Viagem ao passado.
Estava caminhando pela rua onde morara a avó, tinham-se passado mais de trinta anos desde que ela também morara ali. Era uma rua calma, onde todos se conheciam e moravam havia anos nas mesmas casas. Ainda se lembrava como foram morar ali. Ela estava entrando na adolescência. Ela e os pais moravam até então em outro bairro, já fazia uns treze anos, mas a casa velha de madeira que parecia nunca ter sido pintada, com suas paredes cinza estava agora condenada. O dono iria demolir. Então foram morar naquela casinha de madeira não muito melhor que o casarão antigo. Os avós tinham um terreno grande, com três casas construídas. Eles morariam na frente, por pouco tempo dissera seu pai. Tinham feito um bom negócio com mudas de café e finalmente teriam a tão sonhada casa própria. Teriam que esperar apenas alguns poucos anos e de fato três anos depois se mudaram para a casa dos sonhos: cortinas novas, vários quartos, cozinha enorme, chão que não precisava encerar, brilhante e lustroso.
Mas os anos que viveu ali, naquele quintal da avó ficaram marcados em sua memória. Muito fortemente, percebera ela ao entrar na velha rua. As casas ainda permaneciam iguais, mas seus donos já se tinham ido embora dessa vida, um a um foram morrendo e deixando em seus lugares netos todos desconhecidos dela, muitos ela nem saberia dizer se eram filhos ou netos dos antigos vizinhos. Quase tudo mudado. Quase, porque os bares da esquina, onde eles compravam pão, ainda estava lá, o antigo dono e a esposa já haviam morrido também, o filho agora tomava conta, e na verdade se assemelhava muito ao pai, o que dava ao lugar algo de imutável. Como se o tempo não tivesse passado ali. Ela entrou na rua, cumprimentou alguns que a reconheceram. Aos poucos a paisagem foi mudando e as velhas casas vazias foram ganhando vida, a mesma vida de trinta anos atrás. Seria possível? Chegou em frente a casa avó, e o quintal era o mesmo, as mesmas flores, o mesmo banquinho de madeira, onde passava horas olhando as pessoas na rua, e quando a mãe ou a avó estavam junto com ela, sempre parava uma velha conhecida e ela gostava de ouvir as conversas.
Empurrou o velho portãozinho de metal, foi até o muro lateral e viu a vizinha, uma senhora gorduchinha e doente apesar de que ninguém acreditava que fosse de fato doente, sempre ouvia a avó dizer que era só preguiça. Afinal o marido era quem cuidava de tudo. Almoço, crianças, limpeza da casa... e ela, não fazia nada além de reclamar e pentear seu seboso cabelo.
Ela se espantou de ver tudo igual, a casa da vizinha estava lá ainda, tal qual trinta anos atrás. Como seria isso possível? Andou beirando o muro e a horta da avó ainda estava verde e cuidada, as couves, as cebolinhas e salsinhas estavam lá, como era havia trinta anos. A mesma vegetação, as mesmas latas de flores e folhagens que a avó tratava como se fossem plantas premiadas em vasos valiosos. Eram na verdade latinhas de tinta vazia, com mudinhas vagabundas plantadas. Mas estavam lá da mesma forma como se lembrava. Entrou na casa da avó e ela estava junto ao fogão. Pensou em perguntar o que estava acontecendo. A senhora não morreu já? Mas calou-se e resolveu apenas curtir aquele Déjà Vu intenso e detalhado, na verdade nem era isso, era mais como voltar no tempo. A avó lhe ofereceu um café, mas não do mesmo jeito mal humorado de quando morara lá. Isso havia mudado, ela estava doce e gentil. Adorou essa nova avó. Sentaram e conversaram como adultas. Num relacionamento diferente de como era no passado. A avó agora parecia de fato uma velha senhora sábia calma e pronta a ensinar-lhe coisas. Engraçado, parece que o tempo em retrocesso melhora as pessoas. Nesse universo paralelo a avó não era ranzinza e nem infantil como costumava ser. Na verdade sempre tivera vergonha da avó, pois ela falava palavrão, gritava palavras de baixo calão e sempre a provocava. Ela tinha a impressão que a avó não gostava dela. Vivia lhe atormentando com bobagens: Sabia que a herança das tuas irmãs você não tem direito? As irmãs eram filhas só da mãe, e elas tinham um avô fazendeiro que deixaria uma fazenda para elas. Ela não se preocupava com isso, sequer pensava nessa herança, mas a avó vivia lhe falando dela como se o futuro dela dependesse daquela herança da qual ela não tinha direito. Não quero herança de ninguém madrinha (não podia chamá-la de avó, ela dizia que avó lembra coisa velha). Não adianta querer mesmo, não vai ganhar. Isso a irritava, ela lembrava bem, não pela herança que não receberia, mas por a avó achar que ela pensasse nisso. Por a avó achar com seu risinho sarcástico que ela havia despertado a ganância nela, ou que ela estivesse mentindo que não queria herança. Ela sempre odiou que pensassem coisas dela que não fossem verdade. A injustiça a perturba mais que qualquer coisa.
Ela quase perguntou o que havia feito aquela mudança, mas ao invés disso, conversou com a avó normalmente. Agiu como se ela fosse daquele jeito sempre, e tomou café com ela. A avó tinha muitos animais no quintal, patos e galinhas corriam soltos para lá e para cá. Uma vez ganhou um torcicolo quando abaixou de joelho na terra para observar um patinho que correra para debaixo da casa. Foi o primeiro torcicolo que teve e nunca mais esqueceu, levou semanas para sarar. A avó nunca pareceu sensível aqueles animais que ela achava tão fofos. Para a avó eram apenas alimento sendo mantido e engordado para a ocasião apropriada. Nem mesmo o cão de estimação merecia uma agradozinho, ela havia visto a avó chutando ele algumas vezes. Os animais ainda estavam ali também, da mesma maneira que antes. Claro que hoje em dia é inadmissível criar animais soltos no quintal em plena cidade, mas naquela época, trinta anos atrás era coisa comum. Um dos patos tentou subir na varanda alta da casa, e a avó o ajudou carinhosamente. Com certeza a cara de espanto que ela fez não passou despercebida dessa vez pois a avó sorriu e explicou:
Sei que eu era muito azeda e amarga, eu mudei. Sou outra pessoa agora. Não estranhe, eu não podia estar aqui se continuasse a ser aquela pessoa grosseira que eu era. Peço que me perdoe por eu não ter sido a avó que eu deveria ser. Elas se abraçaram e um peso enorme saiu de seus ombros.
Ela desceu as escadas, olhou para trás e deu um adeus para a avó que lhe acenou de volta sorrindo. Ela voltou pelo mesmo caminho, na verdade aqueles momentos foram tão intensos que ela se esquecera que não vivia mais aquela realidade. Teve trabalho para,ao passar pelo portãozinho de ferro, voltar a realidade do tempo. Foi como um redemoinho de acontecimentos; todos seus conhecidos, mas como se a memória fosse voltando aos poucos reconstruindo sua trajetória na vida. A mudança de casa, o primeiro namorado, os choros, as notícias das mortes desse ou daquele, seu casamento seus filhos, tudo retornando aos seus lugares. E então ela se pegou de volta ao presente.
Fora como uma viagem ao passado.