Desconstruindo o Carnaval

Havia dois pares de lâmpadas em cada lado das paredes opostas. Estranhamente, aqueles jorros de luz amarelada, de certa nostalgia do século XIX, transpassavam as lentes circunflexas de minha armação e distribuíam um brilho incômodo por minha visão: uma refração torta que parecia alfinetar levemente as pupilas.

Esse engodo me forçou a retirar os óculos. Sem eles, a miopia, que costumeiramente fazia-se perceber somente na atmosfera de escuridão nos minutos últimos do dia, ergueu-se então imponente, alertando-me que enquanto houvesse luz, estaria cego.

Saí da sala de cinema às 21 horas da sexta-feira que antecedia o feriado. Na verdade, que antecedeu, pois não é possível que continue a anteceder algo que já não mais existe, mas também não soa correto ter antecedido algo e depois não mais, apesar disso ter de fato acontecido, de certa forma.

A chuva fina caía retirando o “mugre” - conforme os “hermanos” costumam chamar – da superfície maltratada da Avenida Paulista. Os prédios esticavam-se em sua circunspecção, refrescando-se ao suave gotejar que produzia estalidos naquelas estruturas vítreas de aspirações pragmáticas. E não havia poesia alguma em tudo isso. O concreto era frio tal qual o trabalho dos homens que o executaram – apenas mais um meio para se chegar a um fim. A forma não transcendia e apenas jazia ali, quadrada em seu intuito, no seu lugar designado pelo homem no universo, segundo o qual, cada coisa deve estar em seu devido nicho.

Mas, ainda sim, pequenos homens de olhos opacos e feições devastadas paravam por minutos a contemplar a imensidão de pedra e areia moldadas. As janelas de suas personas escancaravam-se emitindo um radiante brilho e por dentro desse um salão de gigantescas tapeçarias vermelhas adornadas com signos de dragões purpúreos que abafavam os ruídos dos calçados que se entrecortavam abaixo, num baile repleto de máscaras polimórficas e protuberantes narizes. No entanto, passados os minutos, o olhar desponta ao chão, que até há pouco deixara de existir, para não vê-lo, mas tocá-lo. E mesmo nesse estado – quando o transe é suficiente em acordo das necessidades – um sorriso discreto, de grande delírio camuflado, emerge na extremidade dos lábios para mover os tais homens, que agora mal cabem em si, a mais um dia retilíneo.

- O que é a beleza pra você? – Um jovem de lentes escurecidas pelo sol pergunta, enquanto leva o indicador ossudo ao topo do nariz, endireitando a armação que pendia desconfortavelmente.

- Eu pequei. – A voz áspera transpassava o confessionário.

- “Pra você”? Não é um bom começo, hein? – O velho de barbas grisalhas espreguiçava-se nas gramas do parque – Toda discussão subjetiva acaba matando a lógica e afundando no vazio.

- Como, meu filho? – O interlocutor mantinha um tom arrastado. – Contar te fará bem.

- Quer definir o que é belo de maneira lógica? – Um riso controlado e tremulo emergia em sua face.

- Eu traí minha mulher – A gravidade das palavras tornava-se inteligível.

- Não quero nada. – Permanecia estático – Só não posso discutir nesses termos.

- Por que fez isso?

- O que é a beleza? – Os olhos tornaram-se fixos.

- Minha mulher é estéril – A respiração pesada pode ser ouvida – Quando descobriu, entrou em depressão. – Pausa – Eu quero ter um filho, padre. Aí me envolvi com a outra. – Levou às mãos a cabeça.

- Aquilo que é natural.

O lirismo sempre fora parte da vida de alguém que saí do cinema às 9 de uma véspera de feriado, sozinho. Quando a arte é expressiva por si só ao almejar a transcendência, sem nada dialogar diretamente.

- Que isso? – Os grandes olhos azuis fitavam agudos.

- Quanto que´cê pagou nisso? – A face repleta de sulcos agitava-se.

- Por quê? – O homem alto de penugem adormecida respondia de olhos semi-cerrados.

- 200.

- É esquisito.

- Puta merda, da onde tirou esse dinheiro?

- Não importa. Pra mim, parece bonito.

O homem ficava ali sentado, segurando a própria perna. Não pedia dinheiro e nem estava mal vestido. Eu estava pior. Não vi nenhum daqueles potes de plástico sujos com algumas moedas. Não. Só ali, segurando a própria perna. Não falava também. Tomava café e não consegui desviar o olhar. Sentado num círculo desenhado na calçada pelo piso velho, segurando a perna. Pedi a conta. A perna apontava pra cima, era desconfortável, não tenho dúvida. Podia estar com cãibras. Mas, não tentava esticar. Só segurava. Saí da padaria e tive de perguntar “tá tudo bem, moço?”, respondeu que “sim, posso te ajudar com alguma coisa?”, “não, não” eu disse, “mas, por que está ai sentado?” e com um olhar desconfiado, “esperando pra voltar ao trabalho, hora de almoço”, apesar de continuar ali parado.

- Inteira ou meia?

- Meia, quanto é?

- 14. A carteirinha.

- Aqui.

Analisou com os dedos nodosos – Tá certo, bom filme.

- Obrigado.