A SOLIDÃO DE LÚCIO

Solidão de Lúcio

Série contos urbanos

Lúcio morava em um Conjunto habitacional em Aracaju. Seus pais moraram lá até que Deus os levou. Primeiro foi seu Filó, depois dona Dulcinéia. Lúcio herdou a casa e a banca de revistas na Praça da Bandeira. Lúcio cursou o segundo grau até o segundo ano. Os pais ficaram velhos forçando-o a trabalhar na banca. Ele era filho único e muito amado por sua família. Os vizinhos até hoje comentam: “Esse menino era o xodó de Dulcinéia”. E era verdade. Lúcio quando ia à escola, sua mãe o arrumava cedo, e o conduzia pela mão até o Costa e Silva, no Siqueira Campos. A mulher só parou quando percebeu que a voz do rapaz havia mudado. Filó era um pouco diferente. O povo de Glória não gosta muito de chamego.

A banca de Lúcio ficava na esquina com a Av. Hermes Fontes e Av. Barão de Maruim. O moço passava o dia inteiro ali. Retornava para o DER (Departamento de Estradas e Rodagens) somente às sete da noite. Lúcio estava nessa vida há sete anos. Durante todo esse tempo ninguém apareceu em sua vida, nem uma namoradinha ou coisa assim. Seus colegas lhe diziam: “Lúcio troque o carro; compre um novo, desses da moda!” Lúcio tinha um fusca branco. Não havia nada de errado com seu carro, exceto, a idade, pois, o automóvel nunca o deixou na estrada.

O jovem do DER usava óculos como seu finado pai. Tinha os cabelos claros como sua finada mãe, e o nariz e a boca eram cópias de seu bisavô descendente de holandeses que moraram nos sertões de Glória e Porto da Folha. “Lúcio é a cara de seu Zé Maria, não é Filó?” “É mesmo, a cara de um, o focinho do outro”. Lúcio não era um homem feio, mas, não era bonito também, ele estava na metade dos dois. O que mais pegava nele era a danada da timidez. “Rapaz! Olha lá! Carla está paquerando você!” “Tá não compadre!” A história terminava aí. Essas coisas faziam muito o rapaz sofrer.

Numa segunda feira, Lúcio estava em sua banca como era o costume. Por volta das nove horas da manhã entra uma moça. A menina estava um tanto apressada. Ela entrou, pediu cigarros, olhou em volta, e saiu. A visão da menina, o perfume que ela usava; a cor do vestido, a cor dos olhos e do cabelo ficaram fixadas na mente de Lúcio. O rapaz retornou em seu fusca para casa pensando em quem seria aquela moça. Ele estava tão animado com a visão daquele anjo que se esqueceu de pôr o carro na garagem. Aquela foi a primeira noite que o fusquinha de Lúcio dormira do lado de fora. No outro dia, pela manhã, Lúcio abre a porta para atender o leiteiro, e vê seu carro estacionado a porta de casa.

- Seu Lúcio chegou tarde ontem!

- Não seu Raimundo. Cheguei cedo, mas, não sei onde estava com a cabeça. Ocupei- me e me esqueci do carro! De fato, Lúcio ao chegar à sua casa nem banho tomou. Esquentou pão e café solúvel no micro-ondas, depois, foi direto para sala de som onde ficou até pegar no sono. Sua mente passeava por todos os ângulos possíveis que estavam armazenados na sua memória. Ele via a pequena comprando uma carteira de cigarros Hollywood mentolado. O dinheiro ele segurava na mão, de vez em quando, o levava ao nariz para sentir o perfume da moça. “Era coisa da Natura”. Pensou ele.

- Seu Lúcio, mas, sua pessoa num vai assim para a banca não, num é? Perguntou Raimundo, o entregador de leite da Padaria Sagrada Família.

- Como?

- O carro está sem os pneus. Parece que o dono levou. Lúcio, finalmente, vê que os pneus de seu fusca sagrado haviam sido roubados. Naquele dia ele foi de ônibus para a banca.

Lúcio residia no final da Rua Alagoas. Ele decidiu tomar o coletivo DER para a Praça da Matriz, e de lá seguiria a pé para a Praça da Bandeira. Lúcio tomou o ônibus no ponto próximo a sua casa. Uma esquina antes da Rua Bahia sobe uma moça. Lúcio não havia notado, pois, estava ainda pensando em sua amada, sua musa que o fez se esquecer do carro. Ele somente percebeu que ela estava no ônibus quando o vento entrou pela janela na curva para entrar na Rua Bahia. “Que perfume é esse?” “Será?” A moça estava sentada no banco dos fundos. Eles estavam separados por uma senhora forte, de meia idade, que segurava uma criança no colo. A moça estava ali, pensou o rapaz. “Eu poderia perguntar-lhe o nome!” Pensou novamente o vendedor de revistas. “Vou segui-la!” Durante o percurso seus olhos incidiam instintivamente sobre as pernas alvas da moça. Sua pele era branca como leite; o rapaz adorava vê-las embaladas pelo trepidar do carro. A menina estranha vestia um vestido branco estampado com rosinhas azuis. A roupa era curta – o que provocava a libido de Lúcio. O tempo passa rápido. A Praça da Matriz estava cheia de gente. Todo aracajuano sabe que Sergipe passa por ali todos os dias. A moça desce na Praça junto com Lúcio. Os dois estavam juntos e separados no meio da multidão que ia e vinha sem nada perceber. Ela entra em uma pequena loja de vender filmes e máquinas de fotografar. Lúcio a observa sem se preocupar com o tempo. A menina se sentou no balcão e inicia sua rotina de trabalho. Um rapaz moreno de feições de caboclo se aproxima dela e diz:

- Marivone! Bom dia! Linda como sempre!

- Bom dia Valdir! Onde está Setúbal?

- Ele mandou dizer que você tome conta das coisas. Ele está com o cão doente. Vai levá-lo para o veterinário.

- Setúbal é uma comédia! Setubal era o dono do estabelecimento. Valdir o fotógrafo e Marivone, a vendedora.

Lúcio anotou o número do telefone que estava no toldo que protegia a frente da loja do sol forte de Aracaju, e se retira do lugar. “Agora, pelo menos, eu sei seu nome ‘Marivone’; mais tarde vou ligar para ela”.

Dona Carmelita estava aguardando Lúcio defronte à banca fechada às oito e trinta da manhã. A mulher não falhava um dia. Era comum tê-la por perto no horário de levar rex para fazer xixi. Carmelita era uma mulher viúva aposenta. Sua idade ela não gostava de dizer, mas, todos sabiam que ela parou de contar nos sessentas. De lá para cá deve ter passado mais de uma década. Sua lucidez era plena. Falava com propriedade sobre todas as coisas que conhecia. Somente uma coisa nela irritava a Lúcio – seus pressentimentos!

- Menino que cara é essa? Viu algum bicho?

- Como dona Carmelita?

- Se sua mãe tivesse viva ela diria a mesma coisa! Que cara é essa, rapaz? Viu algum fantasma?

- Não! Mas vi a coisa mais bela de minha vida!

- E foi Lúcio? Graças a Deus meu filho; já estava na hora de você arrumar alguém! Felicidades! Rex havia feito o trabalho na grama verde da Praça. Dona Carmelita se despede e caminha na direção do semáforo no cruzamento com Av. Barão de Maruim. A mulher vestia uma roupa preta; o luto de seu marido nunca saiu da cabeça de dona Carmelita.

A banca de Lúcio era um ponto antigo. Segundo ele, há mais de 25 anos sua mãe e pai trabalharam ali. Fizeram fregueses e amigos que depois se tornaram fregueses e amigos de Lúcio. Era muito agradável trabalhar naquela banca que tinha dois metros e meio de largura por três metros e setenta de comprimento. A banca estava do lado da sombra pela manhã, e pela tarde, as árvores da praça ajudavam a amenizar o calor de Aracaju dando-lhe sombra. De tardinha uma brisa escapava da Rua da Frente e chegava até a Praça da Bandeira. Era a brisa do Rio Sergipe que deságua logo ali. Em Aracaju, o mar e o rio dialogam sem cessar, e o vento que corre a cidade vem de lá.

- Alô! Alô! Lúcio respira fundo, cuida para que Marivone não ouça sua respiração ofegante.

- Alô! Alô! A voz da moça deixa o coração do rapaz acelerado. Sua respiração se assemelha a de um corredor. Contudo, Lucio nada diz. Os pensamentos de sua cabeça ficam confusos. O rapaz tem medo de dizer besteira.

- Alô! Alô! Marivone atende ao telefone novamente, mas, não encontra resposta. A moça desiste e desliga.

- Valdir! Estão passando trote. Duas vezes ligaram para cá, eu atendo, ninguém diz nada.

- Está famosa, hein!

- Oxalá que fosse isso! Sinto-me tão só! Marivone suspirou se lembrando de Carlos Alécio, seu ex-noivo. Marivone foi deixada quase no altar. Seu noivo Carlos Alécio desistiu de tudo e aceitou a bolsa para estudar em Londres. “Desculpe meu amor, mas, foi um erro”. Estas foram as últimas palavras que Marivone ouviu dele. Desde então, dois anos depois do ocorrido, a moça nunca mais namorou ninguém. “Marivone minha filha! Vá passear!” É o que diz sua mãe quando a vê de cabeça baixa pensando na vida.

- É brincadeira colega! Desculpe! Valdir se retirou para atender um cliente. Marivone pensa por um instante no seu ex-noivo. Seu coração se enche de saudades e mágoa.

Lúcio esperou Marivone sair do trabalho às cinco. Esperou por ela na Matriz. Depois, a acompanhou pela cidade até deixá-la em casa. A rotina se repetia todo dia, depois semanas passaram e o rapaz fazia a mesma coisa. Colhia informações sobre a menina, a observava, mas, nada de uma aproximação. Todas as vezes que tentava, sua voz engasgava só de pensar, seu coração acelerava, sua mente entrava em confusão. Lúcio não conseguia abordar a moça definitivamente. Os seus planos se transformaram em devaneios. Marivone percebia que estava sendo seguida. Contudo sua dúvida era maior que sua fé.

- Valdir, às vezes, sinto que um rapaz simpático me acompanha. São vários os dias que onde estou ele está. Mas, ele nem olha para mim. Ás vezes, eu sinto medo. Outras vezes, eu sinto vontade de dizer-lhe algo. Eu acho que ele tem algum problema.

- Mulher, pode ser apenas uma coincidência. Relaxe!

Lúcio estava lendo em sua banca certa manhã quando Marivone surge inesperadamente. A moça não tinha o hábito de comprar cigarros naquele local. Ela procurou a Lúcio por que queria ouvir dele alguma coisa. Lúcio levanta a cabeça e encontra os olhos da menina no caminho. Aquela foi a primeira vez que os dois se olharam. A ternura e o carinho irradiavam das pupilas dos olhos de Lúcio. Marivone percebia tudo, no entanto, não entendia por que ele não falava nada.

- Uma carteira de cigarros, por favor! Lúcio se levanta e caminha na direção dos cigarros. Pega a carteira e a entrega à menina. Agora seus olhos estavam baixos evitando o olhar direto. Marivone tenta dizer alguma coisa, mas, para pelo meio do caminho. “Acho que Valdir tem razão!” Pensou consigo a moça.

A aproximação de Marivone forçou Lúcio a mudar sua estratégia. Ele a seguia de longe como se fosse seu anjo protetor. Durante as noites Lúcio simulava diálogos com ela. Ele mandou fazer pôsteres e os pendurou nas paredes de seu quarto e escritório. Lúcio estava se transformando em um especialista sobre Marivone. As pessoas da Praça da Bandeira comentavam que Lúcio abandonara a banca, porque não ligava mais para nada. Os pedidos estavam atrasados.

- Lúcio você está bem, colega? Perguntou Gileno, um colega de infância.

- Sim, eu estou bem. Hoje tenho a mulher que sempre sonhei. No quarto de Lúcio havia uma boneca de criança de uns setenta centímetros. A boneca tinha os cabelos pretos como os de Marivone. Os meses passaram ninguém mais ouvia falar de Lúcio. Sua banca estava fechada. Sua casa estava trancada e seu fusca desmontado por vândalos na frente de casa. Lúcio enquanto teve saúde rondou a casa de Marivone. O rapaz não suportou a noite de sexta feira dia 27 de março. O rapaz estava sentado em um bar defronte à casa de Marivone que fica quase no cruzamento da Av. Bahia com Alagoas. Ele fazia ponto ali quando podia. Olhava tudo depois ia embora. Naquela noite Marivone demorou a voltar da loja. Lúcio ficou no bar até ela chegar. Por isso, nervoso, pediu uma cerveja. A cerveja afetou o rapaz de forma tal, como disse seu Zé, que ele se levantou descontrolado e sumiu na rua. Lúcio viu quando Marivone chegou com seu namorado. Viu quando os dois se abraçaram e se despediram. A cena de amor de Marivone adoeceu a Lúcio. Desde então ele preferia ficar em casa sem receber ninguém.

O rapaz do leite estava desconfiado que houvesse algo errado. E então, certo dia, ele sentiu um cheiro de podre, e chamou os bombeiros. O corpo de Lúcio foi encontrado em adiantado estado, fazia uns cinco dias de morto. Os vizinhos não viram nada. O exame cadavérico diz que ele se envenenou com chumbinho. Deixou uma carta na mesa da cozinha. Na carta ele dizia: “Estou tirando minha vida por que te amo Marivone”. “Quem é Marivone?” Perguntaram os policiais. Marivone nunca soube da morte de Lúcio, embora morasse no mesmo bairro. Cidade grande é assim as pessoas nunca se conhecem o bastante. Marivone casou e teve um filho. E viveu sua vida como pode.

Roosevelt leite
Enviado por Roosevelt leite em 25/06/2012
Reeditado em 22/12/2019
Código do texto: T3744051
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