Passos na noite... (republicado a pedido)
Alta madrugada. Altas horas de insônia, põe-se passo-a-passo e volta à geladeira, quase vazia, para beber a última cerveja. 0 calor impede a brisa que insiste em querer entrar pelas frestas da janela. Um chinelo confortável dá o tom aos seus passos. Do peitoril da janela é possível ver que a rua está deserta, apenas restos à deriva dá a impressão de que tudo terminara. Como que empurrada pela intuição, a porta abre-se e a rua o convida para um passeio. De um beco escuro, iluminado por um raio da lua, um vulto se acentua, sem definição; será assombração? Coragem! Dita o ego. Receio, só se for do “bicho homem", tudo não passa de obra da imaginação. Com a alma aprisionada, o rumo é alterado. Agora, só, sem rumo. Poucos ruídos, quase inaudíveis, não perturbam a melodia ouvida através da janela entreaberta. Quem vem lá? De súbito os passos são interrompidos. Quem ousa interromper os limites da prudência? Um voz grave faz cessar o pio da coruja no alto do poste. Explicar, justificar, que apenas se estar divagando sob a capa do espírito, pouco, ou quase nada, adiantaria. Silêncio profundo. O calor penetra suas entranhas. Sutis gracejos são percebidos como um regozijo de um reencontro. São almas que vagam em busca de novas companheiras para completarem a jornada, em companhia daqueles que fazem parte do clã. Segue adiante, sem ser mais interrompido. Caprichosamente o morador de rua acomoda a caixa de papelão, transformando-a num confortável colchão. A madrugada avança a passos largos. Gatos, cachorros e ratos se misturam aos indigentes que buscam a melhor fatia do bolo que restou. Nem luz, nem sombra, apenas a penumbra se alastra pelo logradouro úmido, e mau cheiroso. O pulmão se esforça para captar uma réstia do ar puro que se desprende do orvalho. O cheiro forte de amônia revolta o estômago. O som forte de uma sirene rasga a noite, e anuncia mais uma imprudência de alguém que corria em busca da felicidade. As aflições se acentuam, derrubam os limites, os infratores agonizam. Objetos cognoscíveis, numa sombra pálida, revelam que o ter foi ridicularizado, o consumo é desenfreado. Indícios da razão pura leva a aceitar a ordem que se instala no caos da madrugada. Exposto ao relento, o corpo luta para encontrar o norte, enquanto um frio desce pela espinha e anuncia Sua Eminência a Vigia Morte. Inevitável confronto. Controvérsias se explicam e tentam revidar. Infortúnio. Um estampido anuncia que a trajetória iniciou-se; onde será que vai se alojar? Não longe do coração da rua, ouve-se um abafado gemido, sem tempo de explodir em grito. Dor, sangue, agonia, mais uma vítima se faz da bala sem rumo. Tudo em volta se torna atemporal e anespacial, o tempo e o espaço foram deixados na agonia da noite. Uma sensação estranha diz que somos eternos, que nem anunciou Espinoza ao afirmar que Deus e Nós é uma mesma realidade. A experiência é que passa a indicar o rumo dos passos. Ainda haverá tempo de rever a verdade na argumentação? Ainda haverá valor na razão sob a crítica do conhecimento?