PINTURAS

     Acordado das névoas oníricas, naquele sonho de à tarde, pude ver a grande obra entre o azul do céu e os raios a tocarem as coisas e os seres todos por debaixo do arco.

    Seria a perfeição da obra divina ou a imperfeição do olho humano a contemplar? De qualquer modo eu dela fazia parte. Sim, da obra máxima, como um personagem entre bilhões. Uma partícula ou um pingo invisível de tinta na grande e indecifrável pintura.

    Ao passear pela avenida, em direção ao clube, fragmentos dessa vida emoldurada. O autor nos vê e borrifa luz e sombras aqui e ali. Com um toque, faz o movimento da arte: as árvores bailam ao vento, um cão passa e não houvera passado se visto não fosse, e seres demais, humanos ou não, e as próprias composições estáticas mudam com uma rapidez estonteante. É uma chuva de cores e luz e sombras invadindo o espetáculo.

    Um sorriso de segundos, despretensioso, foi captado num ponto quase invisível quando adentrei pelo corredor que dá à piscina do clube. Tão pequeno. Tão ínfimo e, no entanto, naquele ponto outra obra se fazia. Ao chegar ao fim do corredor e poder contemplar toda a cena, vi mais pintos como aquele. Vi dois, depois três... E vi bilhões ali e em outros lugares.

    Um pingo negro de tinta também fora sentido de imediato. A abusadora, escondida de si e dos outros, mas não do grande mestre pintor, acusou com o olhar. E não olhava o homem. Olhava o menino ainda. A obra sempre se mexe em vida ou morte. E a obra contém as nuances imperceptíveis da loucura. A contracena da pureza e da negra mancha... Eu podia sentir naquele olhar a fome de outrora. Os olhos tresloucados e os gemidos alucinantes.

    Entre o grandioso espetáculo, fragmentos mínimos explodem e vibram. Vida e morte! Os ouvidos se atinam ao conto e à dor alheia. Alguém sussurra um enterro. Alguém sussurra um lamento. Alguém chora o segundo irmão perdido. Alguém incompreende o ato decido dos irmãos em se tirarem do cenário mágico. Sim, vida e morte se alternam em risos e prantos, em dores e lamentos, em esperanças vãs de quem não percebe que tudo passa, menos a própria obra.

    E foi dentro dessa obra magnífica em movimento que me vi também. E vi infinitudes contidas no cenário divino. Sim, infinitas, embriagadoras, extasiantes e indecifráveis obras nos mínimos pontos, tão pequenos que só podem ser notados de dentro para fora.

    E o que vi de mim foi a insignificância. Foi o que se fora como se não tivesse sido, o que venha a ser não sendo. E um pequeno quadro se emoldurou. E por detrás da imensidão bordada, ou no ponto mínimo de minha consciência louca, vi o pequeno quadro meu.

     As cores se contorciam entre o tempo e no espaço onde estava fixada frágil vida na pequena obra minha. A indecisão das cores as tornava pálidas em meio à escuridão. Com o olhar perdido, alguns lampejos ainda podiam ser notados, aqui e ali como que remanescentes combalidos: Uma árvore sem folha, o céu que não é azul e sim negramente nublado, o cão que não mais passa, alguns ramos de capim a flutuar. Um pouco mais apenas, sem forma e sem cor.

     A esposa e os filhos nada sabem. Não veem, mesmo estando ali no centro daquele desenho que vai se apagando. Como as cores, os movimentos vão cessando. Estou quase estático, tentando fugir do terror que vi de mim e em mim.

     Há um grande buraco na pintura minha, cujas bordas irregulares, como que carcomidas por bactérias famintas, parecem tragar aos poucos todo o resto de pálida luz e vida. Não há como fugir à morte, imposta pelo pincel do criador. E o buraco cresce e devora.

     E vejo a grande obra em sua imensidão. E vejo os pingos nela se contorcendo e bailando. E vejo todo o grande e pequeno espetáculos. E vejo, de mim, a pintura mínima que morre.


     Péricles Alves de Oliveira

 
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 05/02/2012
Reeditado em 01/03/2013
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