O Enigma que traz as Baratas – Clarice invade os Pesadelos de Kafka.
A sexcentésima sexagésima sexta história chama-se “O Enigma que Traz as Baratas”. Começa assim: queixei-me de baratas...
Gavetas, armários, sapatos, livros,banheiro, cozinha. Nem sinal delas. Espalhei o veneno por toda a casa. Esperei o banquete das minhas vítimas, elas não resistiriam. Minha previsão se confirmou, aos poucos elas foram aparecendo e devorando a mistura de gesso e açúcar, receita infalível que uma velha meio estranha havia me ensinado enquanto revirava a prateleira de inseticidas do supermercado. Aos poucos iam enrijecendo, uma a uma, petrificadas, troféus a premiar minha vitória. Era uma vez baratas. Senti-me vingado. Não sei exatamente do que ou de quem, contudo, senti-me vingado. Porém, naquela noite, demorei conciliar o sono e quando adormeci, tive um pesadelo estranho.
Estava eu numa estranha embarcação, uma espécie de canoa gigante, cheia de passageiros. De súbito, fomos atingidos por uma ventania. Procurei resguardar-me e, só então, percebi que estava completamente nu. Morrendo de frio e vergonha, busquei abrigo atrás de umas malas na proa. Todos me olhavam, alguns com gracejos outros com protestos, revoltados com a minha nudez. Desesperado, voltei-me para pedir ajuda ao passageiro do banco de trás, quando, para meu espanto, notei que algo estranho acontecia com o seu rosto. Seus olhos saltaram das órbitas como imensas abóbodas, sua boca, agora disforme, ganhara um aspecto monstruoso. “Antenas! Deus! São antenas!” O mesmo acontecia com os outros passageiros. Asas, pares de asas... “São baratas! São baratas! Baratas!”
“Mas vocês estão mortas!” Gritei triunfante. Todas se aproximaram e sopraram ao meu ouvido: “Não, você é que está morto!” Uma delas tirou o casaco e escondeu a minha nudez. Logo percebi que aquelas roupas eram minhas. Riam desvairadas e gritavam: “Descobrir um morto para cobrir outro! Descobrir um morto para cobrir outro!”. Perdi os sentidos.
Quando acordei, me vi numa mesa cercada de baratas. Ou seriam humanos? “E o de dentro dele?” Perguntou alguém. “Vamos descobrir agora”. E o coro “Disseca! Disseca! Disseca!”. Senti, então que algo ia crescendo em minhas entranhas a rebentar-me as vísceras, Fez-se um silencio sepulcral. Todos esperavam o que sairia de dentro de mim. “Vou explodir! Vou explodir! Vou explodir!” E, no momento exato da explosão... Acordei.
Gavetas, armários, sapatos, livros, banheiro, cozinha. Procurei por minhas vítimas-algozes pelos cantos e canos da casa e, ao encontra-las, percebi que já não havia mais o asco ou medo dantes. Pelo contrário, senti crescer um sentimento de ternura e amor em mim. Alguma coisa me era familiar naquelas criaturas. Acho que sou uma delas, melhor, acho que todos nós somos. Mas, até hoje sou atormentado pela dúvida: O que sairia de dentro de mim naquela explosão? Imaginei as minhas vísceras espalhadas pelo teto e o sangue, muito sangue... Não, pensando bem... Baratas não sangram.