito, cadê a porra do interruptor? Não tô conseguindo respirar direito, tento gritar, mas não sai nada. É isso, eu devo estar sonhando mesmo, isso acontece comigo direto, vou tentar gritar e parece que a garganta secou, ou simplesmente roubaram minha voz com algum artefato mágico maligno.

Qual era a outra coisa que dava para fazer? Pedir para alguém me beliscar? Cara, vamos, derruba o portão, vamos invadir essa joça e quebrar tudo, finalmente o povo acordou, vamos varrer o poder do jeito que todos conheceram para debaixo do tapete do novo século. AVANTE, IRMÃOS!

Não sai, não sai, minha voz não existe. Será que eu existo? Tá acontecendo isso mesmo?

Tem um poste aqui na rua, se eu pelo menos conseguir acertar uma pedra nele e ver se a luz dele apaga...

Não deu tempo, só ouvi o barulho do vidro quebrado, e agora a multidão toda está comemorando alguma coisa, o tumulto aumentou, o que aconteceu? Será um dos vermes politizados já decapitado e morto na frente de todos, para servir de exemplo aos malditos engravatados, reféns sentenciados?

Alguém estava dizendo algo em um megafone. Será a declaração de nossa total emancipação dos sistemas bancários sanguessugas? Será o começo de um poder que emana de nós para nós? Será a final posse do povo no poder como um só? Sem ditadores, sem vaidade, sem Stálin, sem ideologias travestidas de ganância e violência?

Eu não conheço ninguém daqui, acho que eu vi o Mandela na muvuca. Normal, o Mandela participando de um levante popular...ah, hein? Comecei a misturar gente nada a ver no meio da galera normal, agora é quase certeza que eu estou sonhando. Mas sósias existem aos montes também. Quer ouvir uma história? Charlie Chaplin entrou em um concurso de sósias dele mesmo e ficou em terceiro. Ah, já assistiu Xeque-Mate? Desculpa.

Já entendi, estou acordado. Acordado, mas com uma consciência ampla dos eventos. Todo esse furor é só a patuleia comemorando o resultado de outro julgamento midiático, onde um casal de classe média matou a filha e a enterrou no playground do prédio. 657 anos de prisão para cada célula do corpo dos dois, pra inglês ver, você esperava o quê?

Acordei. No meio da rua. Um negro passa do meu lado, de capuz, apressado, andando rápido na garoa, quer chegar em casa logo. Sua noiva o espera. O sms sacana descrevendo que roupa ela estaria, os preparativos e o que eles fariam naquela noite de aniversário o excitavam e só o faziam ir mais rápido ainda.

Rota. “A” Rota. Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar. Giroflex. “Parado, caralho, parado”. Eu estou parado, tô vendo tudo, mas ninguém me nota aqui. “Calma, senhor, calma”. Aquele momento de apreensão e tensão, Clint Eastwood? Três homens em conflito? Duelos ao meio-dia? São Paulo, periferia, madrugada, garoa, sinônimos de tensão.

A culpa recai sobre quem inventou os toques de mp3 no celular. A noiva ligando, o Nokia X2-01 toca no bolso do “suspeito”. Começa uma música de suspense, “diário de bordo, parte 2. Rashid, DJ Caíque.”. O que se segue é um barulho agudo, falso, gravado, de uma arma que engatilha e dispara. O falso tiro faz eco na quebrada. Eu tremo. Ele treme. O policial treme.

Uma gota de suor frio escorre pelo pescoço do “suspeito”. Ele busca o celular no bolso do casaco. A adrenalina e a cocaína na cabeça do policial não permite a distinção de realidade e ficção. O tiro para ele pareceu mais real que aquele de ontem, e crente de que o “suspeito” ia puni-lo por todos seus pecados pelos morros paulistanos, atirou primeiro. Dois, no peito. Morte súbita, gol de ouro, ninguém comemorou.

Tento gritar. A voz não sai. Ninguém olha para mim, era como se eu não estivesse lá.

O corpo não foi enterrado. Foi parar no córrego. Um nome eternamente na lista dos desaparecidos. O policial nunca teve nenhum julgamento certo. Eu, única testemunha, não pude denunciar, pois acordei.

Acordei. Chorando. Suado. E queria ter tido a certeza que era tudo apenas um sonho. Só um passeio noturno do meu espírito, me denunciando as micoses nas dobras dessa cidade fria, cinza e linda. Sonhei com isso. Vivi isso. Acordei.

Diego Biagi
Enviado por Diego Biagi em 11/07/2012
Código do texto: T3771557
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.