O Susto

Se há alguma coisa que consiga arruinar definitivamente um casamento é a diferença de opiniões, ou, pior ainda, a diferença de gostos entre um casal. É dito que se casa porque há afinidades. Por outro lado, dizem que os opostos se atraem. É preciso, em primeiro lugar, descobrir quais são estes opostos antes que, o que prometia ser um conto de fadas, ou no mínimo, uma união harmoniosa, não venha a se transformar numa guerra de gênios e até ser o estopim deflagrador de uma separação. Descobrir as afinidades é muito fácil e tudo segue as mil maravilhas; uma coisinha ou outra de que um gosta, e outro não, geralmente é posta de lado depois de uns breves comentários de ambas as partes explicando as razões porque não gosta disto ou daquilo. Depois o assunto é posto de lado para não estragar a felicidade dos dois pombinhos que estão se amando tanto. É neste ponto que mora o perigo. É primordial, para evitar aquelas tempestades que tanto abalam o casamento, por tudo em pratos limpos, enquanto ainda há tempo

Quanto a mim, só fui descobrir verdadeiramente o ódio de minha mulher por futebol depois de já estar casado. Antes ela não manifestara a sua ojeriza, talvez por medo de me perder. Amávamo-nos loucamente e eu, enfeitiçado por este amor, fora cego as suas atitudes, discretas por sinal, em procurar fazer-me esquecer de minha segunda paixão. Mas, se era louco por ela, não era menos por estádios lotados ou um final de tarde grudado na televisão, a torcer pelo time do meu coração. Em dois anos de namoro e três de noivado, Leandra só me acompanhou ao maracanã uma única vez, e só o fez, fiquei sabendo mais tarde, devido ao ciúme que tinha da namorada do meu melhor amigo. No mais, suas reações eram as mais amenas possíveis; vivia me dizendo que gostava de tudo em mim e respeitava todos os meus gostos, até mesmo se eu tivesse algum que não agradasse a ela.

- Continuará me amando do mesmo jeito, mesmo sabendo da minha paixão? - perguntei uma vez.

- Sua paixão faz sexo com você e beija melhor do que eu? - levava assim para o lado do humor todas as vezes que tocávamos no assunto.

Casamos. O primeiro ano não poderia ter oferecido felicidade maior. Chegamos mesmo a assistir juntos a algumas partidas e ela curtia na medida da sua tolerância. Os anos foram passando, vieram os filhos; continuamos um casal comum, com brigas comuns a quase todos os casais até a idade de cinco anos de Lilian, nossa primeira filha. Se há um passatempo que detesto cuja aversão esta diametralmente proporcional a minha paixão por futebol é visitar um jardim zoológico. Quer ser meu amigo, chame-me para uma boa partida de futebol, um jogo de carteado ou mesmo assistir a um desenho dos Simpson na sua residência. Mas não me convide para ver um macaco se coçando e me fazendo caretas, num belo domingo de sol, pois poderá receber um “não” acompanhado de um comentário mal educado.

Graças a Deus nunca tive este tipo de convite feito por um amigo, mas, adivinha quem me convidou? Minha própria filha. Seria até natural se ela soubesse que esse passatempo (será que chamei isto de passatempo?) existe. Mas não sabia, pois eu nunca me preocupara em revelar a Lilian que, infelizmente, existe um lugar assim. “Isto só pode ser coisa da Leandra” pensei. E com razão, porque o dia seguinte seria domingo, pelo qual vinha esperando há semanas; aguardando com ansiedade. Final de campeonato no maracanã e o meu time adorado estaria jogando tudo por mais um título.

- De onde a menina foi tirar essa ideia, justamente na véspera da decisão? - perguntei aflito, a minha mulher.

- Talvez de alguma revista ou de algum programa na televisão - disse Leandra, de um jeito que não conseguiu me convencer; impossível a uma criança de cinco anos saber o que é um jardim zoológico sem que alguém a explique em detalhes.

- Não poderia ter escolhido outro dia? Amanhã é a decisão.

- O que está querendo insinuar? Está bem, fui quem falou sobre

o jardim zoológico. Espero que não negue esse pedido de nossa filha; você sabe como é criança.

- Mas, e o jogo? - falei quase em súplica.

- Há outros domingos; e não nos peça para adiar o passeio. Sei que você vai sempre arranjar uma decisão para sair de casa aos domingos. Neste, pelo menos, sairá conosco.

Naquele momento, começaram a me vir à lembrança as cenas do nosso passado e, ao mesmo tempo, a brotar em mim sentimentos negativos em relação à vida de casado. Sabe como é, aquela sensação de impotência; digo, impotência diante de situações como aquela. Fiquei sem reação. Fora tão inesperado o fato que não sabia como lidar com ele, ali, naquele momento. Como eu disse, foram anos sem um desentendimento que merecesse mais atenção, mas, aquele...

- Então, o que decide? - ela perguntou, mas já mostrando no olhar aquele sinal de vitória.

- Já está decidido.

- Ótimo, nossa filha vai ficar contente.

- Vou ao futebol. Podem me acompanhar se quiserem. Domingo que vem levamos Lilian para conhecer o jardim zoológico. - Ela nada disse, mas, pelo que já conhecia de Leandra, eu acabara de arranjar uma inimiga, a não ser que mudasse de opinião. Ou de atitude.

Bem, de opinião eu não mudaria nunca, por nada neste mundo. Fui ao futebol. Mas tive que pagar o preço durante uma semana inteirinha. Este veio em forma de mau humor de Leandra, pirraça e choradeira de Lilian e, o que foi pior, greve de sexo. Se tivesse imaginado que amar um esporte pudesse trazer esse estrago para a vida a dois, acho que teria me casado, sim, mas com a torcida do meu time do coração ou com a camisa dez do meu ídolo. Seriam estas as minhas únicas paixões. Poderiam não cozinhar para mim ou fazer sexo, como disse uma vez Leandra, mas, e isto é certo, jamais me convidariam para visitar um jardim zoológico; não num dia de clássico.

Não é preciso dizer que tive que ceder para não pedir o divórcio. Cheguei a estudar um jeito de entrar num acordo com as duas, mas nem isso deu certo. Conheci então o verdadeiro ódio de Leandra por jogos de futebol; não pensei que o seu ciúme chegasse a tanto. Quando consegui penetrar no real motivo de sua rejeição, senti que meu casamento estava se aproximando do fim. Teria que abrir mão de uma paixão ou de outra; não via como conciliar as duas. Vou contar como aconteceu.

Ficava às vezes em casa dois domingos seguidos, sem assistir às partidas, nem mesmo pela televisão, o que me trazia paz e felicidade. “Acho que quem inventou o futebol não gostava de casamento” pensava eu, satisfeito. É claro que não havia clássico com meu time nem jogo importante para a nossa classificação. Por que raios então não me convidavam para sair? Eu aceitaria com prazer, até mesmo para o jardim zoológico; mas, não. Leandra queria testar minha paciência ou, quem sabe, o meu amor por ela e por minha filha; vai entender de mulher!

Tramava com Lilian para me convidar justo quando sabia que haveria meu jogo ansiado. Então, não teve jeito: perdi o clássico, o primeiro da minha carreira de torcedor fanático e depois, outro, e outro ainda. Troquei os craques e as jogadas geniais por gorilas malcriados e suas artimanhas sem graça. Eu andava tão tenso, ate quando andávamos no parque (será que chamei aquilo de parque?) que só falava aos gritos com as duas espertas. Lilian admirava os leões, mas os rugidos que ela ouvia não vinham deles, mas de mim, atrás dela.

- Para trás, sua estrambelhada! Quer virar comida de leão?

- Eles comem gente, papai?

- E ainda lambem os beiços. Experimente ficar frente a frente com um deles. - Ela ficou branca apenas com as minhas palavras. E eu acabara de ter uma ideia. Mas, será que teria coragem de fazer isto com minha própria filha? Pior que tive. E não pensei duas vezes. Tudo para ter de volta a minha paixão.

Domingo lindo de sol. Final de campeonato. E quem vai disputar? Meu time do coração. E, onde é que eu estou agora? Olhando para os macacos, as zebras e os elefantes de sempre. “Aquele ali está até mais gordinho” pensei, indignado. “Mas, não me importo, hoje é a minha vingança”.

Consegui me afastar um pouco delas. Fui até o carro e tirei do porta malas, bem escondidinha, a minha fantasia de leão, com juba e tudo, e fui para o banheiro dos homens. De lá, fiquei aguardando as duas. Funcionou. O meio litro de laranjada que comprara para Lilian fez o efeito em sua bexiga. Ao ver, de longe, a aproximação das duas, corri para dentro e me tranquei rapidamente.

Aconteceu como eu queria. A menina saiu primeiro e, enquanto aguardava a mãe, não perdi tempo: pulei para fora e me mostrei a ela, é claro, imitando o rugido característico, muito amador, mas com o efeito que eu pretendia. Lilian - coitadinha da minha filha! - soltou enorme berro e, quando a mãe veio em socorro, eu já havia sumido.

- O leão, mamãe! O leão queria me comer!

Foi o suficiente para esquecerem, de uma vez, que existe na cidade algum lugar chamado jardim zoológico. Foi o suficiente também para acabar com o meu casamento. Não com Leandra, mas com a minha torcida e o meu time do coração. Mesmo sem conciliar, vejo um joguinho de vez em quando - pela tevê, somente - mas, sem aquele entusiasmo de sempre. Meu time está sempre atrás, não ganha campeonatos. Depois de virar casaca, vou vivendo feliz assim, tanto no casamento como no futebol, torcendo pelo Olaria.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 22/05/2012
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