Ascensão
Prólogo
Estive por um longo tempo observando aquele triste reflexo no espelho. Uma vida, muitas lágrimas e diversos arrependimentos. Ah, se eu pudesse voltar atrás! Mas não, não quero, não vou. O que está feito, está feito. Nada vai trazer de volta aquilo que perdi e nada vai me dar tudo o que sempre quis. Deus? Não acredito mais em Deus. Se ele realmente existisse não teria me deixado em um canto escuro no quarto de minha primeira casa para ser caçado pelos meus monstros pessoais. Se ele realmente fosse justo não teria deixado que eu morresse por dentro. De que adiante Jesus ter morrido na cruz, se os pecadores caminham e dançam sob os túmulos dos heróis da terra? Digo isto por que sei. Sei que aquela visão bela do mundo é pura alienação. Mas de que adianta eu estar dizendo isto aqui, para você, meu caro? Afinal, a realidade é subjetiva.
Capítulo 1
Porra! Pensei ao bater com o pé no canto da mesinha de centro da sala. Cacete, tenho que me cuidar em relação a isso. Caminhei dolorosamente até o sofá jogando meu corpo sobre ele. Merda! Eu estava tão exausto que ao apoiar minha cabeça sob o braço do sofá dormi ali mesmo. Acordei incríveis 16 horas depois. Com uma dor de cabeça maior do que o estádio do Maracanã.
“Leva-se 16 horas para o cérebro se acostumar com a nova condição do paciente...” Desliguei a televisão, o telejornal andava virado em uma grande bosta. Médicos falando de novas doenças que estavam “na moda”, mas eram tão desconhecidas como dinheiro em carteira de pobre. Levantei, mesmo com a minha cabeça não fazendo o mesmo, e andei lentamente até a geladeira da cozinha. Aquela luz forte dos ambientes me deixava meio cego. Encontrei uma garrafa de leite, abri e tomei quase tudo, largando em algum lugar na cozinha. Talvez no chão como já era de costume.
Ao olhar pelas frestas da janela percebi que estava bastante escuro na rua então deveria ser noite. Fui até o quarto dos meus pais e olhei para aquele velho rádio relógio que fazia um barulho irritante de estática. Eram 02hrs e 15 minutos da manhã. 02hr s e 15 minutos da manhã de um sábado. 02hrs e 15 minutos da manhã de um sábado, 21 de abril de 2012. Caí na enorme cama dos meus pais e entrava em um sono profundo. Acordo como se tivesse dormido horas. Com os olhos embaraçados, olho para o rádio-relógio e vejo que era 02hrs e 14 minutos da manhã de um sábado, 21 de abril de 2012. Nem dei muita importância aquilo,afinal, eu tinha bebido vodca antes de dormir então já sei como é. Levanto num pulo e, ao me dirigir até a cozinha, sinto alguns calafrios pelo corpo. Chegando ao cômodo, encontro as duas garrafas de tequila que tinha bebido antes de dormir. Lentamente as retiro do chão e jogo no lixo. Coçava meus cabelos escuros e sentava no sofá. Ligava a televisão e deitava, apoiando minha cabeça em uma das almofadas. Meus olhos estavam pesados e prestes a fechar novamente, mas então, ele chegou.
- Mas que vida boa essa sua, Gustavo! – levo um baita susto ao ouvir a grossa voz do homem de terno preto que se dirigia para o outro lado do sofá. Sentava novamente e o olhava da cabeça aos pés. Seu rosto meio oval, sua pele possuía um tom branco que misturado aos seus olhos verdes me assustavam muito. Tinha um grande corpo, um terno preto sobre ele que era assustador, confesso. Mas isto era apenas uma dentre todas as coisas assustadoras vindas dele. – O que tem feito nessa sua nova condição? – dizia ao sentar no sofá.
- Além de nada? Ah, deixe-me ver... Oh, nada! – sorria ironicamente, para aquele que tinha consumido tudo aquilo que me restou um dia. – E você? Destruindo muitas vidas por aí?
- Ah, resolvi tirar umas férias, você foi meu caso mais complicado. Deu trabalho. – espreguiçava-se ao dizer isso, relaxando o corpo nas costas do sofá. – Fiquei três meses fora, não percebeu?
- Não, não mesmo. Esqueceu que estou preso ao maldito dia 21 de abril de 2012? – perguntava com um sorriso falso no rosto.
- Ah, claro! Como pude me esquecer?! Coitado de você, meu jovem. – seus sorrisos eram verdadeiros, mas sua tristeza era inexistente.
- O senhor já parou pra pensar que cometeu um grande erro ao fazer isso comigo? – perguntei, com lágrimas escorrendo pelos meus olhos.
- Não. Por quê? – inclinava seu corpo pra frente, para me ouvir melhor, fingindo mostrar preocupação.
- Por que eu vou me vingar. Eu sou mais homem do que você pensa. Sou mais forte e melhor do que você. Vou te destruir. – dizia com os olhos dominados pela fúria e lágrimas.
- Homens não choram. Você não passa de uma criança inútil e desprezível. – ao ouvir isso fechei meus olhos e apertei forte minhas pálpebras, para que o ódio não vazasse junto com as lágrimas. Quando abri ele já tinha desaparecido.
Capítulo 2
Uma vez me disseram que a vida era bela, acredito que essa pessoa era daquelas que conseguem enxergar a beleza interior. No caso, interior profundo. A minha vida sempre foi muito parada, mas quando acontecia alguma coisa agitava tudo. E eu corria para lá e pra cá, tentando tapar os buracos, corrigir os pequenos erros, mas quando mais eu tentava maior era o problema que surgia. E assim a minha existência foi se tornando pesada e dolorosa. Não só para mim, mas para todos que viviam a minha volta. Passei a ver meus pais apenas duas vezes por semana. Não por que eles saiam muito, mas sim por que eu ficava preso no meu quarto por dias. Até o momento. Aquele momento. Vestindo uma calça de Jeans, uma camisa escura e uma blusa branca de frio, eu brincava com um pequeno dado branco e observava os números que surgiam de forma aleatória. Aleatória por que eu estava perdido em pensamentos distantes, sem me dar conta do que fazia com as mãos. Nesses pensamentos havia felicidade. E essa felicidade era algo longínquo, pois fazia parte de outra época. Outros tempos, outra vida. Calçando meu tênis All-star preto, levantei do chão, me dirigi a porta do quarto e coloquei minha mão direita sob a fria maçaneta de metal.
Branca e forte. Essa era a luz que o sol emitia. Branca por causa da manhã e forte porque fiquei tempo demais no escuro. Tempo suficiente pra não saber com é sentir o calor do sol na pele. Quando a visão ficou clara, observei que não havia nada. Nada além de um imenso céu azul sem nuvens e uma extensa praia, que parecia não ter fim. E não tinha.
Estou tendo alucinações, como vocês já devem ter notado. Pois a realidade mesmo era aquela em que me encontrava. Estirado no sofá da sala às 02hrs e 15 minutos da manhã de um sábado. Estava frio e eu estava tremendo. Era outono, tudo o que mais desejava era uma cama quentinha, um chocolate quente e algum filme de suspense, terror ou quem sabe, um bom e velho drama. Cheguei a pensar que isso tudo podia ser um filme. Daqueles que te marcam tanto, que o persegue em seus sonhos, transformando-os em pesadelos incessantes e constantemente assustadores. Ao mesmo que tempo que são mágicos e um tanto atraentes.
Preciso parar com os delírios. Essa casa já está me deixando louco, meus pensamentos se batem e não tenho noção do que digo. Se é que digo alguma coisa, não lembro de ter pronunciado algo nos último meses. Ou devo dizer, segundos?
Ontem o relógio passou para 16 minutos. Passou sim, posso jurar que vi. Mas foi tão rápido que duvido de mim mesmo. Nosso cérebro tende a nos enganar. Principalmente o meu. Estava lá, de pé novamente. No meio da sala de estar, observando a porta da cozinha e chorando. Dor de cabeça. Estava me matando desde a noite passada. Minha enxaqueca tinha voltado. Eu não sentia dores desde o último agosto, mês em que tentei suicídio, de novo. Caminhei até a parede mais próxima, impulsionei minha cabeça para trás e joguei para frente, batendo com força no concreto duro começando a deixar marcas. Sentia um líquido quente escorrer por minha testa.
- Por que está fazendo isso? Você sabe que nunca vai parar.
- Quem é você? – perguntei a pequena criança com roupa dos anos 1920 que havia parecido no corredor.
- Um velho conhecido seu.
Capítulo 3
- Eu te dou um conselho, mas é essencial que o siga. – disse a mim o pequeno menino que estava sentado no sofá da sala. Seus pés não tocavam o chão, ficavam balançando no ar com seus sapatinhos feitos à mão.
- Pode falar.
- Você deveria tentar ignorar.
- Como assim? – perguntei sem compreender.
- Quando tiver dúvidas, questione! Não existe verdade absoluta e nada é tão óbvio que não possa ser questionado. A vida, não é feita de uma, mas sim de várias coisas e todas essas, fazem parte de milhares de outras. Ou seja, não existe uma verdade pré-estabelecida e nem nenhuma lei contra e/ou a favor de algo que não existe.
Fiquei refletindo alguns segundos sobre aquilo que acabei de ouvir, então simplesmente olhei para a criança, que esperava minha reação com olhos de desconfiança infantil e sorri. Sorri como nunca tinha sorrido antes.
- Eu sabia que entenderia.
Dito isso, ele se levantou e foi embora. Fiquei ali sentado, refletindo sobre tudo. Tudo mesmo. Quem eu poderia ter sido, tudo que poderia ter acontecido. Mas agora já era tarde demais para voltar atrás.
Acordei, mas não olhei para o relógio. Levantei e fui até a cozinha, abri a geladeira, mas não bebi nada. Meu corpo estava dolorido, cada movimento era um grito que não tinha som. Puxei uma das cadeiras da mesa, fechei os olhos e apoiei a cabeça em minhas mãos. Chorei, mas não saíram lágrimas. De repente, em um impulso humano, senti que o oxigênio estava acabando, saltei da cadeira e agarrei a maçaneta da porta. Então puxei. E a porta abriu.
E então, eu abandonei a igreja, parei de ler a bíblia e de assistir televisão. Resolvi tomar minhas próprias decisões.