O juízo

_Nããão! Oh, meu Deeeus! Socooorro!

Gritar era só o que ela podia fazer naquele momento. A sensação era de queda, embora às vezes, parecesse estar subindo. A única certeza que tinha era de que se deslocava a uma altíssima velocidade. Não via nada, só sentia. Direita, esquerda, descendo, subindo. Era como se estivesse viajando em uma espécie de tobogã helicoidal que infringia a lei da gravidade. A escuridão era terrível.

Finalmente, teve a sensação de estar sendo "jogada pra fora" e aterrissou de maneira nada agradável. Havia muita fumaça, o que obstava em demasia a sua visão, porém era possível perceber que estava em um corredor, dentro do que parecia ser um gigantesco galpão. Começou a caminhar ainda sem entender nada. Em meio a penumbra e a fumaça, percebeu que não estava só. Ouvia-se um barulho de asas, como em um pombal. Do corredor, saíam várias salas muito iluminadas e cheias de criaturas aladas, vestidas com macacões de cores variadas. Cada cor em uma sala. Os operários pareciam muito ocupados. Alguns manuseavam estranhos tubos de vidro, outros conduziam pessoas e também havia alguns que se portavam como guardiões.

Estaria sonhando? Tudo parecia ser bastante real.

_Como foi a passagem? - indagou um dos anjos guardiões, vestido de verde.

Só então percebeu que não estava sonhando e que era agora só espírito. Havia morrido. Seu corpo velho e gordo devia estar sendo velado naquele exato momento na sala de estar da pensão de que fora proprietária por mais de cinquenta anos. Estava paralisada.

_E então, como foi a passagem? - insistiu a criatura angelical.

_Pensei que fosse mais rápido. - respondeu, lembrando-se da terrível viagem que acabara de fazer.

_Todos dizem a mesma coisa! - disse o anjo, com um sorriso irônico. E continuou:

_Siga em frente e entre na quarta sala, à direita. Você verá uma plaquinha com seu nome.

Ela obedeceu, mesmo sem entender, até chegar a sala. Havia uma pequena placa na porta: "Elizabeth Freire". Entrou e viu um homem de cabelos longos e vestes alvíssimas sentado na extremidade de uma mesa. Do seu lado direito estava um senhor de meia idade, careca, de de terno e barba brancos. Do outro lado, havia um jovem de olhos claros, cabelos pretos e aparados, vestindo um terno preto. Ao fundo, uma mulher lindíssima - com vestes muito brilhantes, numa escala de cores que jamais vira em vida - assistia a tudo.

_Sente-se, Beth! - convidou o homem cabeludo.

_Presumo que saiba onde está.

_Sim, senhor. - respondeu, sentando-se.

Com o dedo indicador direito, o senhor de terno branco tocou a mesa e, no mesmo instante, surgiu uma tela onde se podia ver uma mulher. De início, Beth pensou que fosse ela, mas logo viu que era sua mãe.

_Veja Beth! Isso foi logo após a sua concepção. Nós já a amávamos...

_Senhor! Vamos logo ao que interessa! - bradou, raivosamente, o homem de preto.

_Cale-se, Acusador! Já sabe as regras! Veremos tudo, desde a concepção até a morte! - ordenou o homem de vestes brancas.

E assim foi feito. Toda a vida de Beth passou diante de seus olhos. O Paráclito enfatizando e elogiando as boas ações, enquanto o Acusador destacava e orgulhava-se dos pecados. A cada pecado grave de Beth, uma chaga surgia no corpo de Cristo.

_Pronto, Senhor! Agora que já vimos tudo, posso mandá-las entrar? Posso? - o Acusador parecia não se conter.

_Sim! Já é o momento! - concordou Jesus, muito triste.

O Acusador foi até a porta e abriu-a. Entraram na sala dois bebês alados, que apesar de muito pequenos, já andavam. Era um casal. Eles se dirigiram até Beth e um deles, a menina, falou:

_Mamãe! Que saudade! Apesar de você não me ter conhecido, eu te amo muito!

_Eu também, mamãe! - disse o menino.

_Quando estava na sua barriga, eu ouvia sua voz e me sentia segura. Não via a hora de nascer para poder ver a senhora! Até aquele dia...

_O dia que aquela coisa nos esmagou e nos puxou para fora da senhora. Sofremos muito na hora. Mas a dor logo passou, quando ela nos pegou no colo e nos trouxe para cá. - disse o menino, apontando para Nossa Senhora.

_Por que fez isso com a gente, mamãe? O que foi que a gente fez que magoou tanto a senhora para que deixasse de nos amar e querer nos matar? Saiba que, apesar de tudo, nunca deixamos de amá-la.

Lágrimas de sangue corriam pelo rosto de Beth. Foi a primeira vez que sentiu arrependimento pelo aborto que realizara na mocidade. Agora, não adiantava mais. Uma chaga enorme se abriu no lado esquerdo do peito de Jesus. Maria chorou. Lúcifer sorria com satisfação, sabendo que ganharia mais uma alma.

_Minha filha! Este é o pecado que mais me dói! Por que não se arrependeste em vida? - indagou Jesus, sem mais nada que pudesse fazer.

_Mamãe, mesmo sabendo que a senhora fez isso com a gente, ainda te amamos e serás sempre a nossa mãe! Dizem que o lugar para onde vais é horrível e que nunca mais poderemos vê-la! Leve o nosso beijo para te consolar!

_Já chega! Cumpri todas as normas! Agora quero a posse do que é meu! - gritou Lúcifer, abandonando aos poucos a aparência humana. Seus olhos foram se inflamando, sua expressão foi se bestificando e a figura horrenda e monstruosa surgiu. Maria tapou os olhos das crianças. Beth estava horrorizada.

_Posso levá-la, Senhor? - disse o Acusador, com uma voz maligna.

Jesus acenou com a cabeça, desconsolado. Então Satanás deu uma ordem e, imediatamente, três criaturas obscuras invadiram a sala, voando. Envolveram o espírito de Beth e a levaram, sob gritos aterrorizados e insanos. Naquele momento, o céu entrava em luto. Mais uma alma se perdera.

Jack Cannon
Enviado por Jack Cannon em 09/06/2012
Reeditado em 01/10/2013
Código do texto: T3714096
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