Talismã

Quando Silvana abriu os olhos soube imediatamente estar em um sonho. A idéia ocorreu de modo natural e não a surpreendeu. Sempre quisera saber como era estar consciente dentro de um sonho e pelo jeito aquela seria sua chance.

Ciente do que se tratava começou a analisar o ambiente. Estava numa gruta, com água cristalina e morna chegando até os joelhos. Sua vestimenta consistia de um tecido claro, sandálias simples e um cordão negro amarrado ao pescoço. Preso nesse cordão, presente de sua mãe, estava um longo canino, a presa de um animal desprevenido. A frente uma luz pálida entrava por uma passagem, permitindo-a ver todas as nuances das pedras sob seus pés. Ela deu dois passos naquele cenário, sentindo a água morna esfriar e ir esfriando conforme caminhava em direção a luz.

Atingiu o exterior e de pronto notou que a luz que a tocava era fruto de uma gorda e exuberante Lua dourada. Pendurada contra um céu negro e sem estrelas, ela lançava raios mágicos em todas as direções. Silvana ameaçou mais um passo quando seu sonho deu um revés, como sonhos normalmente dão, fazendo-a perceber que sua gruta estava pendurada nas paredes de um imenso penhasco. Abaixo, um mar revolto lançava ondas devastadoras contra a encosta deixando como única saída um caminho estreito e perigoso que contornava o paredão de pedras levando para cima. Silvana temeu por um momento, então lembrou que tudo não passava de um sonho e avançou.

Mesmo com a temperatura tendo caído a patamares desconfortáveis seu corpo não se incomodava, nem quando o vento passou a chicotear seu rosto, silvando ao passar por seus ouvidos. As pedras caíam a sua passagem, aos poucos desfazendo o caminho pelo qual seguira. Mesmo percebendo isso Silvana não se preocupava, uma estranha tranquilidade a dominava, envolvendo-a com a mesma ternura de um abraço.

No topo do penhasco encontrou uma floresta, com troncos raízes e cipós imensos. Mas por mais que sua enormidade impressionasse algo diferente atraiu sua atenção... Luzes. Minúsculas e vermelhas luzes, brilhando docilmente a sua esquerda. Silvana procurou por um caminho entre a confusão de raízes e seguiu paralela ao penhasco e a floresta, esperando encontrar a fonte daqueles pontos tão belos.

Contudo algo estranho aconteceu, um pinicar em sua pele que logo envolveu todo o corpo com um nervosismo súbito. E tão súbito quanto o nervosismo foi seu sonho ter sofrido um espasmo, substituindo a grande floresta prateada por um cenário seco, com esparsas árvores secas irrompendo do solo como condenados nos jardins do inferno. O penhasco ainda continuava a seu lado, mas as pedras eram agora mais pontudas e o mar agitou-se como se um tornado estivesse a caminho. Teve vontade de virar e voltar à sua gruta mas o sonho a levava para frente, rumo as luzes que a cada momento se tornavam mais intensas e mais assustadoras.

Silvana sentiu algo às costas e controlou a tremedeira que ameaça assolar-lhe. Temia virar a cabeça e ver o que a perseguia. Não demorou para que seus olhos, brilhantes com a beleza do que vira até então, mudassem para o pavor puro. Lágrimas nervosas rolaram pela face enquanto ela se esforçava para olhar apenas para frente. A respiração acelerada agitava o sangue transformando-o em corredeiras dentro das veias. Silvana aumentou o ritmo, passando de uma caminhada apressada para uma corrida desenfreada, passos atrapalhados que a levavam cada vez mais perto da cidade dos pontos vermelhos.

Mas houve algo que a fez esquecer completamente do que a perseguia, levando-a a reduzir o passo até parar. Tudo porque finalmente conseguia distinguir formas entre os pontos vermelhos. Ela perdeu as forças caindo de joelhos contra a terra seca, a mão indo até a boca e sufocando um grito desesperado. Não era possível estar vendo aquilo...

Os pontos vermelhos pertenciam a criaturas que não deveriam existir. Criaturas disformes e bizarras. Monstros que existiam no limiar entre o humano e o animal. Feras com proporções grotescas. Todos com cavidades oculares vazias, exceto por um único ponto vermelho que brilhava ardentemente no interior de cada uma delas. Esses pontos convergiam e miravam Silvana com potência suficiente para atingí-la até a alma. A mulher não esperou para ver o que aqueles seres amaldiçoados fariam, virou e começou a correr na direção contrária, esquecendo que o desespero que a movia instantes atrás continuava a seguí-la.

E foi exatamente com esse desespero que se chocou...

Por algum motivo era difícil distinguir a imagem, não sabia se a Lua enfraquecera seus raios ou se a maldade que rodeava o ser tornava difícil sua identificação. Via apenas uma figura humanóide e magrela, a textura da pele escamosa e úmida. A cabeça era imensa devido duas cavidades oculares que, como os demais demônios apresentavam, eram vazias, à exceção de dois pontos luminosos que nesse demônio em questão eram dourados. A criatura esticou um braço com dedos longos e deformados na direção de Silvana, que enfraquecida voltou a tombar. A mulher fechou os olhos com força fazendo uma prece baixa, um pedido louco e desesperado de que aquele sonho maluco findasse. Suas mãos apertaram o longo canino num gesto instintivo e com isso Silvana invocou a proteção com que a mãe lhe abençoara. Assim que terminou o pedido sentiu entre os dedos o talismã queimando como se tivesse novamente ganhado vida.

Ao abrir os olhos havia uma segunda criatura a sua frente, interpondo-se entre ela e o bizarro ser humanóide. Um lobo imenso e branco, com pêlos tão longos que esvoaçavam docilmente ao sabor dos ventos turbulentos de seu sonho. O animal virou um focinho gigante para ela e seus olhos brilharam como dois diamantes lapidados. Houve um momento de contemplação entre Silvana e o lobo, como se eles fossem dois velhos amigos que se encontravam depois de muito tempo.

O animal voltou a encarar o humanóide soltando um rosnado baixo. A criatura por sua vez deu alguns passos para o lado obrigando Silvana a se levantar e fazer o mesmo, sempre deixando o grande lobo entre eles. As mãos apertavam com força o talismã dado pela mãe, sua salvação. Silvana parou somente quando os demais demônios se agruparam junto ao demônio alfa, encurralando a ela e ao lobo contra o penhasco, uma queda sem fim para a arrebentação abaixo.

As criaturas agrupadas deram um passo a frente obrigando Silvana e o lobo a recuar. A apreensão recheando a atmosfera com uma energia carregada. Não havia para onde correr, os demônios cercaram a dupla em um semi-círculo que a cada passo ia ficando menor. Silvana arriscou mais um passo que por muito pouco não se transformou numa queda. Quando se recompôs viu que o grande lobo deixara de mirar os demônios para encará-la. Mulher e animal se perderam em pensamentos distantes, pensamentos de um mundo esquecido, e na solidão daquele momento Silvana e o lobo se tornaram um só.

E ela compreendeu o que o animal queria fazer.

Ela não temeu, abrindo os braços para a fera. O lobo avançou e seu pêlo balançou tomado por uma corrente ascendente, os demônios perceberam o ato e também avançaram, a raiva estampada em suas faces, fazendo as luzes em seus olhos arderem como se estivessem em chamas.

Silvana fechou os olhos quando o gigantesco animal lançou-se contra ela usando seu peso para arremessá-los penhasco abaixo. Abraçou o salvador sentindo o corpo morno contra o seu, deixando os braços afundarem nos pêlos albinos enquanto os ventos da queda chiavam em seus ouvidos durante a vertiginosa descida. Chegou a sentir as minúsculas gotículas de água contra o rosto, o som devastador das ondas enchendo os ouvidos...

Então acordou.

Estava de volta a sua cama, os lençóis e a camisola empapados por tanto suor que por um momento temeu uma desidratação. A arritmia acusava o desespero que ainda não a abandonara. Sentou na cama ainda letárgica sentindo o talismã sobre o pescoço e, num gesto de ternura, tocou-o fazendo uma prece de agradecimento. Não se assustou ao sentí-lo quente como em seu sonho, também não se assustou quando, olhando mais de perto, viu um longo pêlo branco preso contra o cordão.

Gantz
Enviado por Gantz em 17/04/2012
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