_O olho de vidro

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Mãe! Mãe! – grita o menino. – Meu olho caiu!

Sem entender o inesperado chamamento, D. Zica, assustada, dirige-se até a sala. A cena era grotesca: em pé, o jovem segurava o olho direito com uma das mãos e, na ponta dos pés, dava saltos espaçados a cada novo pedido de auxílio:

– Meu olho, mãe! Ah, meu Deus! Espirrei e o olho esbugalhou. Por favor, mãe, ajude aqui!

– Calma, meu filho!

O adolescente, com a mão espalmada para cima em forma de súplica e segurando o olho que pendia fora da órbita, consumava outro estágio do sofrimento daquela família – desde o acidente, lutavam contra os prognósticos na tentativa de livrá-lo da parcial invalidez. Aos poucos, entretanto, a mãe percebia o pequeno e franzino filho, o mais novo do casal, perdendo, gradualmente, a visão.

“O impacto da castanhola, senhora, afetou a câmara localizada na parte anterior do olho, alterando a pressão interior, manchando a córnea e reduzindo imediatamente a visão; a íris foi danificada e houve deslocamento do cristalino” – D. Zica já reprisara incontáveis vezes a explicação dada pelo médico plantonista na emergência do Hospital... Voltando do transe, temporário desligamento da real situação, e buscando forças para não desmoronar, a mãe percebia a gravidade do infortúnio: o filho perderia não apenas a visão, mas o olho também.

Levaram-no ao hospital. Os médicos tentaram recompor as estruturas do globo ocular, mas o – já – debilitado olho não resistiu, desfalecendo. Imóvel, fulminando o teto do centro cirúrgico, uma das partes do corpo de Vesgo estava morta, merecendo justas honras fúnebres.

Abrem o jazigo da família. Limpam as covas dos familiares mortos e se preparam para o sepultamento. Aparece o féretro do patriarca da família; ao lado, dois outros caixões enfeitam o mausoléu. Vesgo pega o olho que estava guardado dentro do bolso e o coloca no túmulo, em cima do caixão do avô. As avós ensaiam algumas ladainhas, Fabbio faz o sinal da cruz por três vezes e D. Zica, confortada pelos braços do marido, comenta diante de todos:

– O sonho de ver meu filho se tornar oficial do Exército acabou!

Vários outros sonhos findavam ali. A cerimônia enterrava a matéria, mas a dualidade se complementa no incorpóreo.

Um a um todos desapareceram. Vesgo resolveu ficar. Dentro do sepulcro, agora protegido pela camada de concreto, o olho permanecia aberto, voltado para cima, divisando na escuridão da morte a plenitude da vida interrompida.

Os dias parecem inexpressivos, sem força. A alegria está distante de Vesgo – apesar da notoriedade causada pelo tampão ocular, tornando-o o pirata do bairro e da escola, ele anseia pela prótese ocular que lhe restabelecerá minimamente a estética perdida. A demora valeu a pena. Com o olho de vidro nos moldes atuais, mudando o formato de redondo para outro mais sutil, o resultado surpreendeu a todos.

Segunda-feira. Oito horas da manhã. Duas viaturas da Polícia Civil se aproximam da Rua Pupilas de Outono, 33. D. Zica atende ao chamado da campainha:

– Bom dia, senhora! Por acaso isto aqui é do seu filho?

– Ah, meu Deus, que maravilha! É dele, sim! Estávamos angustiados desde sexta-feira. Obrigada! Meu filho retirou a prótese para tomar banho na escola depois de jogar bola com alguns amigos e quando voltou tinham levado o olho por brincadeira. Ele quase fica louco de tristeza...

– Lamentamos informar, senhora, mas além do olho encontramos o corpo de uma garota. E o olho do seu filho é a única prova que temos. Precisamos levá-lo para depor. Ele é o principal suspeito.

– Não! Meu filho não matou ninguém...

– Temos um mandato, senhora, e precisamos entrar.

– Ele ainda está dormindo, por favor, não façam isso...

Os policiais entram e conduzem Vesgo até a delegacia. Os burburinhos nas imediações demonstram a felicidade estampada nos rostos dos amigos e vizinhos.

Na delegacia, iniciam os questionamentos:

– Isto realmente é seu, garoto?

– É!

– E por que o deixou na escola?

– Não deixei. Esconderam. Pode me devolver, por favor? Preciso usar minha prótese.

– Quem matou a garota? – o policial faz a pergunta no mesmo instante em que entrega a prótese ao interrogado.

Vesgo pega o olho e solicita autorização para lavá-lo. Ao recolocar a prótese, assusta-se: o olho se conecta de modo diferente, parecendo armazenar informações. Ele fecha o olho esquerdo e surge diante dele e dos policiais, projetada na parede, a cena do crime.

Crato-CE, 15 de maio de 2012.

23h43min

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 16/05/2012
Reeditado em 18/05/2012
Código do texto: T3670535
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